Ter um troglodita na Presidência da República tem várias consequências e vários efeitos.
Um deles é valorizarmos mais as conquistas da civilização, a cultura, a arte, a ciência – e, por incrível que pareça, até mesmo a educação no trato com os outros seres humanos.
Pode não ser o seu caso, estimado leitor. Mas é o meu e de boa parte dos que têm de suportar um sujeito obtuso e estúpido, que, tudo indica, não leu um livro sequer na vida (se leu, ele disfarça muito bem), no governo.
Deve ser por isso que, mais do que antes, agradeço qualquer oportunidade de conquistar alguma cultura.
Em novembro do ano passado, depois de um debate com alguns jovens sobre “A Relíquia”, de Eça de Queiroz, escrevi um breve texto, com a intenção de facilitar o entendimento da obra – e, portanto, da vida – desse grande autor da língua portuguesa (v. HP 17/11/2018, Eça de Queiroz e a revolução: da Questão Coimbrã às Conferências do Casino).
Entretanto, esse texto vai até 1871, quando Eça ainda não escrevera “O Crime do Padre Amaro” (1875) ou “O Primo Basílio” (1878), muito menos “A Relíquia” (1887).
Este ano, chamado outra vez a debater “A Relíquia” (o livro continua fazendo parte da lista do vestibular da USP), dei uma olhada na literatura crítica, sobretudo no ensaio de Álvaro Lins, de 1945, “As ideias de Eça de Queiroz ante o seu tempo” (publicado, depois, no livro “O Relógio e o Quadrante”, Civilização Brasileira, 1964, p. 216).
Não lembro se consultei o texto de Álvaro Lins no ano passado. É pouco provável, mas a memória, depois de certa idade, costuma, às vezes, ser enganosa, mais por supressão do que existiu que por acrescentamento daquilo que não existiu.
O ensaio de Lins é muito bom, inclusive porque vai contra certas abordagens que pretendem ver um Eça de Queiroz conformista na velhice. Ele cita um texto de Eça, pouco antes de morrer:
Depois, a presença angustiosa das misérias humanas, tanto velho sem lar, tanta criancinha sem pão, e a incapacidade ou indiferença de Monarquias e Repúblicas para realizar a única obra urgente do mundo – “casa para todos, pão para todos”, lentamente me tem tornado um vago anarquista entristecido, idealizador, humilde, inofensivo…
Eça de Queiroz faleceu em agosto de 1900. Daí, Álvaro Lins chamar essa menção ao anarquismo de “o seu socialismo um tanto céptico”. Na época, para a maioria das pessoas, a separação de terrenos, entre anarquismo e socialismo, não era tão nítida quanto hoje.
Porém, dificilmente se pode considerar Eça de Queiroz um autor “inofensivo”. Nisso, o grande Eça subestimava a própria obra.
Em sua carta a Teófilo Braga, de 1878, sobre “O Primo Basílio”, ele define o seu propósito de artista.
Eça de Queiroz estava, então, na Inglaterra, onde era diplomata.
Newcastle, 12 de março de 1878.
Meu caro Teófilo Braga.
É de você que tenho recebido, depois das minhas duas tentativas de arte, as cartas mais animadoras e mais recompensadoras. É você, como o nosso belo e grande Ramalho, que mais me tem empurrado pra diante. Eu nunca respondi à sua excelente carta sobre o Padre Amaro; contava então ir a Lisboa, e lá conversar largamente consigo; o homem propõe, a ocasião dispõe – e as poucas semanas, que aí estive passaram, sem nos encontrarmos. Talvez você imaginasse que a sua carta de então me tinha passado sobre o espírito como água sobre guta-percha. Está bem enganado: embebi-me dela. Ela deu-me valor e arranque para me atirar ao Primo Basílio – com a consolação de que vale a pena escrever um livro quando se tem um leitor como você.
A sua última foi para mim um grande alívio. Eu estava-lhe com receio: como todos os artistas, creia, eu trabalho para três ou quatro pessoas, tendo sempre presente a sua crítica pessoal. E muitas vezes, depois de ver o Primo Basílio impresso, pensei: – “o Teófilo não vai gostar!” Com o seu nobre e belo fanatismo da Revolução, não admitindo que se desvie do seu serviço nem uma parcela do movimento intelectual – era bem possível que você vendo o Primo Basílio separar-se, pelo assunto e pelo processo, da arte de combate a que pertencia o Padre Amaro, a desaprovasse. Por isso a sua aprovação foi para mim uma agradável surpresa, e todavia a sua aprovação é mais ao processo que ao assunto, e você vendo-me tomar a família como assunto, pensa que eu não devia atacar esta instituição eterna, e devia voltar o meu instrumento de experimentação social contra os produtos transitórios, que se perpetuam além do momento que os justificou, e que de forças sociais passaram a ser empecilhos públicos.
Perfeitamente: mas eu não ataco a família – ataco a família lisboeta – a família lisboeta produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos que se contradizem, e mais tarde ou mais cedo centro de bambochata. No Primo Basílio, que apresenta, sobretudo, um pequeno quadro doméstico, extremamente familiar a quem conhece bem a burguesia de Lisboa; – a senhora sentimental, mal-educada, nem espiritual (porque cristianismo já o não tem; sanção moral da justiça, não sabe o que isso é), arrasada de romance, lírica, sobre-excitada no temperamento pela ociosidade e pelo mesmo fim do casamento peninsular que é ordinariamente a luxúria, nervosa pela falta de exercício e disciplina moral, etc., etc. – enfim a burguesinha da Baixa; por outro lado o amante – um maroto, sem paixão nem a justificação da sua tirania, que o que pretende é a vaidadezinha de uma aventura, e o amor grátis; do outro lado a criada, em revolta secreta contra a sua condição, ávida de desforra; por outro lado a sociedade que cerca estes personagens – o formalismo oficial (Acácio), a beatice parva de temperamento irritado (D. Felicidade), a literaturinha acéfala (Ernestinho), o descontentamento azedo, e o tédio de profissão (Julião) e às vezes quando calha, um pobre bom rapaz (Sebastião). Um grupo social, em Lisboa, compõe-se, com pequenas modificações, destes elementos dominantes. Eu conheço vinte grupos assim formados. Uma sociedade sobre estas falsas bases, não está na verdade: atacá-las é um dever. E neste ponto o Primo Basílio não está inteiramente fora da arte revolucionária, creio. Amaro é um empecilho, mas os Acácios, os Ernestos, os Saavedras, os Basílios são formidáveis empecilhos; são uma bem bonita causa de anarquia na meia da transformação moderna; merecem partilhar com o Padre Amaro da bengalada do homem de bem.
A minha ambição seria pintar a sociedade portuguesa, tal qual a fez o Constitucionalismo desde 1830 e mostrar-lhe como num espelho, que triste país eles formam – eles e elas. É o meu fim nas Cenas da vida portuguesa. É necessário acutilar o mundo oficial, o mundo sentimental, o mundo literário, o mundo agrícola, o mundo supersticioso – e com todo o respeito pelas instituições que são de origem eterna, destruir as falsas interpretações e falsas realizações, que lhe dá uma sociedade podre. Não lhe parece você que um tal trabalho é justo?
Enquanto ao processo – estimo que você o aprove. Eu acho no Primo Basílio uma superabundância de detalhes, que obtive, e abafo um pouco a ação; o meu processo precisa simplificar-se, condensar-se – e estudar isso; o essencial é dar a nota justa; um traço justo e sóbrio, cria mais que a acumulação de tons e de valores – como se diz em pintura. Mas isto é querer muito. Pobre de mim – nunca poderei dar a sublime nota da realidade eterna, como o divino Balzac – ou a nota justa da realidade transitória como o grande Flaubert! Estes deuses e estes semideuses da arte estão nas alturas – e eu, desgraçadinho, rabeio nas ervas íntimas. E, todavia, se já houve sociedade que reclamasse um artista vingador é esta! E sobretudo, vista de longe no seu conjunto, e contemplada de um meio forte como este aqui (sejam quais forem os seus grandes males, forte decerto) que contrista, achá-la tão mesquinha, tão estúpida, tão convencionalmente pateta, tão grotesca e tão pulha!
Alegra-me que você queira escrever alguma coisa sobre o Basílio; a sua opinião, publicada, daria ao meu pobre romance uma autoridade imprevista. Dar-lhe-ia um direito de existência; e de todos os defeitos, faltas, ou erros que você notar – tomarei cautelosamente nota.
Eu tenho a paixão de ser lecionado; e basta darem-me a entender o bom caminho para eu me atirar para ele. Mas a crítica, ou a que em Portugal se chama a crítica, conserva sobre mim um silêncio desdenhoso.
Como você viu bem o caráter do Basílio! Está claro que a fortuna nunca o poderia ter moralizado; a sua fortuna, como você diz, foi um bambúrrio; era pulha antes, um pulha pobre – depois tornou-se apenas um pulha rico. Pessoas amigas escrevem-me dizendo, que parece incrível que um homem que trabalhou no Brasil com valor, seja no fundo um canalha! Estranha opinião! A Bahia considerada como a Fonte Santa da Purificação…
Basta de cavaqueira. Se você publica algum livro por esta ocasião – mande-mo; e se tiver para aí alguns volumes da sua História da literatura a de mais, e que lhe não façam falta, dê-os ao Ramalho que ele nos manda. Eu, os que tinha, perdi-os estupidamente, com as obras de Shakespeare, de V. Hugo, num caixote, caminho do Havre, e outras obras mais. Escrevi para o Porto a um amigo a mandá-los pedir; e nunca me respondeu sequer: e eu preciso deles para um pequeno trabalho. Se não se esquecer – lembre-se. Um abraço do
Seu grande admirador, e dedicado amigo velho,
Eça de Queirós.
Teófilo Braga, além de escritor, filósofo, sociólogo e crítico literário, era dirigente do Partido Republicano Português – e após a queda da monarquia, em outubro de 1910, seria o primeiro presidente da República Portuguesa.
Na carta de Eça para Teófilo está clara a consciência que ele alcançara sobre o papel da arte. Mais que uma profissão de fé naturalista (presente no modo em que ele frisa tipos como personagens), é uma declaração de que, para ele, a arte deveria ter uma função social e política.
Não há nada, nessa carta, que tenha odor daquele determinismo biológico de outros naturalistas, em geral já esquecidos há muito.
Álvaro Lins sublinha, sobre isso, o papel que teve, para Eça, o jornalismo, algo em que ele se parece com Machado de Assis.
O resultado dessa observação é que, depois do debate com os jovens (e graças a uma gripe colossal, que me impediu de fazer outras coisas), acabei lendo a coletânea de artigos que Eça de Queiroz escreveu para a “Gazeta de Notícias”, do Rio de Janeiro (v. Eça de Queiroz, Cartas de Inglaterra, Lello, 1905).
Durante 16 anos (1880-1896), Eça de Queiroz escreveu para os brasileiros em um jornal brasileiro – ele que, em vida, sempre foi muito mais respeitado e famoso no Brasil que em Portugal.
Aqui, a influência de Eça de Queiroz na literatura foi tão grande que a principal crítica ao romance de estreia de Graciliano Ramos, Caetés, foi a de que era um pastiche do escritor português – algo que foi admitido, pelo menos em parte, por Graciliano.
Graciliano, aliás, muito antes de Caetés, revelou seu julgamento sobre Eça, em um artigo de 1915 para o “Jornal de Alagoas”, quando, em Lisboa, a estátua de Eça de Queiroz foi apedrejada e parcialmente destruída.
Escreveu Graciliano Ramos:
Nunca ninguém pensou talvez que em Portugal houvesse homens capazes de cometer semelhante atentado, atentado que a nossos olhos tem quase as proporções de um sacrilégio. Lá e aqui, movidos por um sentimento extraordinário, sentem-se todos os indivíduos que leem irresistivelmente fascinados por aquela figura simpática que, com seu eterno sorriso sarcástico nos lábios, parece zombar de tudo, perscrutando todos os ridículos dos homens com seu inseparável monóculo.
Ele não é somente o escritor mais querido dos dois países, é uma individualidade à parte, adorada, idolatrada. Temos para com ele uma admiração que chega às raias do fanatismo.
Seus personagens não são, por assim dizer, entidades fictícias, criações de um cérebro humano – são indivíduos que vivem a nosso lado, que têm os nossos defeitos e as nossas virtudes, que palestram conosco e nos transmitem ideias mais ou menos iguais às nossas” (cf. Graciliano Ramos, Linhas Tortas, Record, 13ª edição, 1986, p. 15).
Só de passagem, e para aproveitar a viagem, o início desse artigo de Graciliano parece ultrapassar o momento e o acontecimento que o motivaram:
“Os antigos religiosos fanáticos que transformavam em estrebarias os templos de seus adversários, que escreviam injúrias nas paredes das igrejas, que misturavam aos ossos de santos carcaças de animais não desapareceram da terra sem que deixassem a certos homens de hoje uma herança de ódio, de intolerância, de todos os sentimentos torpes que determinam vinganças mesquinhas” (cf. op. cit., p. 14).
Mais exato ainda porque, já nessa época, Graciliano reconhecia o papel da violência na História – este é o conteúdo do parágrafo que vem a seguir, no mesmo artigo. Mas não é da violência em geral, mas da barbárie, condensada na destruição da estátua de Eça de Queiroz, que ele está falando.
Porém, voltemos ao jornalismo brasileiro de Eça de Queiroz.
Escolhemos o texto abaixo para oferecer aos nossos leitores porque expõe, diretamente, o modo pelo qual Eça de Queiroz via as relações entre Brasil, Portugal e a Inglaterra.
É, além do mais, um exemplo do – hoje – famoso humor de Eça.
Porém, houve uma dúvida: se a menção de Eça à “teoria favorita da Inglaterra e de todas as nações de rapina” não iria levar água ao esgoto (não há moinho) bolsonarista, que se empenha em uma falsa campanha, supostamente pela “soberania nacional” (e que se dane a democracia, logo, também a soberania nacional).
Porém, a independência nacional, assim como o verde-amarelo, pertence a nós, o povo brasileiro.
Se algum canalha tentar usá-los para seus torpes fins, em tudo opostos aos do país, da Nação, do povo, mais uma razão para que os brasileiros os afirmem como seus.
Abaixo, o texto de Eça de Queiroz, sobre o artigo do The Times a respeito do Brasil, publicado na Gazeta de Notícias, em 1880.
Na época, o The Times era o órgão da grande burguesia inglesa, a dominante no mundo – como diz Eça, era um órgão da City, isto é, do centro financeiro inglês. Mas isso não acontecia apenas do ponto de vista daquilo que o Times publicava.
Como notam Juan Carlos Herken Krauer e María Isabel Giménez de Herken, em seu livro sobre a Guerra do Paraguai, a rede de correspondentes e enviados do The Times funcionava como uma espécie de “agência de inteligência” do governo inglês e da burguesia inglesa (v. Juan Carlos Herken Krauer e María Isabel Giménez de Herken, Gran Bretaña y la Guerra de la Triple Alianza, Editorial Arte Nuevo, Asunción, 1983).
Mas, como diria Eça, basta de cavaqueira. Vamos ao artigo do homem.
(C.L.)
O Brasil e Portugal
EÇA DE QUEIROZ
Os jornais ingleses desta semana têm-se ocupado prolixamente do Brasil. Um correspondente do Times, encarregado por esta potência de ir fazer pelo continente americano uma “vistoria social” definitiva deu-nos agora, em artigos repletos e maciços, o resultado do seu ano de jornadas e de estudos.
O último artigo é dedicado ao Brasil: eu, que nunca visitei o império, não tenho naturalmente autoridade para apreciar essas revelações (porque o correspondente toma a atitude de um revelador) sobre a região, a cultura, os produtos, o comércio, a emigração, o caráter nacional, o nível de educação, a situação dos portugueses, a dinastia, a Constituição, a república, et de omni re braziliensi e não posso transcrevê-las também porque elas enchem, no Times, vasto como é, mais espaço que o próprio Brasil ocupa no território da América do Sul. Esse artigo excitou o interesse e os comentários da Pall-Mall Gazette e de outros jornais, e aí se rompeu a falar do Brasil com simpatia, com curiosidade, com essas admirações ingênuas pela sua rutilante flora, esse pasmo quase assustado pela sua vastidão, que decerto tiveram nossos avós, quando o bom Pedro Álvares Cabral, largando a procurar o Preste João, voltou com a rara nova das terras entrevistas do Brasil…
Devendo mostrar-lhes a opinião presente da Inglaterra sobre o Brasil, desses artigos floridos, escolho o do Times, anotando e glosando o trabalho do seu enviado. (É deste modo respeitoso que se deve falar sempre de um correspondente do Times).
Começa, pois, o grande jornal da City por dizer — “que a descrição do vasto Império do Brasil com que foi fechada a série das cartas sobre o continente americano, deve ter feito transbordar o sentimento de admiração pelo esplendor etc…” Seguem-se aqui naturalmente vinte linhas de êxtase. É, em prosa, a ária do 4º ato da Africana: Vasco da Gama, de olhos úmidos e coração suspenso no enlevo de tanta flor prodigiosa, de tão raros cantos d’aves raras…
Depois vem o espanto clássico pela extensão do Império: “Só o simples tamanho de um tal domínio (exclama) na mão de uma diminuta parcela de humanidade é já em si um fato suficientemente impressionador!”
E todavia esta admiração do Times pelo gigante é misturada a um certo patrocínio familiar, de ser superior, — que é a atitude ordinária da Inglaterra e da imprensa inglesa para com as nações que não têm duzentos couraçados, um Shakespeare, um Bank of England, e a instituição do roast-beef… Neste caso do Brasil, o tom de proteção é raiado de simpatia…
Depois o artigo rompe de novo num hino: “A natureza no Brasil não necessita do auxílio do homem para se encher de abundâncias e se cobrir de adornos !… Para seu próprio prazer planta, ela mesma, luxuriantes parques! E não há recanto selvagem que não faça envergonhar as mais ricas estufas da Europa…” Isto é decerto exato: mas o Times, receando que os seus leitores viessem a supor que a natureza do Brasil está de tal modo repleta, tão indigestamente atestada, que não permite, que se recusa com furor a receber no seu ventre empanturrado uma semente mais sequer – apressa a tranquilizá-los: “Mas (diz este sábio jornal judiciosamente) ainda que a natureza dispense bem todo o trabalho do homem, que outros solos menos generosos requerem para se abrir em flores e frutos, – não o repele todavia”. Isto sossega os nossos ânimos: ficamos assim certos que nenhum fazendeiro, nos distantes cafezais, ao atirar à terra, a terra mãe, com a enxadada fecundadora a semente inicial, corre o risco atroz de ser por ela atacado à pedrada ou a golpes de bananeira… Nem outra cousa se poderia esperar da doce e pacífica Ceres.
Tendo assim floreado, de penacho oratório ao vento, o Times investe com as ideias práticas. E começa por declarar, que, segundo o copioso relatório do seu correspondente, “o que surpreende na América do Sul, (se excetuarmos aquela tira de terra que constitui a república do Chile, e alguns bocados da costa do enorme império do Brasil) é a grandeza de tais recursos comparada à desapontadora magreza dos resultados”. Seria fácil responder com a escassez da população. O Times de resto sabe-o bem, porque nos fala logo dessa população nas repúblicas espanholas, mas não a acha escassa; o que acha é torpe!… A pintura que nos dá do Peru, Bolívia, Equador e consortes é ferina e negra: “Essa gente vive numa indolência vil, que não é incompatível com muita arrogância e muita exagerada vaidade! Desse torpor só rompe, por acesso de frenesi politico. Todo o trabalho aí empreendido para fazer produzir a natureza é dos estrangeiros: os naturais limitam-se a invejá-los, a detestá-los por os verem utilizar oportunidades que eles mesmos não se quiseram abaixar a usar!” Isto é cruel: não sei se é justo: mas entre estas linhas palpita todo o rancor de um inglês possuidor de maus títulos peruanos. “E se o nosso correspondente (continua o artigo) oferece de alto o Brasil à nossa admiração, não é em absoluto, é relativamente, em contraste com os países que quase o igualam em vantagens materiais, como o Peru e o Rio da Prata, mas onde a discórdia intestina devora e destrói todo o progresso nascido da atividade estrangeira. O Brasil é português e não espanhol: e isto explica tudo. O seu sangue europeu vem daquela parte da Península Ibérica em que a tradição é a da liberdade triunfante, e nunca suprimida”. O Times aqui abandona-se com excesso às exigências rítmicas da frase: parece imaginar que desde a batalha de Ourique temos vindo caminhando numa larga e luminosa estrada de ininterrompida democracia!…
Mas, enfim, continua: “Quando o Brasil quebrou os seus laços coloniais não tinha a esquecer feias memorias de tirania e rapacidade; nem teve de suprimir genericamente todos os vestígios de um mau passado”. Com efeito, pobres de nós! Nunca fomos decerto para o Brasil senão amos amáveis e timoratos.
Estávamos para com ele naquela melancólica situação de um velho fidalgo, solteirão arrasado, desdentado e trôpego, que treme e se baba diante de uma governanta bonita e forte. Nós verdadeiramente é que éramos a colônia: e era com atrozes sustos do coração que, entre uma Salve Rainha e um Lausperene, estendíamos para lá a mão à esmola…
O Times prossegue: “Ainda que independente, o Brasil ficou português de nacionalidade e semi-europeu de espírito. Pelo simples fato de se sentir português, o povo brasileiro teve, e conserva, o instinto do grande dever que lhe incumbe: tirar o partido mais nobre da sua nobre herança… Sejam quais tenham sido os erros de Portugal, não se pode dizer que se tenha jamais contentado com o mero número das suas possessões, sem curar de lhes extrair os proventos…” O Times aqui dormita, como o secular Homero.
E justamente o que nos preocupa, o que nos agrada, o que nos consola é contemplar simplesmente o número das nossas possessões: pôr-lhes o dedo em cima, aqui e além, no mapa; dizer com voz de papo, ore rotundo: “Temos oito; temos nove: somos uma nação colonial, somos um povo marítimo!…” Enquanto a extrair-lhes os proventos, na frase judiciosa do Times, desses detalhes miseráveis não cura o pretor, nem os netos de Afonso de Albuquerque!… Mas prossegue o Times: “O império colonial de Portugal talvez tenha sido outrora caracterizado por desfortuna — quase nunca por estagnação.” Talvez é bom: com o império do Oriente no nosso passado, que é um dos mais feios monumentos de ignomínia de todas as idades… Continuemos.
“Da origem donde o Brasil deriva a sua atividade, deriva também (o que não é menos importante) o respeito pela opinião da Europa. O vadio das ruas de Lima, de Caracas ou de Buenos Aires nutre um soberano desprezo pelos juízos que a Europa possa formar das suas tragicomédias políticas… Não tem consciência de cousa alguma, a não ser do seu sangue castelhano… Sente decerto o inconveniente de ser expulso do crédito e das bolsas da Europa… Mas avalia esta circunstância apenas pelos embaraços momentâneos que ela lhe traz. O financeiro brasileiro, porém, esse presta uma tão respeitosa atenção ao temperamento das bolsas de Paris e Londres, como ao da mesma praça do Rio de Janeiro…”
O Times vê neste sintoma a consideração que o Brasil tem pela opinião da Europa.
Mas, onde o Times se engana é quando pretende que o Brasil deve ao seu sangue português esta bela qualidade de obedecer aos juízos do mundo civilizado. Não há país no universo, onde se despreze mais, creio eu, o julgamento da Europa, que em Portugal: nesse ponto somos como o vadio das ruas de Caracas, que o Times tão pitorescamente nos apresenta: porque eu chamo desdenhar a opinião da Europa não fazer nada para lhe merecer o respeito. Com efeito, o juízo que de Badajoz para cá se faz de Portugal, não nos é favorável, nós sabemo-lo bem — e não nos inquietamos! Não falo aqui de Portugal como Estado político. Sob esse aspecto gozamos uma razoável veneração. Com efeito, nós não trazemos à Europa complicações importunas; mantemos dentro da fronteira uma ordem suficiente: a nossa administração é corretamente liberal; satisfazemos com honra os nossos compromissos financeiros.
Somos o que se pode dizer um povo de bem, um povo boa pessoa. E a nação vista de fora e de longe, tem aquele ar honesto de uma pacata casa de província, silenciosa e caiada, onde se pressente uma família comedida, temente a Deus, de bem com o regedor, e com as economias dentro de uma meia… A Europa reconhece isto: e todavia olha para nós com um desdém manifesto. Por quê? Porque nos considera uma nação de medíocres: digamos francamente a dura palavra — porque nos considera uma raça de estúpidos. Este mesmo Times, este oráculo augusto, já escreveu que Portugal era, intelectualmente, tão caduco, tão casmurro, tão fóssil, que se tornara um país bom para se lhe passar muito ao largo, e atirar-lhe pedras (textual).
O Daily Telegraph já discutiu em artigo de fundo este problema: Se seria possível sondar a espessura da ignorância lusitana! Tais observações, além de descorteses, são decerto perversas. Mas a verdade é que numa época tão intelectual, tão crítica, tão científica como a nossa, não se ganha a admiração universal, ou se seja nação ou indivíduo, só com ter propósito nas ruas, pagar lealmente ao padeiro, e obedecer, de fronte curva, aos editais do governo civil. São qualidades excelentes, mas insuficientes. Requer-se mais: requer-se a forte cultura, a fecunda elevação de espírito, a fina educação do gosto, a base científica e a ponta de ideal que em França, na Inglaterra, na Alemanha, inspiram na ordem intelectual a triunfante marcha para a frente; e nas nações de faculdades menos criadoras, na pequena Holanda ou na pequena Suécia, produzem esse conjunto eminente de sabias instituições que são, na ordem social, a realização das formas superiores do pensamento.
Dir-me-ão que eu sou absurdo ao ponto de querer que haja um Dante em cada paróquia, e de exigir que os Voltaires nasçam com a profusão dos tortulhos. Bom Deus, não! Eu não reclamo que o país escreva livros, ou que faça arte: contentar-me-ia que lesse os livros que já estão escritos, e que se interessasse pelas artes que já estão criadas. A sua esterilidade assusta-me menos que o seu indiferentismo. O doloroso espetáculo é vê-lo jazer no marasmo, sem vida intelectual, alheio a toda a ideia nova, hostil a toda a originalidade, crasso e mazorro, amuado ao seu canto, com os pés ao sol, o cigarro nos dedos e a boca às moscas… É isto o que punge.
E o curioso é que o país tem a consciência muito nítida deste torpor mortal, e do descrédito universal que ele lhe atrai. Para fazer vibrar a fibra nacional, por ocasião do centenário de Camões, o grito que se utilizou foi este: — Mostremos ao mundo que ainda vivemos! que ainda temos uma literatura!
E o país sentiu asperamente a necessidade de afirmar alto, à Europa, que ainda lhe restava um vago clarão dentro do crânio. E o que fez? Encheu as varandas de bandeirolas, e rebentou de júbilo a pele dos tambores. Feito o que— estendeu-se de ventre ao sol, cobriu a face com o lenço de rapé, e recomeçou a sesta eterna. Donde eu concluo que Portugal, recusando-se ao menor passo nas letras e na ciência para merecer o respeito da Europa inteligente, mostra, à maneira do vadio de Caracas, o desprezo mais soberano pelas opiniões da civilização. Se o Brasil, pois, tem essa qualidade eminente de se interessar pelo que diz o mundo culto, deve-o às excelências da sua natureza, de modo nenhum ao seu sangue português: como português, o que era lógico que fizesse era voltar as costas à Europa, puxando mais para as orelhas o cabeção do capote…
Mas, retrocedendo ao artigo do Times, a conclusão da sua primeira parte é que “em riqueza e aptidões o Brasil leva gloriosamente a palma às outras nacionalidades da América do Sul”. Todavia, o Times observa no Brasil circunstâncias desconsoladoras: “Doze milhões de homens estão perdidos num estado maior que toda a Europa: a receita pública, que é de doze milhões de libras esterlinas, é muitos milhões inferior à da Holanda e à da Bélgica: com uma linha de costa de quatro mil milhas de comprimento, e com pontos de uma largura de duas mil e seiscentas milhas, o Brasil exporta em valor de gêneros a quarta parte menos que o diminuto reino da Bélgica.”
O Times, todavia, tem a generosidade de admitir que nem a densidade de população, nem o total das receitas, nem a cifra das exportações constituem a felicidade de um povo e a sua grandeza moral. A Suíça, que tem dois milhões de habitantes e justamente os mesmos dois milhões de libras de receita, vive em condições de prosperidade, de liberdade, de civilização, de intelectualidade bem superiores à tenebrosa Rússia com os seus oitenta milhões de libras de receita, e os mesmos oitenta milhões em homens. “Todavia, continua o Times, se a escassez da população, de rendimento e de comércio, não colocam o Brasil num estado de adversidade, são uma prova que faltam a esse povo algumas das qualidades que fazem a grandeza das nações. Que os colonizadores portugueses, apenas apoiados pelo pequeno trono português, tivessem feito da metade do novo mundo, que lhes concedeu o papa Alexandre, mais que os colonizadores espanhóis que tiravam a sua força da grande nação de Espanha, é uma cousa que prova a favor do sangue português comparado com o sangue castelhano, andaluz ou aragonês. Mas que as conquistas feitas no Brasil à natureza sejam tão insignificantes, e tão vastos os espaços que permanecem não só inconquistados mas desamparados — indica que são análogos os defeitos da colônia espanhola e da colônia portuguesa…”
O resto do artigo é mais sério; e eu devo transcrevê-lo sem interrupção. “O brasileiro não é, como o peruano ou boliviano, altivo demais, ou preguiçoso demais para se dignar reparar nos meios de riqueza e de grandeza tão prodigamente espalhados em torno de si. Não; o brasileiro tem energia suficiente para ambicionar e para calcular. A sua atenção está fixa nas férteis regiões do interior. Desejaria bem ver a rede dos seus rios navegáveis cobertos de barcos e vapores. Sucede mesmo que, nos pontos mais ricos da costa, o habitante queixa-se que uma excessiva porção dos impostos com que é sobrecarregado vai ser gasta em colossais trabalhos empreendidos em vantagem de remotas e incultas regiões que nunca ou, ao menos, só daqui a longos anos, poderão aproveitar com eles. Mas, em todo o caso, o Brasil sente em si força suficiente para dar ao seu vasto território os benefícios de uma sábia administração.”
O Times aqui tem um pequeno período, aludindo à nobre ambição que têm os brasileiros de fazer tudo por si mesmos, vendo com aborrecimento as grandes obras entregues à perícia estrangeira, e preferindo os esforços da ciência e do talento nacionais, ainda mesmo quando eles falham, custando ao país milhões perdidos… Depois prossegue:
“Mas enquanto o brasileiro se mostra assim, em teorias políticas e administrativas, ansioso por fomentar ele mesmo, por ele mesmo fazer todas as obras dos seus cinco milhões de milhas quadradas — às suas mãos repugna o agarrar o cabo da enxada, ou tomar a rabiça do arado, que é justamente o serviço que a natureza reclama dele. Num continente, que depois de três séculos e meio continua a ser um torrão novo, a grandeza das Repúblicas ou dos Impérios depende exclusivamente do trabalho manual.
“Italianos, alemães, negros, têm sido, estão sendo importados para fazerem o trabalho duro que repugna aos senhores do solo. Mas, inaclimatados, em certos distritos, eles nunca poderiam labutar como os naturais dos trópicos. Nem mesmo nas províncias mais temperadas do Império jamais os imigrantes trabalharão resolutamente — até que o exemplo lhes seja dado pela população indígena, senhora da terra. O brasileiro ou tem de trabalhar por suas mãos, ou então largar a rica herança que é incompetente para administrar. À maneira que o tempo se adianta, vai-se tornando uma positiva certeza que todos os grandes recursos da América do Sul entrarão no patrimônio da humanidade.”
O Times aqui embrulha-se. Prefiro explicar a sua ideia, a traduzir-lhe a complicada prosa; quer ele dizer que o dia se aproxima em que a civilização não poderá consentir que tão ricos solos, como os dos Estados do Sul da América, permaneçam estéreis e inúteis, e que, se os possuidores atuais são incapazes de os fazer valer e produzir, para maior felicidade do homem, deverão então entregá-los a mãos mais fortes e mais hábeis. É o sistema de expropriação por utilidade de civilização. Teoria favorita da Inglaterra e de todas as nações de rapina…
Continua depois o artigo, com ferocidade: “No Peru, na Bolívia, no Paraguai, no Equador, em Venezuela… em outros mais, os atuais ocupadores do solo terão gradualmente de desaparecer e descer àquela condição inferior, que o seu fraco temperamento lhes marca como destino. (Nunca se escreveu nada tão ferino!) O povo brasileiro, porém, tem qualidades excelentes e a Inglaterra não chegará prontamente à conclusão de que ele tem de partilhar a sorte de seus febris ou casmurros vizinhos… Mas, dadas as condições do seu solo, o Brasil mesmo tem a escolher entre um semelhante futuro ou então o trabalho, o duro esforço pessoal, contra o qual até agora se tem rebelado. Se o seu destino tivesse levado os brasileiros a outro canto do continente, nem tão largo, nem tão belo, poder-se-ia permitir-lhes que passassem a existência numa grande sonolência. Mas ao brasileiro está confiada a décima quinta parte da superfície do globo: essa décima quinta parte é, toda ela, um tesouro de beleza, riquezas e felicidades possíveis; e de tal responsável — o brasileiro tem de subir ou de cair!”
E com esta palavra, à Gambetta, termino. Já se alonga muito esta carta para que eu a sobrecarregue de comentários à prosa do Times. No seu conjunto é um juízo simpático. O Times, sendo, por assim dizer, a consciência escrita da classe média da Inglaterra, a mais rica, a mais forte, a mais sólida da Europa, tem uma autoridade formidável; e escrevendo para o Brasil, eu não podia deixar de recolher as suas palavras — que devem ser naturalmente a expressão do que a classe média da Inglaterra pensa ou vai pensar algum tempo do Brasil. Porque a prosa do Times é a matéria-prima de que se faz em Inglaterra o estofo da opinião.
E reparando agora que, por vezes nestas linhas, fui menos reverente com o Times — murmuro, baixo e contrito, um peccavi…
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