CARLOS LOPES
Graças a um grande amigo, tenho participado, nas últimas semanas, de uma série de discussões literárias com alguns jovens, que se preparam para o vestibular. O tema dessa série são os livros indicados pela USP (Fuvest).
Esse sistema de literatura compulsória (na expressão de T.S. Eliot) às vésperas do exame para ingresso na Universidade, sempre me pareceu detestável. Mas, talvez, eu esteja errado.
Não sou contra qualquer “literatura compulsória” – na minha época de estudante havia, no que então se chamavam “ginásio” e “científico” (ou “clássico”), uma série de livros que éramos obrigados a ler, com uma prova sobre cada um deles.
Com certeza não entendi alguns (“Dom Casmurro” é o que me vem à cabeça), mas li todos, com uma exceção (“Amor de Perdição”, de Camilo Castelo Branco, que me pareceu insuportável).
Mas, naquela época, não havia “lista de livros para o vestibular”. Os textos eram apresentados na própria prova de português. Lembro que, no vestibular “unificado”, pelo qual entrei na gloriosa Nacional de Medicina (que já era, então, a Faculdade de Medicina da UFRJ, mas ninguém se acostumara ao novo nome), o texto foi uma crônica do poeta maranhense Lago Burnett.
Atualmente, pelo que pude perceber, o ensino de literatura, no curso médio, oscila entre o inexistente e o catastrófico. Daí, talvez, não seja ruim a existência de uma “lista de livros” para o vestibular.
O problema, naturalmente, é ler nove livros para quem não adquiriu anteriormente o hábito da leitura (exceto o da leitura da tela do celular, o que é mais um obstáculo).
Assim, é notável que “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado, e “A Relíquia”, de Eça de Queiroz, obras cômicas – beirando o picaresco -, de aguda crítica social, tenham sido os livros em que os jovens encontraram maior dificuldade. Mas não é surpreendente.
Não é necessário insistir na importância de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.
Menos notório é que, em “A Relíquia”, Eça de Queiroz sai do naturalismo que marcara os seus primeiros livros (“O Crime do Padre Amaro” e “O Primo Basílio”), consolidando o realismo que começara a desenvolver desde jovem.
[NOTA: Em algumas questões de provas de vestibular, trata-se o realismo e o naturalismo como se fossem a mesma coisa – ou a mesma escola. Isso não é, em absoluto, verdade. O exemplo mais evidente é “Madame Bovary”, de Flaubert, obra pioneira do realismo francês, mas que nada tem de naturalista.]
CONFERÊNCIA
Não estamos, aqui, relativizando os aspectos especificamente artísticos ou estéticos, em favor de um suposto “conteúdo”. Apenas, os aspectos estéticos também têm que ser considerados sob o ângulo histórico, social. A estética não se reduz a uma forma vazia, na qual pode-se colocar, ao modo de um recheio, qualquer conteúdo. A própria polêmica de Machado, em relação ao segundo livro de Eça, “O Primo Basílio”, é uma demonstração nesse sentido (v. O crítico Machado de Assis e a polêmica sobre o naturalismo).
Ou o próprio Eça de Queiroz, em sua conferência “A Literatura Nova ou o Realismo como Nova Expressão de Arte”, proferida a 12 de junho de 1871:
“A arte presente atraiçoa a revolução, corrompe os costumes. De tal forma, ou se há de tornar realista ou irá até à extinção completa pela reação das consciências. O modo de a salvar é fundar o realismo, que expõe o verdadeiro, elevado às condições do belo e aspirando ao bem, pela condenação do vício e pelo engrandecimento do trabalho e da virtude.”
Ou, na mesma conferência:
“Que é, pois, o realismo? É uma base filosófica para todas as concepções do espírito – uma lei, uma carta de guia, um roteiro do pensamento humano, na eterna região do belo, do bom e do justo. Assim considerado, o realismo deixa de ser, como alguns podiam falsamente supor, um simples modo de expor – minudente, trivial, fotográfico, isso não é realismo: é o seu falseamento. É o dar-nos a forma pela essência, o processo pela doutrina.
“O realismo é bem outra coisa: é a negação da arte pela arte; é a proscrição do convencionai, do enfático e do piegas. É a abolição da retórica considerada como arte de promover a comoção usando da inchação do período, da epilepsia da palavra, da congestão dos tropos. É a análise com o fito na verdade absoluta. Por outro lado, o realismo é uma reação contra o romantismo: o romantismo era a apoteose do sentimento; o realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para nos conhecermos, para que saibamos se somos verdadeiros ou falsos, para condenar o que houver de mau na nossa sociedade.”
[NOTA: A íntegra da conferência de Eça perdeu-se. As citações são baseadas em escritos dos que a assistiram, a começar por seu irmão, Alberto de Queiroz. São inestimáveis as reconstituições do escritor português António Salgado Júnior, autor de “História das Conferências do Casino”, e do brasileiro Vianna Moog, autor de “Eça de Queiroz e o Século XIX”.]
COIMBRA
Em momentos nos quais o obscurantismo – a ignorância, a estupidez – ameaça o país, não é de pouca ajuda ler Eça de Queiroz, Machado, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, José de Alencar e outros que iluminaram a nossa cultura (vale dizer, a nossa mente).
Em vida, Eça fazia mais sucesso no Brasil que em Portugal. E nunca houve – nem mesmo Camilo – escritor português com maior influência no Brasil.
Agripino Grieco, em um de seus artigos contra Salazar e seu “ideólogo cultural”, Antonio Ferro, observa que a república salazarista não pagaria a Eça de Queiroz para escrever contra ela, tal como fez a monarquia (Eça era diplomata, portanto, funcionário público).
Em termos, pois a monarquia pagava o salário de Eça, mas não o deixava falar livremente em Portugal. A proibição das “Conferências do Casino” – verdade que não exatamente pela palestra de Eça de Queiroz – é um exemplo de como era a democracia monárquica.
Mas, não nos apressemos. Contemos a história desde o começo.
Em 1865, Antonio Feliciano de Castilho – autor romântico considerado, na época, um dos três grandes da literatura portuguesa, com Almeida Garrett e Alexandre Herculano – atacou um grupo de escritores, ex-estudantes em Coimbra, sobretudo o líder do grupo, Antero de Quental.
Castilho tinha tal influência que um juízo seu podia acabar com a trajetória de um escritor – sobretudo quando se tratava de um ataque de 60 páginas, inserido como posfácio do livro (aliás, medíocre) de um seu protegido, sob a forma de uma carta ao principal editor de Portugal.
Nesse ataque, os jovens escritores eram chamados de “espíritos novéis e boçais, capazes de doutrina, mas sem doutrina”, entre outros mimos (a propósito, em geral os livros de história literária omitem que a principal motivação de Castilho não era estética, mas a de encaixar seu medíocre protegido, Pinheiro Chagas, como professor de literatura moderna em Coimbra, ao invés de Antero de Quental ou Teófilo Braga, que eram candidatos).
Havia, no ataque, também, um componente político: Castilho era um bajulador da monarquia. O grupo de Coimbra era, em geral, republicano, com alguns de seus membros – inclusive Eça de Queiroz – inclinados ao socialismo, ainda que na versão de Proudhon.
Antero de Quental não era um homem que deixasse passar um ataque – mesmo vindo de Castilho (ou, talvez, sobretudo vindo de Castilho).
Respondeu com o artigo “Bom Senso e Bom Gosto – Carta ao Excelentíssimo Senhor Antonio Feliciano de Castilho”.
“O que se ataca na escola de Coimbra (talvez mesmo v. ex.ª o ignore, porque há malévolos inocentes e inconscientes)”, escreveu Antero, “o que se ataca não é uma opinião literária menos provada, uma concepção poética mais atrevida, um estilo ou uma ideia. Isso é o pretexto, apenas. Mas a guerra faz-se à independência irreverente de escritores, que entendem fazer por si o seu caminho, sem pedirem licença aos mestres, mas consultando só o seu trabalho e a sua consciência. A guerra faz-se ao escândalo inaudito duma literatura desaforada, que cuidou poder correr mundo sem o selo e o visto da chancelaria dos grãos-mestres oficiais. A guerra faz-se à impiedade destes hereges das letras, que se revoltam contra a autoridade dos papas e pontífices, porque, ao que parece, ainda a luz de cima lhes não escreveu nas frontes o sinal da infalibilidade. Faz-se contra quem entende pensar por si e ser só responsável por seus atos e palavras…
“Agora quem move estes ridículos combates de frases é a vaidade ferida dos mestres e dos pontífices; é o espirito de rotina violentamente incomodado por mãos rudes e inconvenientes; é a banalidade que quer dormir sossegada no seu leito de ninharias; é a vulgaridade que cuida que a forçam – nós só lhe queremos puxar as orelhas!
“Isto, resumido em poucas palavras, quer dizer: combatem-se os hereges da escola de Coimbra por causa do negro crime de sua dignidade, do atrevimento de sua retidão moral, do atentado de sua probidade literária, da impudência e miséria de serem independentes e pensarem por suas cabeças. E combatem-se por faltarem às virtudes de respeito humilde às vaidades onipotentes, de submissão estúpida, de baixeza e pequenez moral e intelectual”.
Antero acertara na testa do establishment literário português.
FERIMENTOS
Nesse momento, aconteceu algo imprevisto: um dos amigos (e, aliás, ex-professor) de Eça, Ramalho Ortigão, incomodou-se com a referência de Antero, em sua resposta a Castilho, à cegueira do oponente (Castilho era cego desde os seis anos de idade, por sequela de sarampo) e atacou o colega de grupo.
Escreveu depois Antero de Quental:
“Ramalho Ortigão escreveu insolências bastante indignas a meu respeito num folheto a propósito da sempiterna questão Castilho. Eu vim ao Porto para lhe dar porrada. Encontrei, porém, o Camilo [Castelo Branco] o qual me disse que adivinhava o motivo da viagem e que antes das vias de fato, ele iria falar com o homem para ele dar satisfação. Aceitei. A explicação, porém, do dito homem pareceu-me insuficiente e dispunha-me a correr as eventualidades da bofetada quando me veio dizer o Camilo que o homem se louvava em C.J. Vieira e Antero Albano com plenos poderes de decidir a coisa e que fizesse eu o mesmo em dois amigos meus; na certeza de que uns e outros seriam considerados padrinhos de um duelo (!) no caso de se não entenderem a bem… Que can-can!”
O duelo foi no dia quatro de fevereiro de 1866 – e interrompido depois que Ramalho Ortigão foi ferido no braço pela espada de Antero de Quental. Os duelistas consideraram que a honra de ambos fora lavada.
O quase sempre gaiato Camilo Castelo Branco colocou o episódio no início de seu romance “A Doida do Candal”, publicado no ano seguinte:
“Em 1866, na belicosa cidade do Porto, defrontavam-se de espada nua dois escritores portugueses de muitas excelências literárias e grande honra.
“Correu algum sangue. Deu-se por entretida a curiosidade pública e satisfeita a honra convencional dos combatentes.
“Alguns dias depois, ia eu de passeio na estrada de Braga e levava comigo a honradora companhia de um cavalheiro que lustra entre os mais consagrados das províncias do Norte.
“No sítio da ‘Mãe-d’água’ apontei na direção de um planalto encoberto pelos pinhais e disse ao meu companheiro:
“— Foi por ali que há dias a ‘Crítica Portuguesa’ esgrimiu com o ‘Ideal Alemão’.
“— Ah! — disse o meu amigo, sofreando as rédeas do cavalo — foi ali a brincadeira?
“— Brincadeira!… Então Vossa Excelência entende que, nos duelos, quem não morre brinca…
“— Quem não morre, diz você… Pois morre alguém em duelos em Portugal?
“— Não me consta; mas isso prova que os combatentes exercitam as armas entre si tão magistralmente que não é possível matarem-se.”
CASINO
O realismo e o naturalismo surgem em Portugal não apenas como reação ao ultra-romantismo, mas também como reação ao atraso do país.
O sinal maior disso – ou a prova maior – são as “Conferências do Casino” ou “Conferências Democráticas do Casino”, realizadas em 1871 em uma sala do Casino Lisbonense, no Largo da Abegoaria, Lisboa.
O convite-manifesto foi assinado por Antero de Quental, Eça de Queiroz, Teófilo Braga, Augusto Soromenho, Adolfo Coelho, Augusto Fuschini, Germano Vieira de Meireles, Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins, Manuel do Arriaga e Salomão Saragga.
Esse manifesto era o seguinte:
Ninguém desconhece que se está dando em volta de nós uma transformação política, e todos pressentem que se agita, mais forte do que nunca, a questão de saber como deve regenerar-se a organização social.
Sob cada um dos partidos que lutam na Europa, como em cada um dos grupos que constituem a sociedade de hoje, há uma ideia e um interesse que são a causa e o porquê dos movimentos.
Pareceu que cumpria, enquanto os povos lutam nas revoluções, e antes que nós mesmos tomemos nelas o nosso lugar, estudar serenamente a significação dessas ideias e a legitimidade desses interesses; investigar como a sociedade é, e como ela deve ser, como as Nações têm sido, e como as pode fazer hoje a liberdade; e, por serem elas as formadoras do homem, estudar todas as ideias e todas as correntes do século.
Não pode viver e desenvolver-se um povo isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo; o que todos os dias a humanidade vai trabalhando, deve também ser o assunto das nossas constantes meditações.
– Abrir uma tribuna, onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam este momento do século, preocupando-nos sobretudo a transformação social, moral e política dos povos;
– Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada;
– Procurar adquirir a consciência dos fatos que nos rodeiam, na Europa;
– Agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência Moderna;
– Estudar as condições da transformação política, econômica e religiosa da sociedade portuguesa;
Tal é o fim das Conferências Democráticas.
GARRETT
As duas primeiras conferências couberam a Antero de Quental.
Na primeira, uma introdução sobre o que se poderia esperar das outras, Antero firmou que o ponto central seria “a revolução” (a íntegra dessa conferência não foi publicada; o que se sabe dela foi retirado de notícias dos jornais da época).
Na segunda, intitulada “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos”, Antero apontou:
“Oponhamos ao catolicismo a ardente afirmação da alma nova, a consciência livre, a contemplação direta do divino pelo humano, a filosofia, a ciência, e a crença no progresso, na renovação incessante da humanidade pelos recursos inesgotáveis do seu pensamento, sempre inspirado. Oponhamos à monarquia centralizada a federação republicana de todos os grupos autonômicos, de todas as vontades soberanas, alargando e renovando a vida municipal. Finalmente, à inércia industrial oponhamos a iniciativa do trabalho livre, a indústria do povo, pelo povo, e para o povo, não dirigida e protegida pelo Estado, mas espontânea, organizada de uma maneira solidária e equitativa.”
Como já foi apontado, a inspiração dessa conferência – e também a de Eça – era o proudhonismo.
Entretanto, não foi essa a conferência que causou escândalo, mas a seguinte, a de Augusto Soromenho, intitulada “A Literatura Portuguesa”.
O escândalo não foi causado pela concepção de que somente com a transformação da sociedade portuguesa seria possível uma revitalização de sua literatura – mas pela omissão do autor a Almeida Garrett (que morrera em 1854, como visconde de Almeida Garrett) na história da literatura portuguesa.
Garrett era uma espécie de Deus lusitano da literatura romântica. Porém, Soromenho não lhe concedeu importância. Nem o mencionou.
REALISMO
Para um resumo mais abrangente da conferência seguinte – a de Eça de Queiroz sobre o realismo – recorremos ao que escreveu Vianna Moog em seu “Eça de Queiroz e o Século XIX”.
Chamamos a atenção, aqui, sobre como, em 1871, mesmo ano da Comuna de Paris, Eça de Queiroz está próximo de Flaubert e Courbet – isto é, do realismo propriamente dito, anterior ao naturalismo, ainda que em alguns momentos as concepções naturalistas (sobretudo através de Taine) já apareçam em suas proposições estéticas.
Vejamos o texto de Moog:
“Na reunião seguinte falou Eça. Discutiu o realismo, como nova expressão de arte. Era a primeira vez que o novo credo disputava em Portugal as honras de teoria decisiva e definitiva.
“Para Eça, o realismo tal como ele o compreendia, não era simplesmente um processo de forma, mas sim uma base filosófica para todas as concepções do espírito, uma lei, uma carta de guia, um roteiro do pensamento humano na eterna religião artística do belo, do bom e do justo. O realismo era a arte do presente: poder-se-ia até dizer que do futuro. Ele coincidira em França com o despertar do espírito público. Não significava, como alguns falsamente supunham, um simples modo de expor, minudente, trivial, fotográfico. Isto era o falseamento do realismo, o seu abastardamento: a forma pela essência, o processo pela doutrina. O realismo era outra coisa: representava a proscrição do convencional, do falso, do oco, do enfático, do lacrimoso, do piegas; a abolição da retórica como arte de promover a comoção pela inchação do período, pela epilepsia da palavra, pela congestão das frases. Ao invés da lei gramatical do belo, tomada como caminho do justo, segundo a tendência da velha literatura, a lei moral e científica do justo, recebida como única aspiração do belo. O romantismo fora a apoteose do sentimento. O realismo devia ser a anatomia do coração.
“Para explicar a doutrina do realismo, aí estava o romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert, no qual o adultério, tantas vezes decantado pelos românticos como um infortúnio poético que comove perniciosamente a susceptibilidade das almas cândidas, aparece pela primeira vez debaixo da sua forma anatômica, nu, retalhado e descosido fibra a fibra por um escalpelo implacável. O efeito é surpreendente O amor ilegítimo e venal, com o seu pavoroso cortejo de alucinações, de remorsos, de terrores, de aviltamentos, de vergonhas, e de ruínas, surge aos olhos do leitor, gotejante de miséria e de podridão, pavoroso como um espectro, diante do qual instintivamente se recua com repulsão e horror. Explica assim o que foi o processo do livro Madame Bovary e a significação que teve no movimento de reação contra o romantismo. Ele importou na aparição do realismo.
“— O realismo é a crítica do homem, é a arte que nos pinta a nossos próprios olhos para nos conhecermos, a ver se somos verdadeiros ou falsos, para condenar o que a sociedade tem de mau. O seu processo é a análise, o seu fito a verdade absoluta.
“Segundo Eça, a teoria do realismo tinha as suas condições: primeiro devia tomar o assunto na vida contemporânea, para ser perfeitamente do seu tempo (mal sabia ele que Flaubert já estava com a sua Salambô, quase concluída); depois, proceder pela experiência, pela fisiologia, pela ciência dos temperamentos e dos caracteres; e, enfim, ter o ideal moderno que rege as sociedades, isto é, justiça e verdade.
“O romantismo era o contrário de tudo isso. Estava esgotado porque se despedira da realidade do mundo presente. Os escritores fugiam espavoridos do seu tempo, refugiando-se cada qual onde mais lhe aprouvesse. Musset refugia-se no conhaque, e por fim ele e outros escondem-se no suicídio.
“— Estabelece-se a perpétua isolação entre o artista e a sociedade, o desrespeito do trabalho, da moral, da família, da ciência; vem a pior das coisas — a arte pela arte, sem o intuito da influência benéfica que possa causar e só com o da impressão que possa produzir.
“— O segundo império dá-nos os cépticos corrompidos, materialistas; sobe a política boêmia e explora o povo. O egoísmo, o amor ao dinheiro, são a palavra de ordem em todos os ramos da atividade; o luxo afoga a dignidade; não há moral nem consciência; a política domina tudo, nasce o mundo odioso das cocottes e dos petits-crevés — mundo que há pouco fugia em presença dos prussianos e contemplava, como um espetáculo de prazer, a destruição de Strasburgo. Aparece a literatura devassa do boulevard, que se sintetiza na ostentação da impudica Rigolboche.
“— A arte deve corrigir e ensinar e não ser só destinada a causar impressões passageiras, a dar-se unicamente ao prazer dos sentidos. Deve visar um fim moral. Se a arte não tem moral, perde a sociedade. Deve-se tentar a regeneração dos costumes pela arte. Quando a ciência nos disser: a ideia é verdadeira; a consciência nos segredar: a ideia é justa; e a arte nos bradar: a ideia é bela — teremos tudo.
“Eça cita como exemplo das falsidades na arte o quadro do pintor Davi, representando Napoleão I, na passagem dos Alpes, um vulto homérico como que topetando com a fronte as nuvens e pondo o tacão da bota na mais elevada crista do píncaro mais elevado, quando a verdade é que ele os atravessou acachapado e escondido entre o último dos seus soldados. Para apoiar a sua doutrina fez a descrição cintilante dos quadros de Courbet — A volta da conferência, O enterro e Os britadores de pedra — telas imortais, inspiradas pela ideia central da arte nova: a justiça.
“— A arte presente só poderá salvar-se com o realismo, que é a escola da revolução. Por enquanto a arte está em oposição ao espírito do tempo.
“— O espírito do tempo é a revolução, que anda por baixo de tudo, convulsionando e abalando, sem que nenhuma coisa nem alguém possa eximir-se a ela. As nossas consciências estão se formando por ela. Ela é a alma do século XIX.
“Ao fim de duas horas, Eça concluía que a arte presente atraiçoava a revolução, corrompia os costumes e havia de morrer pela reação da consciência.
“— O meio de a salvar é fundar o realismo, que expõe o verdadeiro, elevado às condições do belo e aspirando ao bem pela condenação do vício e pelo engrandecimento do trabalho e da virtude.
“Falando com limpidez incomparável, espontaneidade e vigor, para um auditório onde havia senhoras, Eça representava admiravelmente o seu papel de apóstolo do realismo. O seu próprio aspecto externo parecia traduzir-lhe a firmeza interior no novo credo. A moda dos românticos era apresentarem-se com cabeleira comprida, descendo sobre o pescoço, o bigode descaído, a pera aguçada, a roupa preta e um rosto o mais possível melancólico. Eça, entretanto, envergava uma alinhadíssima sobrecasaca abotoada, colete branco, plastrão de cetim, sapatos de verniz, luvas cor de chumbo e colarinho alto. Em tudo fora fiel aos princípios expostos.
“Em tudo? Não. Antero não podia conformar-se com a imprudência e ligeireza com que ele, quase que recitando o que lera em Du principe de l’art et sa destination sociale, de Proudhon, fez a descrição minuciosa de três quadros de Courbet, sem nunca ter posto os olhos numa tela de Courbet. Que diabo! Não estavam mais em Coimbra, onde discutiam pintura através dos livros de Taine.
“Mas, apesar da ousadia ou possivelmente por causa dela, a conferência de Eça foi aplaudidíssima e muito comentada pelos jornais, sobretudo pela Revolução de Setembro, onde colaborava o seu irmão Alberto de Queiroz, sempre constante na admiração que lhe tributava.”
CASINO FECHADO
A conferência seguinte foi de Adolfo Coelho, sobre o ensino. Dizem alguns que não sobrou pedra sobre pedra do sistema de ensino português da época.
Porém, as Conferências do Casino terminaram abruptamente na próxima, que não foi realizada, pois o primeiro-ministro (e ministro do Interior), marquês de Ávila e Bolama, mandou fechar o Casino – o tema dessa última conferência, a cargo de Salomão Saragga, era “Os historiadores críticos de Jesus”.
Além dessa, deixaram de ser realizadas outras quatro conferências: “O socialismo”, por Jaime Batalha Reis; “A república”, por Antero de Quental; “A instrução primária”, por Adolfo Coelho; e “A dedução positiva da ideia democrática”, por Augusto Fuschini.