O plano de Bolsonaro de – na impossibilidade de um golpe de Estado, devido ao repúdio do país à ditadura – se reeleger através da polarização com o PT (e, especialmente, com Lula), nem mesmo é um segredo de polichinelo.
Fala-se disso, abertamente, nos meios políticos e nos jornais, sem qualquer desmentido, seja de Bolsonaro, seja de algum membro de sua quadrilha. “Lula na cabeça da chapa” de oposição, diz Merval Pereira em “O Globo”, é “o sonho de consumo de Bolsonaro” – e não há sequer uma discordância sobre isso, nem mesmo no PT.
Naturalmente, não haveria importância nos planos ou nos sucedâneos mentais de Bolsonaro e seu círculo, se a situação e os personagens fossem semelhantes àqueles do final da ditadura, quando, após a campanha das Diretas-Já, Ulysses Guimarães, reconhecendo que seu nome não era o melhor para unir a frente contra o regime autoritário, aceitou (e lançou) Tancredo Neves como candidato a presidente da República.
Porém, agora – e, aliás, naquela época, também – há pouca confiança de que Lula tenha a capacidade de abrir mão de uma candidatura (sua ou de um indicado) em prol do principal interesse do país, que é livrar-se de Bolsonaro.
Aliás, o próprio Lula não considera importante – muito pelo contrário – a formação e consolidação de uma ampla frente contra Bolsonaro, seu desgoverno assassino e seu obscurantismo troglodita.
É nessa brecha que o bolsonarismo vê, nas palavras do articulista que citamos, seu “sonho de consumo”: usar a rejeição a Lula e ao PT para continuar no poder, isto é, para continuar desgraçando o Brasil.
Para isso, vale qualquer coisa, inclusive usar um ministro do Supremo – o recém-nomeado Kassio Nunes Marques – como preposto bolsonarista para beneficiar Lula, até usar outro preposto bolsonarista – o procurador-geral Augusto Aras – para acabar com a Operação Lava Jato.
Além das declarações do líder do governo sobre a prisão após condenação em segunda instância: o fascismo, como sempre, costuma arrastar em sua cauda uma catadupa de oportunistas, cujo interesse é mesquinhamente material.
Como essas questões parecem, a alguns, confusas ou controversas, teremos de abordá-las com mais detalhes, ainda que com o máximo de brevidade possível.
LAVA JATO
Não foi por ilegalidades ou erros da Operação Lava Jato – supostos ou verdadeiros – que o governo Bolsonaro resolveu acabar com ela.
Seria cômico acreditar em bolsonaristas, ou aliados dos bolsonaristas, preocupados com leis ou formalismos jurídicos…
Como se isso não bastasse, o procurador-geral Augusto Aras também acabou com a Operação Greenfield, que revelou a corrupção nos fundos de pensão, sem que houvesse, contra esta outra Operação, nenhuma acusação de ilegalidade ou mesmo de conduta inadequada dos procuradores ou dos juízes. Na Greenfield não havia nenhum Deltan Dallagnol. E seu principal resultado – a devolução de R$ 11 bilhões pela JBS aos cofres públicos – é uma ilustração suficiente de seu sucesso no combate à corrupção.
Mesmo assim, Aras acabou com a Greenfield.
Voltemos, então, à Lava Jato.
Esta Operação, somente em Curitiba, foi responsável por 278 condenações de 174 réus, até a dissolução da força-tarefa, no final de janeiro, pelo procurador-geral de Bolsonaro.
Foram recuperados aos cofres públicos – inclusive os da Petrobrás, mas também os da União – R$ 4 bilhões e 300 milhões, roubados através de propinas, sobrepreços, superfaturamentos.
Além disso, através de acordos, estabeleceu-se a devolução de mais R$ 14 bilhões e 700 milhões.
As provas colhidas permitiram, também, a identificação de outros crimes. Por exemplo, a sonegação de R$ 22 bilhões ao fisco, recursos que foram recuperados pela Receita Federal.
Ao todo, as penas somaram 2.611 anos de cadeia.
Entretanto, de 533 acusados, somente 174 foram condenados – vários, é verdade, por mais de uma acusação.
Para um balanço da parte da Lava Jato que corre no Supremo Tribunal Federal (STF), devido ao “foro privilegiado” de alguns acusados, remetemos o leitor aos recentes relatórios do ministro Edson Fachin, publicados no último dia 8 (v. Íntegra e Atualização).
Achamos que esses números são suficientes para mostrar o que valem os desembuchos biliosos do sr. Gilmar Mendes contra a Lava Jato.
Disse Mendes que “o que se instalou em Curitiba era um grupo de esquadrão da morte”.
Essa preocupação de Mendes com a prisão de corruptos – ou com a devolução de dinheiro roubado dos cofres públicos – é significante, porque é, nele, sistemática: parece um tropismo. A ponto de comparar a prisão deles com a morte e aqueles que os colocaram na prisão com um “esquadrão da morte”. Aliás, Mendes acaba de soltar o Crivella, aquele do “QG da propina”…
Então, o que propõe ele?
Que se anulem todos os processos da Lava Jato?
Que as condenações de Cabral, Cunha e outros heróis sejam anuladas?
Mas, então, o que fazer com o dinheiro que já foi devolvido – e que é a maior prova de que a corrupção, em escala industrial, existia?
Ou o sr. Mendes propõe que o dinheiro seja mais uma vez devolvido – desta vez, aos que o roubaram?
QUADRILHAS
Deixemos, entretanto, as exonerações raivosas – e algo ridículas – do sr. Gilmar Mendes e voltemos aos motivos de Bolsonaro.
É óbvio por que Bolsonaro voltou-se contra a Lava Jato: para garantir a impunidade da corrupção de sua família e de seus aliados. Aliás, ele acaba de pedir acesso às mensagens roubadas, pelos (mal) chamados “hackers de Araraquara”, dos procuradores – e do então juiz Sérgio Moro –, que a defesa de Lula pretende usar para anular o processo do triplex de Guarujá.
Disse Bolsonaro:
“Para que não haja dúvida, mandei pedir aquela matéria hackeada que está na mão do PT, na mão do Lula. Tem meu nome lá. Alguma coisa já passaram para mim. Vocês vão cair para trás. Chegando, eu vou divulgar. O Lula não vai divulgar. Já falou que não vai. Eu vou divulgar.
“Eu já tenho alguma coisa, que tem chegado para mim, agora vou conseguir… Espero que o Supremo me dê. Deu para Lula”.
O objetivo de Bolsonaro é usar essas mensagens para anular o processo contra seu filho, Flávio Bolsonaro – e, por consequência, contra o seu operador, Fabrício Queiroz.
Segundo seu profundo raciocínio, se Lula pode ter seu processo anulado pelo uso dessas mensagens, por que o seu filho zero-um não pode?
Assim, a ação de Aras, que em setembro passado determinou a dissolução, até o final de janeiro, da força-tarefa da Lava Jato, e também da Greenfield, é inteiramente no sentido de transformar o Ministério Público em um apêndice da família Bolsonaro, para acoitar seus interesses corruptos (v. HP 10/09/2020, Em armação com Bolsonaro, Aras anuncia para janeiro o fim da Lava Jato).
MORO
Uma das maiores e mais escandalosas exposições da falta de caráter de Bolsonaro consiste, exatamente, em se apresentar, na campanha eleitoral, como paladino da Lava Jato – inclusive da prisão após a condenação em segunda instância -, e agora como inimigo acérrimo do combate à corrupção, em tudo aquilo que seja verdadeiro, concreto e bem sucedido.
O maior problema de Sérgio Moro não esteve nas conversas com o procurador Dallagnol – mas em acreditar que Bolsonaro, notório representante das milícias, corrupto do “baixo-clero” parlamentar, pudesse fazer algo no tocante à corrupção. Com isso, Moro enfraqueceu a própria causa que defendia.
É verdade que Moro acabou por perceber quem era Bolsonaro – mas sua aceitação de um Ministério e sua retirada como juiz responsável pela Lava Jato em Curitiba, fizeram um estrago difícil de ser reparado (v. HP 01/11/2018, Bolsonaro quer usar Moro para dar respeitabilidade de fachada a um governo sem nenhuma).
Quanto às conversas de Moro com Dallagnol, vários juristas – inclusive a juíza Denise Frossard – lembraram o princípio jurídico “não há nulidade sem dano” (pas de nullité sans grief).
Para anular o processo do triplex de Guarujá, não basta demonstrar que as conversas entre Moro e Dallagnol foram inadequadas. É preciso demonstrar que essas conversas ocasionaram danos ao réu – ou seja, que as provas foram forjadas em função dessas conversas ou que estas mostram que as provas foram forjadas.
Isto é, exatamente, o que não está demonstrado. As conversas reveladas pelos “hackers de Araraquara” não alteram, em nada, o caráter das provas, nem mostram que elas foram forjadas (v. HP 19/07/2017, “O triplex não é meu” ou as provas que Lula garante que não existem; e HP 22/01/2018, Uma pequena compilação das provas contra Lula (só no caso do triplex)).
Esta é a razão pela qual o procurador Júlio Marcelo de Oliveira, do Ministério Público no Tribunal de Contas da União (TCU), escreveu, no último dia 7:
“O circo para anular os processos da Lava Jato está sendo montado e os palhaços somos nós, cidadãos brasileiros. Não há nada nas conversas de Moro e Deltan que revele qualquer parcialidade de Moro nos processos. As provas estão lá, o TRF confirmou a condenação. Querem virar a mesa.”
Para ser mais específico, as intervenções de Moro, nas conversas reveladas, são no sentido de impedir que Dallagnol, personalidade algo delirante, faça algo que leve à anulação dos processos.
De maneira geral, são conversas inadequadas, inconvenientes, sobretudo pela possível – como se viu – interpretação delas; mas são menos inadequadas e inconvenientes do que a maioria das declarações públicas do sr. Gilmar Mendes, que, como diz a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), se comporta “como se estivesse acima da legislação”, em especial da Constituição e da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman):
“Como se estivesse acima da legislação, Gilmar Mendes, mais uma vez, manifesta opinião sobre processo pendente de julgamento, o que é expressamente vedado pela Loman. Ironicamente, o mesmo ministro acusa membros do Ministério Público Federal (MPF) de agirem à margem da lei, sob a denominação de ‘esquadrão da morte’. (…) Como integrante da mais alta Corte do país, o Ministro Gilmar Mendes deveria se portar em respeito às normas, à Constituição e visando preservar a imagem do Supremo Tribunal Federal, buscando o fortalecimento e não o enfraquecimento das instituições, essas sim, essenciais ao país”.
Mas é natural que pessoas de boa fé, mais ainda quando simpatizam com Lula, reivindiquem um “julgamento justo” para este, como se já fosse provado que o anterior foi injusto ou parcial.
Embora, é significativo que ninguém – nem o próprio Lula – proponha a anulação pura e simples dos processos (Lula está condenado em dois: o do triplex, em três instâncias, e o do sítio de Atibaia, em duas instâncias), sem necessidade de outros julgamentos.
Todos sentem, portanto, que existe algo a ser julgado.
Se é assim em relação a Lula, pior ainda em relação a outros condenados.
O STF terá que se manifestar sobre o julgamento de Lula nas próximas semanas. O difícil, se houver outro julgamento, será evitar as provas que serviram de base à sua condenação em mais de uma instância da Justiça.
Entretanto, se é natural que pessoas de boa fé, diante das conversas reveladas pelos “hackers de Araraquara” – e de sua manipulação por uma patota muito interessada – reivindiquem um novo julgamento para Lula, não é natural, por exemplo, que o sr. Gilmar Mendes haja da mesma forma, ou seja, como uma pessoa de boa fé.
Pois, nenhum juiz foi tão terrível para Lula, quanto o sr. Mendes. Foi este quem impediu que o ex-presidente assumisse a Casa Civil de Dilma Rousseff. Com isso, o impeachment da última tornou-se inevitável, pois sua única chance era que Lula fizesse um acordo com tendências presentes no Congresso, em especial, na Câmara dos Deputados.
Além disso, a sentença de Mendes privou Lula do “foro privilegiado”, com as consequências que se viram – e se arrastam até hoje.
Então, é esse indivíduo que agora se apresenta como campeão da causa de Lula por um novo julgamento?
Que milagre aconteceu?
Evidentemente, o interesse de Mendes – demonstrado em dezenas, provavelmente centenas de sentenças – é acabar com o combate à alta corrupção, com o combate à corrupção daqueles que jamais eram presos, até que começou a Operação Lava Jato. Também é por seus méritos, não por seus defeitos, que Mendes se atira tão ferozmente contra a Lava Jato.
Se isso coincide com o interesse de Bolsonaro – não somente o interesse de acabar com o combate à corrupção, mas com o interesse de polarizar com Lula -, para Mendes é uma questão de somenos.
Afinal, ele já serviu a Bolsonaro, no episódio da nomeação de Kassio Nunes Marques para o STF. Tanto Mendes quanto Toffoli não tiveram o menor escrúpulo em agir para viabilizar a indicação de Bolsonaro para o tribunal mais importante do país.
LÍDER DE BOLSONARO
Por fim, uma breve demonstração de onde chega o afã bolsonarista de polarizar com Lula nas eleições, para – pelo menos na cabeça de Bolsonaro e asseclas – continuar no governo depois de 2022.
O líder de Bolsonaro na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), no último dia 2, em uma entrevista na CBN, disse o seguinte:
“Nunca teve prisão em segunda instância no Brasil. Só teve para prender o Lula e tirá-lo da eleição casuisticamente, em uma interpretação de 6 a 5 no Supremo Tribunal Federal. (…) A segunda instância foi um casuísmo que a Lava Jato construiu para tirar o Lula da eleição.”
Não achamos que o deputado Barros seja um imbecil. Por isso, acreditamos que ele saiba que nada do que disse é verdade.
Em primeiro lugar, até a Constituição de 1988, nem mesmo existia qualquer discussão sobre a prisão após a condenação por segunda instância da Justiça, uma vez que nenhuma Constituição brasileira, até então, havia dito que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (Art. 5º, inciso LVII da Constituição de 1988).
Em segundo lugar, depois de 1988, durante mais de 20 anos, desde a promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988) até a decisão do STF de 5 de fevereiro de 2009, o cumprimento da pena – a prisão – sempre foi após a condenação em segunda instância (v. HP 21/03/2018, Por que a prisão após a segunda condenação é legal, justa e necessária).
Esta jurisprudência, interrompida em 2009, foi restabelecida pelo STF em 17 de fevereiro de 2016, após relatório do saudoso ministro Teori Zavascki.
Somente para frisar: a prisão após condenação em segunda instância foi restabelecida em 2016, quando Lula não era candidato a nada – e Dilma era, ainda, presidenta da República, eleita para um mandato que só deveria terminar em 2018.
A Operação Lava Jato nada teve a ver com o estabelecimento da prisão após a condenação em segunda instância.
Assim como nada teve a ver com a suspensão posterior, pelo STF, da prisão em segunda instância, em novembro de 2019.
Em suma: não foi para prejudicar Lula que a prisão após condenação em segunda instância foi estabelecida.
Então, por que o líder de Bolsonaro diz alguma coisa que não é – e ele sabe que não é – verdade?
Pela razão com que iniciamos este artigo: polarizar com Lula nas eleições tornou-se o “sonho de consumo” de Bolsonaro, e, portanto, também dos que se agarram a Bolsonaro, com seus interesses rasteiros.
CARLOS LOPES