CARLOS LOPES
A literatura russa ficou conhecida, no Ocidente, sobretudo, através das traduções francesas.
Além de que o francês era uma espécie de língua universal na literatura do século XIX e começos do século XX – a tal ponto que muitos escritores franceses jamais se preocuparam em aprender outra língua, nem mesmo a que se falava do outro lado do Canal da Mancha -, no caso da literatura russa, havia outro fator: uma obra como “Guerra e Paz” não foi escrita apenas em russo. No grande romance de Tolstoy, os diálogos em francês preenchem quase um terço da obra, pois esse era o idioma da corte do czar. A aristocracia russa não considerava “elegante” falar a mesma língua do povo, isto é, o russo – mesmo quando as tropas francesas, durante a invasão de Napoleão, ocupavam desde o Berezina até Moscou.
Nas longas décadas do feudalismo europeu, essa alienação linguística não era específica da nobreza russa. Assim, Frederico da Prússia dissera, sobre os seus hábitos idiomáticos: “francês para as damas, espanhol para os cavalheiros e alemão para os meus cavalos” (existem outras versões do dito do rei prussiano, mas, em todas, o alemão, falado por seu povo, é a língua preferencial para se comunicar somente com os cavalos…).
Voltemos à literatura russa.
No início do século XX, em 1907, apareceu em Paris, na tradução de um escritor francês de origem russa, Serge Persky, um livro intitulado La Mère, ou seja, A Mãe.
Seu autor, Máximo Gorky, não era um desconhecido do público parisiense, entre outras razões, em virtude de outras traduções de Persky.
A edição russa de “A Mãe” fora lançada no mesmo ano em que apareceu a tradução francesa – feita a partir do manuscrito de Gorky.
A Revolução de 1905 era recentíssima – a rigor, em 1907, a feroz repressão czarista ainda não apagara completamente o fogo do levante popular.
Gorky, quando estourou a revolução, no domingo sangrento (9 de janeiro de 1905), era um escritor conhecido sobretudo pela peça “Pequenos Burgueses”, de 1902 – mas já publicara várias outras obras, inclusive um romance importante (“Tomás Gordéiev”, de 1899).
No mesmo ano em que “Pequenos Burgueses” foi encenada pelo Teatro de Arte de Moscou – com direção de Konstantin Stanislavsky e Vasily Luzhsky – houve um escândalo literário (mais político que literário): Máximo Gorky foi eleito para a Academia Imperial, mas o czar Nicolau II anulou sua eleição.
Em protesto contra o ato de Nicolau, o Sanguinário, Anton Tchekov e Vladímir Korolenko renunciaram à Academia.
Nessa época, já eram conhecidas as ligações de Gorky com o Partido Operário Social-democrata da Rússia (POSDR). Aliás, no mesmo ano, 1902, ele encontrou-se pessoalmente com Lenin.
Em 1905, após o domingo sangrento, Gorky lança um manifesto de apoio à revolução (“À Todos os Cidadãos Russos”).
Porém, aqui, o melhor é transcrever o prefácio de Serge Persky à sua tradução de “A Mãe”, de 1907. Pois o que importa não são apenas os acontecimentos da vida de Gorky e a sua obra, mas como elas repercutiram, e continuam repercutindo, no mundo.
Em 1907, havia uma novidade em Paris, que fazia um sucesso estrondoso: o cinematógrafo. Daí a menção de Persky, no primeiro parágrafo de seu prefácio.
O PREFÁCIO
“A Mãe não é uma obra de pura imaginação. É, antes de tudo, uma pintura exata – poderia até dizer-se uma vista cinematográfica – do movimento revolucionário na Rússia. Este belo livro introduz na literatura russa tipos que faltavam nela quase que por completo: os revolucionários operários e camponeses, cujo papel tem sido tão importante nas últimas tempestades políticas do país dos czares.
“Graças aos escritores que se têm sucedido, de Turgueniev a Lev Tolstoy, o revoltado saído da classe intelectualmente cultivada é mais ou menos conhecido.
“Por que motivo não havia ainda um retrato completo do seu irmão oriundo das obscuras camadas do povo? Principalmente porque os revolucionários desta categoria são de recente data.
“Prepararam-se durante muito tempo nas misteriosas profundezas das massas, recrutando-se em silêncio, multiplicando-se pouco a pouco, até ao dia em que, na sequência dos acontecimentos de que a Rússia acaba de ser o teatro, os viram surgir de chofre por toda a parte, tanto nas aldeias mais recônditas da província, como nas grandes cidades.
“O povo desperta do seu sono secular, como de sobressalto, e este despertar abre uma nova era na história do movimento de libertação russo. Entre os intelectuais e os iletrados, até hoje distanciados uns dos outros, forma-se um laço sólido, e um mesmo ideal inflama o exército dos que marcham à conquista da liberdade.
“Descrever esta nova fase da revolução russa, evocar os heróis desconhecidos que se votaram à grande tarefa da emancipação, analisar, nas suas manifestações, as mais variadas, e até as mais inesperadas, esta ressurreição da consciência popular, – eis o que Máximo Gorky se propôs nas páginas que ides ler. Tarefa árdua como poucas, mas de molde a tentar a alma ardente do autor. Raras vezes Gorky atingiu tal acuidade de observação, uma variedade mais completa no descritivo, uma tão perfeita certeza de análise psicológica. Mais do que nunca, foi o homem identificado com a sua obra. Filho do povo, ascendendo das mais sórdidas camadas sociais, revolucionário unicamente dedicado ao seu puro ideal de justiça (sempre protestou contra a violência, viesse ela de onde viesse) Gorky tinha, mais do que qualquer outro, os requisitos para escrever esta página trágica da história contemporânea.
“No personagem tão profundamente humano da mãe, Gorky mostra como uma mulher cheia de doçura e de timidez, espancada pelo pai, pelo marido, esmagada impiedosamente pela sorte, imersa na ignorância e no desbragamento, vai adquirindo pouco a pouco a consciência da sua mísera situação, se alevanta sob a influência do seu filho, até tornar-se, como ele, revolucionária entusiástica, sacrificando por fim as suas mais queridas afeições, a própria vida mesmo, à causa do povo.
“Em torno da mãe e do filho – os dois heróis principais – agita-se um amontoado de outros personagens. De uma parte, os amigos: um pequeno-russo [ucraniano] – alma de abnegação e de comovente simplicidade, – moças sacrificando felicidade e riqueza, sofrendo a prisão e as provações de toda a espécie; operários robustos e vivazes reclamando, com o direito à vida, algumas liberdades; camponeses que, depois de séculos de cega submissão, se recusam, finalmente, a considerar os representantes das autoridades como enviados do céu.
“De outra parte, os inimigos: oficiais de polícia, guardas e espiões, instrumentos dóceis do poder. Toda esta gente, tão estranha e tão viva, estas lutas, estes julgamentos, estes martírios, episódios duma guerra cruel e sem clemência movida contra os apóstolos do ideal novo, tudo isto é a realidade, a realidade de ontem, de hoje, de amanhã, tudo isto existe e existirá, enquanto na Rússia durar a luta libertadora.
“De muitas páginas deste livro emana uma emoção profunda.
“No decurso de uma conversa com os seus companheiros, André, o pequeno-russo, exclama:
“– Que importam os meus sofrimentos, as minhas desgraças! Quando penso que um dia a pátria será livre, o meu coração dilata-se de júbilo… tenho vontade de chorar, tão feliz me sinto!
“E quando Pavel diz, falando de um seu amigo infeliz, mas sempre bem disposto de espírito:
“– Sabes? Aqueles que mais riem são aqueles cujo coração sofre incessantemente.
“Um companheiro responde:
“– Qual história! Se assim fosse, toda a Rússia morreria de riso!
***
“O príncipe Urussov, antigo ministro adjunto do interior, na Rússia, conta nas suas Memórias que a rainha da Romênia, falando-lhe dos escritores russos contemporâneos, colocava muito alto a obra de Gorky, que ela conhecia perfeitamente. “Sabe captar a atenção do leitor”, declarava ela, “e introduziu processos absolutamente novos na literatura moderna”.
“Carmen Sylva [pseudônimo literário da rainha Isabel de Wied, da Romênia] aludia provavelmente ao dom que Gorky possui de fascinar o leitor com o poder das cenas que descreve. Tais são, neste romance, a morte do revolucionário Iegor, a prisão do camponês Ribine, a audiência do tribunal a que comparecem Pavel e os seus amigos, a cena final em que as mãos dos guardas espancam a pobre mãe. Quantas passagens poderíamos citar ainda! Por exemplo, aquela em que Sofia toca uma música de Grieg. O autor não diz o nome daquele trecho, mas qualquer músico o reconhecerá imediatamente pela rápida e flagrante descrição que dele faz Gorky.
***
“O governo russo entendeu dever apreender A Mãe em todo o império. Poucos dias depois da aparição da obra, a polícia fazia buscas em todas as livrarias tanto de S. Petersburgo como da província. Chegou muito tarde e só pôde apreender poucos exemplares, por estar já vendida a maior parte de uma grande edição.
“Ao mesmo tempo, as autoridades entregavam aos tribunais Gorky e o seu editor, sob a acusação de ‘excitação à revolta’ e de ‘achincalhamento das coisas santas’, crimes que elas dizem existirem neste romance. Segundo a lei russa, sob os culpados impende a pena de três a cinco anos de prisão ou de exílio na Sibéria.
“Há três anos somente, Gorky foi encarcerado na fortaleza de S. Pedro e S. Paulo, por motivos análogos.
“A opinião pública sentiu-se abalada em todo o mundo: de todos os países civilizados afluíram petições colossais, reclamando a libertação do mestre. Gorky foi posto em liberdade.
“Sofrendo do peito, o autor da Mãe está desde há muitos meses em Capri.
“Regressará em breve ao seu país.
“A prisão estará esperando novamente um dos melhores filhos da Rússia?
“Paris, novembro, 1907.
“S. PERSKY”
O AUTOR
Gorky não conseguiu voltar para a Rússia senão em 1913, quando o czar, em comemoração aos 300 anos da dinastia Romanov, decretou uma anistia.
O mais importante nas observações de Serge Persky é o destaque à qualidade literária das obras de Gorky.
Cinco anos depois, em seu livro sobre a literatura russa, Persky dirá, no capítulo que dedicou ao autor de “A Mãe”:
“Máximo Gorky é a figura mais original e, depois de Tolstoy, o talento mais poderoso da literatura russa contemporânea” (cf. Serge Persky, “Les Maîtres du Roman Russe Contemporain”, Librairie Ch. Delagrave, 1912, p. 210).
Especificamente sobre o romance mais conhecido de Gorky, escreve ele:
“A Mãe nos introduz, de cheio, no mundo da revolução. Os heróis do livro pertencem, na maior parte, a esse proletariado fabril e agrícola, cujo papel tem sido tão importante nas últimas tempestades políticas na Rússia. Nas maravilhosas análises psicológicas, Gorky mostra como alguns destes seres simples compreendem a nova verdade, e como ela consegue, pouco a pouco, penetrar em suas almas ardentes” (idem, p. 234).
UMA NOTA
Há muitos anos – quase 30 – publiquei um pequeno ensaio sobre a literatura, em especial, sobre o realismo socialista. Uma das anotações é a seguinte:
“… quase ao mesmo tempo em que escrevia ‘A Mãe’, primeira grande heroína positiva da literatura socialista, Gorky escreveu um outro livro magistral, ‘A Vida de um Homem Inútil’, conhecido no Brasil e outros países como ‘O Espião’.
“Evséi Klimkoff, esmagado desde a infância, sem amor e sem saber amar, sem consciência de nada, rancoroso, rastejante, torna-se um delator, um dedo-duro, informante da polícia política. Trai os únicos que lhe dedicam atenção, membros do movimento revolucionário, aos quais foi apresentado por um amigo de infância, a quem também trai. Quando a revolução explode, só lhe resta esperar a morte na linha do trem – há muito está morto.
“Mas nem mesmo essa última dose de coragem ele tem. Levanta e corre apavorado, como um rato, ao ruído da locomotiva. Mas já é tarde: o trem, como a revolução, o colhe inapelavelmente” (v. Notas sobre o herói na literatura, CPC/Umes, s/d, pp. 7-8).
Não havia lido, quando escrevi essas palavras, o livro de Persky, apesar deste ter aparecido em 1912:
“Como este título sugere um pouco, ‘O Espião‘ é um estudo da polícia política russa. É o romance da terrível Okhrana, cujas atividades misteriosas têm sido cobertas pela imprensa francesa e estrangeira.”
(…)
“Todo o interesse do livro se concentra então nas páginas dedicadas à pintura da terrível instituição policial. Foi necessário nada menos do que o talento de Máximo Gorky para fazê-la viver diante dos nossos olhos. Desde o chefe Filip Filipovitch, até o sádico Soloviev, passando pelo abjeto Sacha e o hipócrita Zarubin, ele nos apresenta, com arte consumada, a multidão de agentes estúpidos, cúpidos ou corruptos, que exercem as suas tarefas com cansaço, todos caracterizados com um traço nítido e enérgico.
“Entre eles, o jovem Evséi Klimkoff leva uma existência miserável e ridícula. Esmagado por um poder invencível, ele se vê forçado a entregar a seus chefes, primeiro um velho homem que o acolheu e confiou-lhe seus projetos de renovação social, e, em seguida, uma jovem pela qual está fascinado, e até mesmo seu próprio primo, suspeito de propaganda revolucionária” (cf. S. Persky, op. cit., p. 240).
Com efeito, isso é o que existe de mais repugnante em Evséi Klimkoff: ele entrega aos carrascos aqueles que lhe querem bem – e, mais que isso, aqueles de quem ele gosta.
LITERATURA SOCIALISTA
“A Mãe” e “O Espião” são obras, evidentemente, anteriores à Revolução Russa – mais exatamente, uma espécie de balanço literário da Revolução de 1905, no momento em que a repressão czarista se estendia pelo território da Rússia.
Essa concepção de literatura – e de estética – ligada à vida, é o núcleo do que, depois, seria desenvolvido e chamado “realismo socialista”.
Quando da morte de Jorge Amado, lembro-me que escrevi um artigo em que, perifericamente, colocava-se a questão: até que ponto o realismo é sempre uma superação do romantismo? Ou: existe a necessidade de uma fase romântica anterior, para que se possa chegar ao realismo?
Essa questão também apareceu na literatura soviética, ou seja, na literatura após a Revolução Russa.
Gorky, em especial, falará do “romantismo revolucionário” – mas é um erro dizer, como se diz em alguns círculos atuais, que ele não via diferença entre “romantismo revolucionário” e “realismo socialista”.
Em 1934, em seu discurso, na presença de Gorky, no Iº Congresso de Escritores Soviéticos, Andrei Zhdanov, em nome do Comitê Central do PCUS, equacionou a questão do seguinte modo:
“Nós dizemos que o realismo socialista é o método principal da literatura soviética e da crítica literária, e isso implica que o romantismo revolucionário deve entrar na obra literária como um componente, porque toda a vida do nosso partido, toda a vida da classe operária e sua luta, consistem em uma combinação do trabalho prático mais austero e mais lúcido com o maior espírito heroico e com grandiosas perspectivas.”
Claramente, tal como formulado por Zhdanov, o realismo socialista é uma superação do romantismo revolucionário.
A expressão “realismo socialista” – e a formulação do conceito – haviam aparecido no ano de 1932, em um artigo de Gorky.
Dois anos depois, no mesmo Iº Congresso de Escritores Soviéticos, Gorky localizaria a questão a partir do problema a ser enfrentado naquele momento:
“Devemos confessar que escritores, operários e kolkhosianos ainda trabalhamos mal e não podemos assimilar por completo o que através do nosso próprio esforço foi criado. Nossas massas trabalhadoras não se aperceberam inteiramente de que já não trabalham para nenhum patrão, mas para si próprias. Essa consciência não atingiu ainda sua plenitude nem toda sua pujança. Nada chega ao estado de ebulição, claro, antes de ter atingido determinada temperatura. Mas ninguém como o nosso Partido soube até hoje fazer subir a temperatura da energia trabalhadora como o fizeram Vladimir Lenin e seu atual dirigente [Stalin].
“O herói dos nossos livros deve ser o trabalho personificado no trabalhador, que conta já entre nós com a força da técnica contemporânea; o homem que, por sua vez, organiza o trabalho, tornando-o mais fácil, mais frutuoso e elevando-o à altura da arte. Devemos entender o trabalho como criação, conceito esse que, como escritores, poucas vezes temos o direito de usar. Constitui uma certa tensão extrair da reserva de nosso saber e de nossas impressões os fatos mais característicos; formam um quadro e são pormenores que a nossa inteligência envolve com vocábulos precisos e correntes. É uma qualidade de que a literatura jovem não pode ainda vangloriar-se: nem a reserva de impressões, nem a soma de conhecimentos são nela muito abundantes, tal como são ainda incipientes os desejos de incensar e aprofundar essa literatura.
“O tema, tanto na literatura russa como na literatura estrangeira do século XIX, é o indivíduo em oposição à sociedade, ao Estado e à Natureza. (…) o tema essencial da literatura pré-revolucionária serviu de drama ao homem que considera a vida apertada, que se sente a mais na sociedade, que procura um lugar cômodo e, não o encontrando, sofre, morre ou reconcilia-se com a sociedade que lhe é hostil, se acaso não desce mesmo ao alcoolismo ou ao suicídio.
“Na URSS não podem existir pessoas a mais, desde o momento em que cada cidadão goza de amplas possibilidades para desenvolver suas capacidades e seu talento. Não se lhe exige mais do que uma coisa: ser sincero e contribuir heroicamente para realizar uma sociedade sem classes.
(…)
“O realismo socialista afirma a existência como atividade e como criação. O seu objetivo primordial consiste em fazer evoluir as possibilidades do homem para que triunfe sobre a natureza. Quer dizer, em favor da sua própria saúde e da sua longevidade. Para viver feliz na Terra, em cujos limites aspira fazer, à medida que suas necessidades vão crescendo uma vasta morada para a Humanidade unida numa única família.”