“Não bastasse isso, a proposta orçamentária para 2022 prevê o menor nível de investimento público dos últimos 12 anos”, denuncia o economista
O professor Nilson Araújo de Souza, organizador do livro ”O pensamento Nacional Desenvolvimentista’, doutor em economia pela Universidade Autônoma do México (Unam), e pós-doutor pela USP, afirmou ao HP, nesta sexta-feira (16), que “o Brasil está com paralisação do crescimento econômico (e pior: com desemprego elevado) e com inflação, isto é, a subida generalizada dos preços”.
“Até mesmo os agentes do chamado mercado, que costumam mostrar um mundo cor-de-rosa, já estão prevendo estagnação econômica no ano que vem. Depois de marcarem um pouco mais de 2% de crescimento do PIB, baixaram suas expectativas para menos de 1%: o banco estadunidense J. P. Morgan cravou 0,9% e o brasileiro Itaú, 0,5%; a consultoria MB Associados, 0,4%”, observou o economista.
Segundo Nilson Araújo, “a ortodoxia monetarista ultraneoliberal que infesta o BC propala que a inflação é sempre um fenômeno provocado pelo excesso de demanda e adota a taxa de juros como instrumento não apenas principal, mas exclusivo para conter a demanda e, portanto, combater a inflação. Ao elevar a taxa de juros, provoca a queda da demanda das famílias, das empresas e do governo e joga a demanda total para baixo”.
Confira a entrevista na íntegra.
HORA DO POVO: Já há previsão de PIB de menos de 1% em 2022. Ao mesmo tempo a inflação já se aproxima de dois dígitos. Como você avalia essa situação?
NILSON ARAÚJO: A economia brasileira entra em rota de estagflação, um fenômeno que combina perversamente o pior dos mundos: estagnação econômica, ou seja, paralisação do crescimento econômico (e pior: com desemprego elevado), com inflação, isto é, a subida generalizada dos preços.
Quando o IBGE divulgou os dados do PIB do primeiro trimestre deste ano, o ministro da Economia soltou rojões e prometeu que a economia já havia superado a recessão e retomado o crescimento. O tal do “crescimento em V”.
Mas, quando saíram os dados do segundo trimestre, que revelaram um ligeiro declínio do PIB, na comparação com os primeiros três meses do ano, ele já não tinha o que comemorar.
Mesmo que a economia não cresça mais nada neste segundo semestre, vai aparecer um crescimento do PIB deste ano, quando comparado ao PIB de 2020. Isso, em grande medida, por mero efeito estatístico (considerando que a produção do primeiro trimestre deste ano está acima da média do ano passado) e porque a comparação será com o fundo do poço, já que no ano passado houve um declínio de 4%.
No entanto, até mesmo os agentes do chamado mercado, que costumam mostrar um mundo cor-de-rosa, já estão prevendo estagnação econômica no ano que vem. Depois de marcarem um pouco mais de 2% de crescimento do PIB, baixaram suas expectativas para menos de 1%: o banco estadunidense J. P. Morgan cravou 0,9% e o brasileiro Itaú, 0,5%; a consultoria MB Associados, 0,4%. A responsabilidade é inteiramente do governo Bolsonaro e sua equipe econômica ultraneoliberal. Que empresário vai investir na atividade produtiva neste clima de instabilidade e, portanto, de insegurança promovido pelo Presidente com suas frequentes ameaças de ruptura institucional? Não bastasse isso, a proposta orçamentária para 2022 prevê o menor nível de investimento público dos últimos 12 anos. Para agravar, o BC deflagrou uma verdadeira escalada da Selic, a taxa básica que regula o conjunto das taxas de juros do País (de março pra cá, já subiu de 2% ao ano para 5,25%, e o presidente do BC ameaça que essa escalada não tem limites). E, para completar, o mercado interno está sendo estrangulado pela queda da renda real do trabalho.
HP: Como, mesmo diante da estagnação da economia, a inflação recrudesce?
NILSON ARAÚJO: A inflação, que retornou no ano passado pela subida dos preços dos alimentos, já alcançou os combustíveis e as tarifas públicas, a começar pela energia elétrica, generalizando-se para outros setores. O IPCA dos últimos 12 meses encerrados em agosto se aproxima perigosamente dos dois dígitos (9,68%). Segundo o IPEA, a carestia é mais alta para os mais pobres (10,63%). Os preços dos alimentos simplesmente explodiram: nos doze meses terminados em junho último, o óleo de soja subiu 83,79%, o feijão fradinho 48,19%, o peito bovino 47,74%, o arroz 46,21%, músculo, 46,06%, paleta bovina 45,54%, costela bovina 45,22%, e por aí vai (IBGE).
E não se trata, como a burrice e a insensibilidade do Presidente alardearam, de que o povo esteja comendo mais. Não é uma inflação de demanda. Como gastar mais se, segundo o IBGE, o povo está ganhando menos? Mais grave ainda: se amarga o maior desemprego da nossa história (32,2 milhões entre desempregados e subempregados)? Se 125 milhões de pessoas, vivendo em 60 por cento dos domicílios do País, padecem de insegurança alimentar?
A atual corrida dos preços resulta de um choque de oferta. Começou no ano passado pelos alimentos, quando o governo deixou de comprar a produção durante a safra para formar estoque regulador, deixando escapar a produção agrícola para o exterior, engendrando escassez no mercado interno. Agrava-se a situação porque a produção agrícola, apelidada de commodity, tem seu preço cotado em dólar, e como, além do aumento do preço em dólar no mercado internacional, essa moeda valorizou-se do ano passado para cá, o preço em real aumentou: entre o final de janeiro de 2020 e o final de janeiro de 2021, o real desvalorizou-se em 21,7% em relação ao dólar; o dólar não aumentou muito neste ano, mas a cotação, além de haver permanecido em um nível elevado (oscilou entre R$5 e R$ 6), tem se comportado como uma verdadeira gangorra. E tem impacto em outros setores. É o caso do milho e da soja, que serve de ração para aves, suínos e bovinos.
O preço dos combustíveis também disparou: o litro da gasolina chegou a alcançar a média de R$ 6, em alguns casos atingindo R$ 7. Isso porque, adotando o chamado Preço de Paridade Internacional, expressão do preço do barril do petróleo cotado em dólar e da taxa de câmbio, sofreu também devido a valorização do dólar. E não havia porque dolarizar os combustíveis, considerando que o Brasil é autossuficiente em petróleo e tem capacidade suficiente de refino para abastecer o mercado interno. O problema é que o Brasil está exportando petróleo em bruto e importante derivados. O aumento do preço dos combustíveis impacta não apenas o seu consumidor direto. Provoca também o aumento do frete e, portanto, do preço das mercadorias transportadas e as tarifas de transporte urbano.
As tarifas de energia elétrica estão aumentando não é devido apenas à crise hídrica, que está levando ao maior uso das termoelétricas, mas também ao critério de remuneração das empresas do setor, que leva em consideração a variação do câmbio.
Portanto, o comportamento do dólar tem um papel decisivo no comportamento dos preços aqui no País. É como se a economia fosse dolarizada. Esse é um dos principais males de uma economia dependente.
Assim, a valorização do dólar desde o ano passado tem impactado na subida dos preços e nessa escalada inflacionária. E, depois de atingir setores chaves, como o de alimentos, combustíveis e energia, se generaliza para outros setores. E por que o dólar tem se valorizado? Parte da explicação está na melhora da economia dos EUA, a qual está atraindo dólares espalhados pelo mundo. Mas a valorização do dólar em relação ao real tem sido maior do que em relação a outras moedas. Por quê? Mais uma vez, o clima de instabilidade provocado por Bolsonaro. Chegou a ponto de exportadores preferirem deixar lá fora suas receitas de exportação do que internalizar. Ironicamente, isso ocorre durante o governo mais entreguista da nossa história.
HP: O presidente do BC afirmou que seguirá subindo os juros. Como você vê essas medidas?
NILSON ARAÚJO: A ortodoxia monetarista ultraneoliberal que infesta o BC propala que a inflação é sempre um fenômeno provocado pelo excesso de demanda e adota a taxa de juros como instrumento não apenas principal, mas exclusivo para conter a demanda e, portanto, combater a inflação. Ao elevar a taxa de juros, provoca a queda da demanda das famílias, das empresas e do governo e joga a demanda total para baixo. Mas, mesmo se a inflação fosse de demanda, não está garantido que ela seria debelada pela elevação da taxa de juros. Pois, numa economia monopolizada, os cartéis, basicamente de origem estrangeira, compensam a queda das vendas com a elevação dos preços. Não conseguem fazer isso quando o dólar está barato e, portanto, a produção interna pode ser substituída por importação mais barata (em nível internacional, existe concorrência entre os monopólios).
Mas não é o caso. A inflação não é de demanda. Como a taxa de juros vai influenciar o preço dos alimentos enquanto for cotado em nível internacional? O preço dos combustíveis, que é estabelecido pelo governo com base no preço internacional? A tarifa de energia, que também é cotada pelo governo com base numa indexação ao dólar? Poderia atuar indiretamente ao atrair capital externo especulativo e provocar a valorização do real. Mas a taxa de juro não pode muito, em termos de atração de capitais externos, diante da instabilidade política em que vive o país. Nesse quadro, combinam-se juros altos com câmbio elevado.
Além disso, esse é um caminho perverso: ao baratear as importações, destrói a produção interna, aprofundando a desindustrialização e o desemprego, já bastante avançados, e, ao elevar os juros, sacrifica tanto o investimento público quanto o privado. O caminho é outro: resolver o choque de oferta garantindo o abastecimento alimentar interno (bloqueando exportações e realizando estoque regulador na próxima safra), o refino interno de todos os derivados de que se necessita, desdolarização da política de reajuste das tarifas dos serviços públicos, ao mesmo tempo em que se eliminam os bloqueios à retomada do desenvolvimento, tais como a drenagem de recursos para o exterior, a esterilização de enormes massas de recursos na ciranda financeira, o enorme volume de isenções fiscais injustificadas, a apropriação privada de grande parte das rendas da terra (agrícola, petróleo, mineração), tripé macroeconômico, emenda constitucional que congela o investimento público.
SÉRGIO CRUZ