EDUARDO COSTA*
O amigo Jorge Antonio fez o desafio:
– Você aceitaria escrever para o Quarentena? Ainda não temos um cronista da área da saúde! Mas tem que escrever toda a semana, 20 a 30 linhas, durante esse tempo de coronavirus.
– Bem, quer dizer, talvez, mas tem mesmo que ser toda semana? Muito trabalho nessa situação! Vou pensar – me assusta não ter assunto, e ter que escrever pouco. Vou pensar.
Cá com meus botões, avaliei. Primeiro problema: no meu campo de trabalho não posso falar sem fundamentar, sem rever. Vai dar trabalho e, além do mais, o trágico do que vivemos reduz o humor. Quem sabe um pouco de sarcasmo ajuda. Não, uma crônica deve ser leve. Puxa, é isso que preciso nessa quarentena: ser leve – vai me ajudar. Vamos tentar, errar é humano…
Aceitei a missão com galhardia. Mas, quem sabe com um pseudônimo, para não magoar superiores.
Enfim, ontem:
– Jorge, o convite está de pé?
– Sim.
Textículo 1.
O noticiário sanitário de hoje é indigesto, maior número de mortes em um dia no país pela COVID-19. Dei uma olhada de relance nos dados e logo vi uma diferença. Mil cento e setenta e nove em um dia viraram 888 em 24 horas.
Aqui tem truta!
Onde estará o Inspetor Clouseau?
Posso estar enganado. Será que há dias, como dizem, com mais de 24 horas? Hum, taí, meu caro leitor, pode ser só que o horário oficial do Amazonas tem 1 hora e meia a mais do que o de Pernambuco. Elementar, os casos de lá foram no mesmo dia, mas não nas mesmas 24 horas!
Harrá, sempre alerta na Amazônia! Melhor conferir. Aqui no boletim: no Amazonas a crise é maior! Foi o que eu pensei, sempre a questão do desmatamento no meio.
Pego a lupa e foco nos números: no Amazonas foram 52 vítimas no dia. Mas o horário extra pode incluir Mato Grosso, Tocantins, Rondônia, Acre e Roraima.
Tudo junto deu mais 41 óbitos (desculpem a falta de leveza), somados aos 52, foram 93 no dia. Putz, mas a diferença foi de 291 ocorrências (melhor assim)! Três vezes maior do que esses 93 números.
E se forem do dia anterior, quem sabe? Esses vão entrar amanhã na conta do Ministério da Saúde. (Mais contas…essas calculadoras de celular não acumulam…papel e lápis! Confiro.) Não bateu! – Clouseau anda viajando, não me atende. Vou para a janela com minha câmera/binóculos.
“Bom panorama. Já vi tudo! Deve estar havendo contrabando de corpos.” Algum país vizinho pode estar colocando sorrateiramente vítimas da Covid exatamente na virada do dia – à meia-noite – do lado de cá da fronteira. Isso pode explicar; afinal, tem 888 em 24 horas, e mais 291 contrabandeados na prorrogação.
Estou nervoso com a descoberta. Acho que devo avisar o ministro; deve ser esse pessoal da Venezuela! Ele entende esse problema, veio de lá daquela região para o cargo, talvez até já esteja diplomaticamente expulsando alguns corpos da fronteira. Conversei com meus botões. Melhor eu avisar, ele pode estar ocupado entubaínando clorofórmio para distribuir para os coitados dos velhinhos.
* Eduardo Costa é médico-sanitarista. PhD em epidemiologia. Professor titular da ENSP/Fiocruz. Secretário de Saúde de Brizola e ex-secretário Nacional de Ciência Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde. Publicado originalmente em QuarentenaNews.