
“O governo continua imobilizado, assistindo passivamente aos ataques aos direitos sociais empreendidos pelo financismo e por seus representantes encastelados na alta tecnocracia ministerial”
PAULO KLIASS*
O governo encaminhou recentemente ao Congresso Nacional o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para o exercício de 2026. Trata-se de uma peça legal obrigatória, tal como determinado na Constituição Federal, e que deve ser apresentada pelo Executivo ao Legislativo todos os anos, em meados do mês de abril. Uma vez concluída a tramitação e a aprovação, o documento precisa ser sancionado pelo Presidente da República antes do recesso do meio do ano. Por se tratar de matéria orçamentária, a apreciação é realizada de forma conjunta pelas duas casas no interior do parlamento, ou seja, é do Congresso Nacional. O texto segue inicialmente para a Comissão Mista de Orçamento (CMO) e depois é votado pelo plenário de deputados e senadores.
A proposição recebeu a etiqueta de PLN 2/25. Trata-se de um extenso catatau digital de 1080 páginas, com Exposição de Motivos, texto jurídico-legal, tabelas, modelos e anexos. De acordo com a nossa institucionalidade jurídica, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) deve estabelecer as regras para a elaboração da Lei Orçamentária Anual (LOA) do ano seguinte. Assim ela determina o nível de equilíbrio geral entre receitas e despesas da União, traça regras para as despesas dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, autoriza o aumento de despesas com pessoal, disciplina o repasse de verbas da União para estados, municípios e entidades privadas, indica prioridades de financiamento pelos bancos públicos, dentre um conjunto amplo de outras atribuições.
No entanto, um dos aspectos que mais chamam a atenção para quem se interessar em ler com atenção o documento é o seu viés absolutamente catastrofista com relação à questão fiscal. A LDO atualmente em vigor, que havia sido apresentada ao Congresso Nacional em 2024, já apontava para uma meta de equilíbrio fiscal primário bastante irrealista, tanto quanto equivocada. Trata-se da bastante conhecida obsessão do Ministro Fernando Haddad para com a busca de objetivos de políticas públicas totalmente distante da realidade econômica, social e política de nosso País. Muitos economistas do campo progressista alertavámos, desde o início, a respeito dos riscos envolvidos em manter a tal meta de ‘zerar o déficit primário”.
LDO: ARROCHO E AUSTERIDADE A TODA A PROVA
Na verdade, a meta arrochada que o responsável da Fazenda impôs para o ano em que vivemos é também a mera reprodução do que ele havia proposto no exercício anterior. Assim, já no primeiro ano do terceiro mandato de Lula, Haddad havia convencido o seu chefe a respeito da necessidade de um déficit fiscal “zerado”. À época, uma série de economistas assinamos um manifesto sugerindo algum tipo de flexibilização naquela meta austericida. Afinal, a série histórica apontava para a ocorrência de resultado distinto de déficit primário apenas em um ano ao longo da década. Mas a insistência de Haddad em se apresentar como o bom moço perante o pessoal da Faria Lima falou mais alto e foi mantida a rota perversa, que vinha sendo adotada desde o “golpeachment” contra Dilma Roussef e durante o posterior sexênio do terror patrocinado por Temer e Bolsonaro.
Porém, o que chama atenção para o despropósito e, também, para a desonestidade da intervenção do Ministro no debate é o seu completo silêncio a respeito de um componente essencial dos dispêndios públicos federais e que não sofrem nenhum tipo de limite ou crescimento. Trata-se dos gastos financeiros efetuados com o rigoroso e pontual – este sim – cumprimento das obrigações junto aos detentores de títulos da dívida pública. Assim, o pagamento de juros revela-se como o saldo de contas orçamentárias com maior impacto deficitário. Atualmente estão em torno de R$ 920 bilhões ao longo dos últimos 12 meses.
Mas por se tratar de uma transferência direta de recursos do Tesouro Nacional para setores do topo de nossa pirâmide da desigualdade social e econômica, o Ministro da Fazenda não se manifesta a este respeito. Afinal, de acordo com a sua própria abordagem fiscalista, eles seriam também valores que impactariam negativamente o equilíbrio das contas governamentais, assim como saúde, educação, previdência e outros. Caso os cálculos incluam as despesas financeiras, aí então Haddad jamais poderia se orgulhar de uma suposta missão bem-sucedida na implementação da austeridade fiscal a todo custo. O déficit fiscal nominal é elevado e permanente. Mas isso não é nenhum problema tão grave ou urgente, não vai quebrar o País, como insistem os alarmistas de plantão a soldo do financismo.
META DE SUPERÁVIT PRIMÁRIO: CAMINHO PARA O DESASTRE
Na mensagem encaminhada para a vigência em 2026, Haddad avança algumas casinhas no tabuleiro do arrocho da austeridade. Não contente em ter sacrificado a economia brasileira e a maioria de nossa população com o garrote no Orçamento da União buscando o mítico número zero – um algarismo bem redondinho e bonitinho – agora ele propõe a meta de um superávit fiscal primário para o próximo exercício. Uma loucura! Ou seja, o governo está criando, mais uma vez, uma armadilha para si mesmo em pleno ano eleitoral, quando a difícil e necessária reeleição de Lula estará em disputa na sociedade.
O artigo segundo do projeto estabelece uma meta equivalente a 0,25% do PIB sob a forma de um superávit fiscal primário:
(…) “Art. 2º A elaboração e a aprovação do Projeto de Lei Orçamentária de 2026 e a execução da respectiva Lei, no que se refere aos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social, deverão ser compatíveis com a meta de superávit primário de R$ 34.264.603.518,00 (trinta e quatro bilhões duzentos e sessenta e quatro milhões seiscentos e três mil quinhentos e dezoito reais) para o Governo Central, conforme demonstrado no Anexo de Metas Fiscais constante do Anexo IV a esta Lei.” (…) [GN]
O que se sabe é que o esforço para cumprir com tal objetivo de política econômica não encontra nenhuma justificativa do ponto de vista dos interesses de um governo que deveria estar buscando a trilha do desenvolvimento. Haddad sugere a Lula que o final de seu terceiro quadriênio à frente do Palácio do Planalto promova um controle ainda mais severo nas contas da área social e dos investimentos, ao passo que os gastos com juros seguem livres e soltos. Apenas a título de comparação, a referida meta de superávit de R$ 38 bi para o conjunto do período janeiro-dezembro de 2026 corresponde a tão somente os gastos realizados com juros durante 10 dias úteis de fevereiro passado. Uma completa inversão de valores éticos e de prioridades de políticas públicas.
Além de tal estrangulamento auto-imposto pelo governo no que se refere à limitação do uso do investimento estatal e da despesa pública para superar o estado atual de dominância do financismo sobre o país, o PLDO avança também na tentativa de consolidar um meticuloso quadro de terrorismo financeiro. Esse é o caso do longo tratamento oferecido à questão previdenciária. Sob o argumento da necessidade de apresentar projeções a respeito da situação futura da previdência social, o documento reproduz modelos enviesados pela abordagem monetarista e neoliberal, fazendo coro com as demandas recorrentes ecoadas pelo povo da banca privada por mudanças nas regras do sistema.
Assim, compreende-se as sucessivas falas de Haddad e Tebet quanto à necessidade de desvincular o salário dos benefícios previdenciários. Para atender aos interesses da Faria Lima, dirigentes do governo atuam para aprofundar o clima de antevéspera do apocalipse. Os responsáveis chegam a fazer projeções absolutamente irresponsáveis e sem nenhum lastro nos dados da realidade a respeito a situação fiscal para 2100! Uma loucura! E utilizam esses quadros para justificar uma ação mais dura no momento atual. Chegam ao requinte de apontar as necessidades de financiamento do RGPS para daqui a 75 anos. Ora, não conseguem acertar sequer uma previsão da inflação para o próximo semestre ou do PIB para o próximo ano, mas se arriscam a falar de “rombo previdenciário” para daqui 3/4 de século!

Por outro lado, para o debate que interessa de fato, não existe nenhuma menção a respeito dos efeitos perversos provocados pelas reformas trabalhistas de Temer e Bolsonaro sobre a contratação de empregos formais e, portanto, com condições de recolhimento para o sistema previdenciário. Nenhuma palavra a respeito dos efeitos negativos sobre o caixa previdenciário relativos às isenções de contribuição à previdência social concedidas às grandes empresas desde 2013. Enfim, tampouco nada sobre a obrigação constitucional de a União realizar seus aportes para a sustentação do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), tendo em vista seu caráter tripartite.
TERRORISMO FINANCEIRO: JUROS SEGUEM INTOCÁVEIS
O governo segue imobilizado, assistindo passivamente aos ataques aos direitos sociais empreendidos pelo financismo e por seus representantes encastelados na alta tecnocracia ministerial. Periodicamente saem ameaças aos pisos constitucionais da saúde e da educação, entremeados por tentativas de destruir a paridade entre salário-mínimo e benefícios da previdência social. A proposta da Ministra do Planejamento, Simone Tebet, sob a forma de um autêntico sincericídio de um golpe político-institucional contra as conquistas sociais ainda presentes na nossa Constituição, não recebeu nenhuma reprimenda ou admoestação da parte do Presidente da República. Disse ela em entrevista recente:
(…) “Então, nós temos uma janela de oportunidade que não é agora, é em novembro e dezembro de 2026, seja o presidente Lula o candidato reeleito, seja outro candidato eleito, de fazer o fiscal, cortar gastos, cortar o supérfluo, fazer uma política num arcabouço mais rigoroso, que não mate o paciente, obviamente” (…) [GN]
Desta forma, sob o olhar complacente de Lula, segue o baile da austeridade fiscal extrema e destruidora. Para quem se propunha durante a campanha eleitoral a realizar 40 anos em 4, talvez seja o momento de despertar para a realidade e começar a corrigir os desvios de seus colaboradores. Antes que seja tarde demais.
*Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal