A investida reacionária da nulificação da justiça,
que se esboça no grandioso projeto de castração
do Supremo Tribunal Federal, tem por grito de guerra,
conclamado em brados trovejantes, a necessidade,
cuja impressão abrasa os peitos à generosa coorte,
de pôr trancas ao edifício republicano contra
a ditadura judiciária. É a ditadura dos tribunais a que
enfia de terror as boas almas dos nossos puritanos.
Santa gente!
(RUI BARBOSA, 19/11/1914)
Há tempos alguém disse que para os pobres vale o velho princípio jurídico romano, “dura lex sed lex”, ou seja, “a lei é dura, mas é a lei”. Já para os ricos, o princípio é “dura lex sed latex” (“a lei é dura, mas espicha”).
Se substituirmos ricos por corruptos, teremos uma síntese da espécie de Direito pelo qual alguns luminares querem substituir o Direito brasileiro, especialmente depois que a Operação Lava Jato expôs a malta de que fazem parte – consciente ou inconscientemente – esses “juristas”.
Evidentemente, por mais que as leis possam ser melhoradas, a licenciosidade em sua aplicação – isto é, o desrespeito a elas – não favorece ao país e ao povo. Pelo contrário, como no caso daquele reacionário francês que, no século XIX, gritava “a legalidade nos mata!”, o desrespeito às leis favorece quem já não as respeita: os ladrões do dinheiro público, os cínicos eleitorais, os coroinhas da depravação política, os que assaltaram a Petrobrás, os que pretendiam eternizar-se no poder à custa de propinas, etc., etc.
Não é ao povo que se pretende livrar da cadeia com o desrespeito às leis.
E não se trata, obviamente, de um problema novo: a legalidade foi bandeira permanente do povo na primeira metade da década de 60 do século passado, até que ela foi rompida, com o golpe de 64, e, por largo tempo, as ilegalidades se tornaram a norma (era a elas que se chamava “casuísmos” – triste eufemismo da época da ditadura).
O estranho, nos dias de hoje, é que se pretenda – em alguns círculos – que a aplicação da lei é que constitui um “golpe”.
LIÇÕES DE NEO-DIREITO
Estamos longe de achar que a decisão mais aberrante tomada pelo ministro Dias Toffoli, esta semana, foi a liberação de Paulo Maluf da Penitenciária da Papuda (v. Toffoli solta Picciani e cede liminar para ficha-suja concorrer).
Porém, Toffoli usou essa decisão para encaixar algo inédito, que passa por cima de qualquer ordem jurídica.
Acontece que, para soltar Maluf, Dias Toffoli concedeu um habeas corpus contra mais de uma decisão do próprio STF – e, especialmente, contra uma decisão de um colega no STF, o ministro Luís Edson Fachin.
O leitor pode imaginar o que significa um ministro do STF derrubar a decisão de outro ministro do STF. Como não existe diferença hierárquica entre eles, se isso pega, estaríamos dentro da mais estúpida bagunça jurídica – uns derrubando as decisões de outros – e sempre com o objetivo de beneficiar àqueles que o juiz Moro chamou de “os poderosos”, como se vê pelo habeas corpus de Toffoli.
Porque, na concessão desse habeas corpus, Toffoli considerou que Maluf estava “submetido à execução antecipada da pena”.
Maluf foi condenado pelo STF. Depois do STF, não existe outra instância.
No entanto, mesmo assim, Toffoli diz que ele não estava condenado em caráter definitivo.
É exatamente o contrário do que afirmou o ministro Fachin, quando rejeitou os últimos recursos de Maluf, aliás, totalmente absurdos. Fachin disse, e com razão, que tais recursos eram meramente procrastinatórios, ou seja, tinham o objetivo, ilegal, de impedir o cumprimento da pena.
Pois Toffoli anulou, com uma liminar, a decisão de Fachin e considerou que os recursos rejeitados – há quase quatro meses – são válidos.
Em dezembro, Fachin decidira o seguinte:
“A manifesta inadmissibilidade dos embargos infringentes ora opostos, na esteira da jurisprudência desta Suprema Corte, revela seu caráter meramente protelatório, razão por que não impede o imediato cumprimento da decisão condenatória.”
Agora, na segunda-feira, escreveu Toffoli:
“As circunstâncias do caso o colocam em condição de custodiado submetido à execução antecipada da pena, pois, como alega a defesa, não há trânsito em julgado definitivo. E, neste ponto, entendo plausível a tese jurídica defensiva”.
A “tese jurídica defensiva [ou seja, da defesa de Maluf]” é, precisamente, que, enquanto existir algum recurso a ser julgado, Maluf (ou qualquer outro ladrão) tem que ficar solto.
Quando acabam esses recursos?
Nunca, pois, se até quando o ministro-relator no STF (no caso, Fachin) considera que eles são “meramente protelatórios”, aparece outro ministro para derrubar sua decisão, eles jamais acabarão.
Como diz a Procuradora Geral da República, Raquel Dodge:
“O complexo sistema recursal [do país] permite que, na prática, o condenado só deixe de apresentar recursos quando se ‘conformar’ com a condenação, o que pode jamais ou tardar muito a acontecer. Por isso, há sempre a possibilidade de novos recursos contra as sucessivas decisões no curso da ação penal”.
Desde, evidentemente, que o condenado tenha dinheiro para chegar ao STF. O que é o caso dos ladrões do dinheiro e da propriedade pública – de Lula a Temer, passando por Maluf.
Porém, Raquel Dodge, no trecho acima, estava discutindo a legalidade da prisão após a condenação em segunda instância.
Toffoli, porém, no habeas corpus de Maluf, considerou que nem mesmo depois de condenado pela quarta e última instância (o STF), o sujeito deve ir para a cadeia.
Nem mesmo se o próprio STF – ou outro ministro – já tiver decidido o contrário.
Por isso, falou em execução antecipada da pena, depois de uma condenação pelo STF.
A SAÚDE EM PERIGO
A situação sanitária do Brasil, que já era péssima, piorou depois das prisões da Operação Skala e da última sessão da segunda turma do STF (aquela que conta com a sapiência jurídica do ministro Dias Toffoli, ex-advogado de Lula, e com a elegante serenidade do ministro Gilmar Mendes, ex-advogado de Fernando Henrique).
Nunca houve, em tão pouco tempo, tanta gente rica doente, tantos atestados, tantas pessoas impossibilitadas, por motivo de saúde, de ir para a cadeia – ou de ficar nela.
Em alguns casos, sem novidade: como observa o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, em sua decisão sobre a Operação Skala, desde maio de 2017 que o caixa de Temer, João Batista Lima, sócio da empresa Argeplan, tem fugido a prestar qualquer depoimento, sempre pretextando condições de saúde.
Com isso, Lima tem paralisado as investigações, pois não se pôde, até agora, ouvi-lo, apesar de que “a análise dos documentos colhidos nos autos do Inquérito 3105/STF, somada ao que já se produziu nos autos do Inquérito 4621 e dos procedimentos que o instruem, permite concluir que a Argeplan, agora oficialmente com o investigado João Batista Lima Filho como sócio, tem se capitalizado por meio do recebimento de recursos provenientes de outras empresas – as interessadas na edição do denominado Decreto dos Portos – e distribuído tais recursos para os demais investigados” (cf. AC 4.381, Decisão, 27/03/2018).
Observe o leitor que não se trata de uma investigação sobre indícios genéricos. Pelo contrário, eles são bem concretos: “Dos documentos colhidos nos autos do Inquérito 3.105/STF destaca-se planilha contábil em que aparecem, como recebedores de recursos das empresas Libra, Rodrimar e Multicargo as siglas MT, MA e L, que permitem supor que sejam o Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Michel Temer, Marcelo Azeredo, Presidente da CODESP entre 1995 e 1998, indicado por ele , e o amigo pessoal do Senhor Presidente João Batista Lima Filho” (idem, grifo nosso).
O Inquérito 3.105/STF, que apreendeu essa planilha, foi arquivado em 2011 pelo ministro Marco Aurélio de Mello. Esse inquérito apurava a propina passada por empresas que atuam no Porto de Santos para Temer e para o presidente da Codesp (Companhia Docas do Estado de São Paulo), Marcelo Azeredo. As investigações eram baseadas em documentos divulgados pela ex-mulher de Azeredo.
Agora, no Inquérito 4.621/STF, as informações do inquérito anterior foram resgatadas. Mas os investigados – depois que o ministro Gilmar Mendes proibiu que a polícia executasse “conduções coercitivas” para fazer com que eles deponham – recusavam-se a testemunhar.
Em resumo, como diz a Polícia Federal em seu pedido ao ministro Barroso, “não se pode contar com a voluntariedade dos investigados ou de testemunhas para prestar esclarecimentos no interesse da investigação, inclusive e notadamente considerada a complexidade que o caso adquiriu, uma vez que pode trazer à tona fatos e esquemas possivelmente solidificados há mais de 30 anos” (idem, grifo nosso).
Assim, não houve jeito senão mandar prendê-los – no caso de Lima, uma equipe médica acompanhou os policiais. Parece que ele melhorou bastante de saúde, pois, depois de preso na quinta-feira, removido para o Hospital Albert Einstein, recebeu alta no mesmo dia. No entanto, piorou no dia seguinte, pois disse aos policiais que “não tem condições físicas, nem psicológicas de depor nessas condições”…
Quanto aos demais, “os sócios dessas empresas [que forneciam dinheiro à empresa de João Batista Lima] devem ser trazidos para prestar esclarecimentos, inclusive sobre se possuem conhecimento quanto a eventual atuação de João Batista no favorecimento de empresas concessionárias do setor portuário e na solicitação de vantagens indevidas a empresários, com finalidade de beneficiar agentes políticos, seja por meio de doações de campanha formais, ‘caixa 2’, ou mesmo sob a forma de ‘propina’ direta, sem relação com campanhas eleitorais” (idem).
A OCASIÃO FAZ O JURISTA
Vejamos outras inovações legais pespegadas pelo ministro Toffoli no habeas corpus para Paulo Maluf.
O estado de alguém com 86 anos, com problemas de saúde, na cadeia, independente de seus malfeitos, não deixa de ser, para alguns (nem todos), comovente.
É verdade que, a rigor, Maluf estava internado em um hospital – ou seja, o fato de estar na ala de idosos da Penitenciária da Papuda não impedia, como não impediu, em caso de necessidade, o seu internamento em uma instituição adequada ao tratamento.
O máximo que se pode dizer sobre isso é que “não é a mesma coisa do que se ele estivesse em casa”.
Realmente, ainda bem que não é, pois Maluf estava cumprindo pena por roubar o Erário.
[Maluf foi condenado por lavagem de dinheiro que roubou, pois os quatro crimes de roubo – corrupção passiva – que deram origem a esse dinheiro, já haviam prescrito (ou seja, apesar de provados, eles não puderam ser punidos, por decurso de prazo). Como o crime de lavagem é considerado, pelo STF, autônomo em relação ao crime de corrupção – e a lavagem foi, obviamente, posterior ao roubo -, Maluf foi condenado por esse crime e não pelo outro.]
No entanto, a decisão do ministro Toffoli foi ilegal também sob aspectos diferentes daquele que já apontamos.
Outra vez, ele parece ter-se aproveitado dos problemas de saúde – verdadeiros ou falsos – de Maluf, para esculhambar mais um pouco com o chamado “ordenamento jurídico do país”.
A LEI, ORA, A LEI…
Recapitulemos o caso.
Maluf foi condenado, pelo próprio Supremo Tribunal Federal (STF), à perda do mandato de deputado e a 7 anos, 9 meses e 10 dias em regime fechado (mais multa), por lavagem de 225 milhões, 518 mil, 526 reais e 43 centavos (em valores de 2005).
Esse dinheiro, oriundo de propina em obras públicas, foi enviado para contas no exterior, e, depois, entraram no caixa da empresa da família de Maluf, a Eucatex, entre 1993 e 2002.
Condenado, Maluf foi para a cadeia, como já descrevemos.
No Brasil, a Lei de Execuções Penais é “progressiva”. Isso quer dizer que não é possível passar um preso diretamente do regime fechado para prisão domiciliar. É necessário, antes, que o preso passe para regime aberto, o que só é possível se ele cumprir, pelo menos, 1/6 da pena, e tenha bom comportamento. Literalmente, diz a lei:
“Art. 117. Somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência particular quando se tratar de:
I – condenado maior de 70 (setenta) anos;
II – condenado acometido de doença grave;
III – condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental;
IV – condenada gestante.”
Essa previsão da lei não existe para regime fechado.
Assim, Toffoli passou por cima da Lei de Execuções Penais quando soltou Maluf. E, pior, citando o Código de Processo Penal, no seguinte trecho:
“Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for:
I – maior de 80 (oitenta) anos;
II – extremamente debilitado por motivo de doença grave;“
O artigo, portanto, se refere à “prisão preventiva” – e não ao “agente” que estiver cumprindo pena, isto é, ao condenado (e menos ainda ao condenado que estiver cumprindo pena em regime fechado).
Toffoli sabe perfeitamente disso – ele mesmo cita os dois dispositivos e diz, na sua decisão: “Já tive a oportunidade de consignar que o artigo 318, inciso II, do Código de Processo Penal admite a concessão de prisão domiciliar ao preso preventivo extremamente debilitado por motivo de doença grave”.
E, em outro trecho: “Não desconheço que a Lei de Execuções Penais apenas autoriza a prisão domiciliar para o condenado submetido ao regime prisional aberto, nas hipóteses ali previstas”.
No entanto, com a maior tranquilidade, Toffoli passa por cima da lei (mais de uma lei) e baseia a liberação de Maluf em um parecer de seu colega Celso de Mello, alegando que sua decisão foi “por força do postulado da dignidade da pessoa humana”.
A “dignidade da pessoa humana” não é um postulado – uma ideia que se admite como verdadeira sem precisar demonstrar que ela é verdadeira.
A “dignidade da pessoa humana” é um dos princípios fundamentais da Constituição (cf. art. 1º, inciso III).
Como princípio, é verdade, não precisa ser demonstrado – ou seja, não precisa ser demonstrado quando se trata das pessoas em geral, da “dignidade da pessoa humana” em geral.
Obviamente, isso não significa que, para soltar alguém da cadeia com base nesse princípio, não seja necessário provar que essa pessoa, em particular, esteja submetida a condições que ferem a dignidade da pessoa humana.
Não por acaso, Toffoli falou de “postulado”. Pois ele está querendo passar como verdadeiro aquilo que não demonstrou que é verdadeiro.
Seria preciso que ele provasse que a situação de Maluf justificava o apelo ao princípio constitucional da “dignidade da pessoa humana” contra as leis ordinárias (no caso, a Lei de Execuções Penais e o Código de Processo Penal, leis que jamais foram consideradas inconstitucionais pelo STF).
Naturalmente, estar na cadeia, mesmo aos 86 anos, mesmo estando doente, não é prova de que a dignidade da pessoa humana – dessa pessoa humana em particular – esteja sendo ferida.
Não menos importante, convenhamos, é muito difícil acreditar que Toffoli tenha tanto apreço pela humanidade de Maluf.
Não é Maluf – cujo processo nem faz parte da Operação Lava Jato – que se está querendo beneficiar.
O FERRETE DE PILATOS
Recapitulemos o caso.
No dia 23 de maio de 2017, a primeira turma do STF condenou Maluf a 7 anos, 9 meses e 10 dias de cadeia, inicialmente em regime fechado. Somente o ministro Marco Aurélio votou a favor da absolvição. Todos os outros ministros acompanharam o relator, Luís Edson Fachin, na condenação. O resultado foi 4 votos a favor da condenação e 1 pela absolvição.
No dia 22 de agosto de 2017, a mesma primeira turma rejeitou recurso de Maluf (agravo regimental) contra a sentença.
No dia 10 de outubro de 2017, pelo mesmo resultado (4 x 1), essa turma do STF rejeitou mais alguns recursos de Maluf (embargos de declaração).
No dia 19 de dezembro de 2017, o ministro Luís Edson Fachin negou um pedido de Maluf para anular o processo, via “embargos de infringência”, e determinou o início do cumprimento da pena. O pedido foi rejeitado por ser ilegal (“incabível”).
Agora, a decisão de Toffoli, ao soltar Maluf, passou por cima de todas essas decisões, com uma simples liminar.
Como declarou um procurador: “O ministro Toffoli concedeu liminar monocrática em HC [habeas corpus] contra decisão judicial do ministro Fachin. Até ontem, só o colegiado poderia fazer isso, afinal não há hierarquia entre ministros individualmente considerados”.
Também aqui, Toffoli sabia o que estava fazendo, pois anotou em sua decisão: “o Tribunal Pleno já deferiu habeas corpus contra ato praticado por próprio colega, no caso o então ministro Cezar Peluso. Ou seja, não é inédita tal atuação”.
Sem dúvida, o Tribunal Pleno (o plenário do STF) já fez isso.
Coisa completamente diferente é um ministro anular a decisão do outro – ou de uma turma inteira, que, por falar nisso, não é a sua.
Iniciamos este artigo com uma citação de Rui. Talvez o melhor seja encerrar por outra:
“Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de estado, interesse supremo, como quer te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz cobarde.”
C.L.
Para o povo ( eternos contribuintes) a Lei: __dura lex, sed lex”). ( A lei é dura , mas é lei).
Para os corruptos, aliados com o P.T.osco, ricos enriquecidos ilicitamente pelo roubo, a lei “__ dura lex, sed latex”.
” (A lei é dura, mas estica).”
Vergonha na cara poderia ser vendida nas Farmácias, tem gente que precisa de altas doses.