“Tentar combater inflação de custos com contenção de demanda vai levar a uma estagnação ainda mais grave da economia”
A escola uspiana de economia historicamente tem se alinhado, com algumas exceções, ao pensamento hegemônico neoliberal. O debate e os questionamentos cada vez maiores em torno da eficácia desta doutrina, no entanto, vêm crescendo nos últimos anos, desde o grande colapso financeiro de 2008.
O artigo abaixo, que reproduzimos do Valor Econômico, dos professores Carlos Luque, Simão Silber, Francisco Vidal Luna e Roberto Zagha, apesar de ainda manter alguns conceitos, como taxas de juros e inflação neutras e a crença em BCs realmente ocupados com inflação, revela já um grande distanciamento dos dogmas centrais dessa corrente de pensamento, como, por exemplo, a origem principal dos desequilíbrios fiscais, o papel dos gastos públicos na alta da inflação e a eficácia da elevação de juros no seu combate.
Os autores do artigo já apresentam uma visão bastante crítica em relação à gestão da dívida pública e ao seu uso como meio de promover o estrangulamento dos investimentos públicos. As ideias apresentadas neste artigo se aproximam também das teses que já vêm sendo defendidas há algum tempo pelo economista André Lara Resende, um dos expoentes do neoliberalismo no Brasil. Rezende atualmente é um crítico importante desta corrente. Confira abaixo o artigo dos autores da USP.
Uso e abuso da taxa de juros”
CARLOS LUQUE, SIMÃO SILBER, FRANCISCO VIDAL LUNA E ROBERTO ZAGHA (*)
Entre 1995 e 2021 a dívida bruta do governo dobrou em relação ao PIB. A dívida pública em moeda estrangeira é muito baixa, pouco mais do que 10% da dívida total, e uma das decisões positivas dos últimos anos foi a de limitar o endividamento público em moeda estrangeira. O que preocupa é o nível da dívida pública em reais. Essa dívida, geralmente vista como prova do descalabro do governo e sua incapacidade de controlar gastos, tem atraído a atenção de analistas, investidores, comentaristas e funcionários do governo e é causa de iniciativas feitas para controlar gastos primários.
A realidade é mais complexa. Decompondo o déficit total entre déficit primário e juros pagos sobre a dívida revela que 82% do aumento da dívida pública desde 1995 é devido ao pagamento de juros. A dívida pública em reais dobrou desde 1995 não por causa do gasto público, mas por causa das taxas de juros elevadas mantidas desde os meados dos anos 1990 até hoje. Os déficits primários desde 1995 são responsáveis pelos 18% restantes.
Em suma, o governo se endivida para pagar juros e a contrapartida do aumento da dívida desde 1995 são os juros pagos aos detentores da dívida, nacionais e estrangeiros.
É curioso que tanto foco tenha sido posto sobre o controle do gasto público e tão pouco em estabelecer juros a níveis mais razoáveis.
Uma taxa de juros alta tem três distorções: a primeira é o custo dos juros e a obrigação do governo de tributar ou se endividar para poder pagá-los. Desde 1995 o governo pagou aos detentores da dívida pública o equivalente a 5-7% do PIB ao ano, muito mais do que o déficit das aposentadorias ou outros itens de gastos objeto de muita discussão no Congresso e mídia.
Um segundo efeito é o aumento no custo do crédito que tem como consequência uma redução do investimento privado.
Terceiro, uma taxa de juros elevada atrai o capital financeiro, o que aprecia a taxa de câmbio e penaliza a produção e as exportações de manufaturados. Ao desviar recursos públicos para pagamento de juros e que poderiam ter sido investimentos e ao desincentivar o investimento privado e as exportações, a taxa de juros com a qual o Brasil teve que conviver, é uma das causas importantes do baixo crescimento que o país ainda não conseguiu resolver.
Nos últimos anos a taxa de juros “natural”, um conceito desenvolvido pelo economista sueco Knut Wicksell, voltou a fazer parte das discussões entre responsáveis de políticas econômicas no mundo ocidental. A taxa de juros natural é a taxa que permite uma demanda que assegura o pleno emprego, sem criar inflação. Quando as taxas de juros caem, a rentabilidade dos ativos financeiros diminui e os agentes econômicos são induzidos a comprar ativos reais: os empresários compram maquinaria, os particulares compram imóveis o que estimula a construção civil e os consumidores podem usar credito mais barato para comprar bens duráveis. Isso estimula a demanda, o que estimula a produção, o que estimula o emprego. O desafio de qualquer banco central é assegurar que esse aumento de demanda não se traduza em inflação. O desafio é encontrar a taxa “natural”. Quando a taxa de juros sobe, ocorre o oposto. Os agentes econômicos são induzidos a reduzir seus gastos em inversão e consumo.
O desafio é navegar entre inflação e desemprego, isto é encontrar a taxa “natural”. Há modelos que permitem estimativas dessa taxa. Mas os banqueiros centrais que se destacaram nas últimas décadas – Greenspan Bernanke, Yellen, Draghi – utilizaram essas estimativas como parte de um processo de decisão que no fundo era pessoal. Cada um deles teve episódios nos quais descartaram as conclusões dos estudos técnicos e seguiram sua intuição com resultados que se revelaram excelentes. Outros fizeram erros com elevados custos econômicos. Em todos esses casos os policy makers estavam conscientes que uma taxa de juros acima da taxa neutra arrefeceria a demanda com riscos de desemprego, enquanto uma taxa de juros abaixo da taxa neutra poderia criar pressões inflacionárias. Evitar tanto o desemprego como a inflação eram os desafios de uma trajetória às vezes perigosa.
No Brasil a política monetária nem sempre atuou desse modo. O desemprego não foi uma consideração importante nas tomadas de decisão do BC. Desde 1999, e até recentemente, por lei, a responsabilidade única do BC era o de combater a inflação. Mesmo depois da mudança da lei para incluir como objetivo assegurar o emprego, a política monetária continua a privilegiar o combate à inflação. Nos últimos meses, com o desemprego no nível mais alto desde que o desemprego é medido no país, evidência de que o recrudescimento da inflação era sobretudo o resultado do aumento de preço das commodities e a depreciação do real, o BC não hesitou em aumentar a taxa de juros real, a níveis novamente entre os mais altos do mundo.
Há duas forças que levam a essa política: a primeira é que o Conselho Monetário adotou objetivos ambiciosos para a meta de inflação no Brasil. Enquanto – nos países avançados – se discute aumentar as metas de inflação geralmente a 2% anuais a níveis menos ambiciosos como 4-6%, no Brasil a meta foi na direção oposta.
Da mesma forma que existe uma taxa neutra de juros e uma taxa natural de desemprego, existe também uma taxa natural de inflação, que deriva das condições de oferta. Uma ideia nascida na América Latina é que a rigidez de oferta devida a aspectos estruturais da economia – como falta de infraestrutura, limitações da mão de obra qualificada –faz com que haja uma inflação mínima inevitável. Nas economias avançadas os bancos centrais aceitaram uma taxa de inflação natural, a inflação decorrente dos problemas causados pela covid nas cadeias de produção e da alta do preço dos commodities, sem aumentar a taxa de juros, com o anúncio de que as taxas de juros subiriam nesse ano a passos moderados.
O BC, entretanto, tem sido agressivo, frente a um baixo crescimento e alto desemprego, com o objetivo de valorizar o real e assim reduzir o impacto do aumento de preços dos commodities e depreciação do real. Aumentar a taxa de juros valoriza o real, mas não afeta o preço internacionais dos commodities que são determinados no mercado internacional. É uma maneira estranha de combater a inflação. O que fará o BC se o preço dos commodities continuar subindo? Continuar aumentando a taxa de juros? Como vimos, aumentos da taxa de juros têm um custo alto para a economia, e quando a inflação é de oferta e não de demanda é difícil encontrar uma justificativa.
A postura correta do BC deveria ser aceitar que os dois oui três próximos anos serão turbulentos. com pressões inflacionárias tanto externas como domésticas, e aumentar as metas de inflação nesse período. Tentar combater inflação de custos com contenção de demanda vai levar a uma estagnação ainda mais grave da economia.
(*) Carlos Luque é professor da FEA-USP e presidente da Fipe. Simão Silber é professor da FEA-USP. Francisco Vidal Luna é professor da FEA aposentado. Roberto Zagha foi professor Assistente na FEA-USP nos anos 1970 e no Banco Mundial a partir de 1980, onde encerrou a carreira em 2012 como Secretário da Comissão sobre o Crescimento e o Desenvolvimento, e diretor para a Índia.
Desde o artigo a SELIC subiu para 13,75%. O Banco Central atende aos interesses da “Elite Financeira”. Em 2022 foram pagos pelos Brasileiros, 2,318 Trilhões de Reais em JUROS. Sendo 734 Bilhões referentes a Dívida Pública e 1,584 Trilhão de Reais em JUROS referentes as operações de crédito no Sistema Financeiro (INFORMAÇÃO do BANCO CENTRAL DO BRASIL)