No último dia 7, o jornal britânico Financial Times revelou detalhes sobre o acordo, assinado pelo governo Bolsonaro, usando o Ministério da Saúde e a Fiocruz, com a multinacional AstraZeneca, para desenvolvimento e aquisição de uma vacina contra a COVID-19.
Esse acordo, formalizado no Memorando de Entendimento entre a Fiocruz e a AstraZeneca, estabeleceu “a elevada quantia que o Brasil pagará para testar e desenvolver industrialmente o produto (USD 127 milhões), incluindo pouco mais de 30 milhões de doses e depois 2,30 US dólares por dose para outros 70 milhões de doses (USD 161 milhões) mesmo que não haja sucesso” (v. HP 20/07/2020, Vacinas à vista? Cooperação ou concorrência?).
Ou seja, a Fiocruz se comprometeu a pagar quase US$ 300 milhões por uma vacina que ainda não existe, mesmo que ela seja um fracasso.
O que o artigo do Financial Times acrescentou, no último dia 7, foi que, pelo Memorando:
1) O valor total do acordo é de mais de US$ 300 milhões.
2) Quem determina o fim da pandemia – isto é, até quando valem os preços do acordo – é a AstraZeneca. Este “fim da pandemia” é determinado, pelo acordo, em 1º de julho de 2021 e somente poderia ser adiado se “a AstraZeneca, atuando de boa fé, considerar que a pandemia de COVID-19 não acabou” (cf. Financial Times, AstraZeneca vaccine document shows limit of no-profit pledge, 07/10/2020).
A partir da declaração unilateral de que a pandemia acabou, a AstraZeneca pode aumentar os preços das doses de vacina que venderá (ou venderia) ao Brasil (observação do Financial Times: “Porém, os casos de COVID-19, globalmente, não mostram sinais de redução”).
No dia seguinte ao artigo do Financial Times, Jamil Chade, em sua coluna no UOL, revelou mais detalhes do acordo do governo Bolsonaro com a AstraZeneca (v. Jamil Chade, Acordo revela que AstraZeneca impôs restrições ao Brasil na vacina da covid, UOL, 08/10/2020):
3) A AstraZeneca mantém a patente da vacina e o poder de estabelecer seu preço.
4) Confirmando que o Brasil é obrigado a pagar, mesmo que a vacina seja um fracasso, o Memorando estabelece que os pagamentos “não são reembolsáveis na hipótese de resultados negativos na pesquisa clinica”.
5) O acordo estabelece que o “pagamento pela transferência de knowhow (conhecimento) de produção de produto acabado é não-reembolsável”.
6) O Memorando proíbe que o Brasil – ou seja, a Fiocruz – envie vacinas para outros países.
7) O Memorando determina que haverá, ainda, um acordo confidencial sobre pagamento de royalties à AstraZeneca.
A reação internacional a esse Memorando – assinado pelo governo Bolsonaro, usando a Fiocruz – variou entre a perplexidade e a indignação.
“O custo futuro de qualquer vacina aprovada é uma questão controversa depois que grupos farmacêuticos, incluindo a AstraZeneca, receberam centenas de milhões de dólares em dinheiro público para acelerar o desenvolvimento. Algumas empresas disseram desde o início que só podem desenvolver a vacina com fins lucrativos”, diz o Financial Times na matéria que citamos acima.
A questão é especialmente sensível no caso da AstraZeneca, pois essa multinacional, além dos mais de US$ 300 milhões que sugou do governo Bolsonaro – isto é, dos recursos do Brasil – também “recebeu grandes quantias de dinheiro público para desenvolver sua vacina e garantir pedidos futuros, incluindo pelo menos US$ 1 bilhão dos Estados Unidos” (cf. FT, artigo citado).
Tanto a AstraZeneca quanto a Universidade de Oxford recusaram responder às perguntas do Financial Times, que entrevistou, também, sobre o assunto, alguns especialistas em Saúde Pública. Por exemplo:
“Apesar de toda a conversa sobre a necessidade da vacina Covid-19 ser um ‘bem público global’, parece que são as empresas farmacêuticas que determinam, em negócios secretos, quem vai conseguir acesso à vacina e quando”, declarou Ellen’t Hoen, diretora da Medicines Law & Policy, uma entidade sem fins lucrativos, que luta por maior acesso da população a medicamentos.
Especificamente sobre o Memorando Bolsonaro/AstraZeneca, disse Manuel Martin, consultor de inovação médica e política de acesso da Médicos Sem Fronteiras, que ele estabelece “um nível inaceitável de controle sobre uma vacina desenvolvida com fundos públicos. Contar com medidas voluntárias de empresas farmacêuticas para garantir o acesso, é um erro de consequências fatais” (cf. FT, artigo cit., grifos nossos).
Apesar disso, o governo Bolsonaro vem sonegando recursos – muito menores que aqueles despendidos com a AstraZeneca – ao convênio estabelecido pelo governo de São Paulo, através do Instituto Butantan, com o laboratório chinês Sinovac, para desenvolvimento e aquisição de uma vacina muito mais promissora contra a COVID-19 (v. HP 14/09/2020, Doria cobra aporte federal para produção de vacina: “Não é hora de vacilação”).
O governo Bolsonaro até mesmo excluiu a vacina do Sinovac/Butantan do cronograma de vacinação (v. HP 15/10/2020, Desejamos a vacina para todos os brasileiros, diz Doria frente à omissão do governo sobre a CoronaVac).
Como disse uma colunista: “Não satisfeito em relevar a obrigatoriedade de tomar a vacina, Jair Bolsonaro não acha fundamental uma vacina para acabar a pandemia, mas que a ‘sua’ vacina chegue antes da ‘dele’ – a do governador João Doria. Seria só mesquinho, não fosse odioso” (v. Eliane Cantanhêde, Dói na alma, OESP 16/10/2020).
São sobre essas questões, que ouvimos o professor e epidemiologista Eduardo Costa, nesse fim de semana, que nos respondeu por escrito:
“Em primeiro lugar não posso negar que estou constrangido como brasileiro e como um servidor da Fiocruz com esse negócio degradante firmado. E julgo que tenho autoridade para dizer isso, tanto técnica quanto por ser um ex-dirigente de secretaria nacional do MS e de instituto da Fiocruz que lidou com negociações com multinacionais. Eu jamais assinaria ou avalizaria um acordo nesses termos.”
“Aliás, já no dia 30 de janeiro deste ano publiquei um comentário no Facebook que pode ser reproduzido ipsis litteris:
“Fiz parte durante um ano do CEPI [Coalition for Epidemic Preparedness Inovation, isto é, Coalizão para Inovações na Preparação para Epidemias] por indicação de Paulo Buss. Fui destituído e substituído pela FIOCRUZ na gestão Nísia para dar o assento ao novo Vice-presidente Krieger. Defendi como ponto de partida a cooperação e não competição por novas vacinas sem o ranço das propriedades industriais. Usei o exemplo da Erradicação da Varíola. Um sucesso devido à generosa contribuição da ex-União Soviética, que desenvolveu a liofilização da vacina e entregou ao mundo, além de doar um bilhão de doses para a campanha. Afirmei isso tudo por escrito. E propus que as boas práticas de saúde pública fossem explicitadas contendo o eixo da ética social.
“E recebi o confortante apoio de seu Coordenador*, além de uns narizes torcidos.
“Fico feliz hoje de ver por esse texto** que o gesto da China, que imediatamente apontei como inovador, na direção dessa ética social, produziu os efeitos que esperávamos.
“E o CEPI pode agora contribuir melhor.
“O importante é não deixar que a ‘Big Pharma’ manobre para se apoderar do resultado dessa nova agenda de cooperação internacional na saúde.
“O mundo tem jeito! Depende de nós!
Eduardo Costa, 30/01/2020”
* Jon-Arn Roetingen.
** A matéria que comentava era de O Globo com declararão do presidente da China sobre seu compromisso em tornar acessíveis as vacinas que fossem desenvolvidas por seu país.
“Naqueles dias eu sabia que a partir da distribuição entre laboratórios do mundo (inclusive a Fiocruz) do código genético do SARS-CoV-2, uma corrida para testes diagnósticos e vacina estava iniciada. Era o momento em que precisávamos de um reforço na defesa de soberania e justiça social para que as patentes não viessem a criar abismos entre países e povos ricos e pobres, como aliás foi logo admitido pela própria OMS.
“E sabia que tínhamos um governo que desprezava nossas lutas pela saúde e era declaradamente entreguista.
“Mas confiava que na Fiocruz podíamos continuar essa luta no espaço democrático que ainda está preservado.
“Enfim, apesar de declarações preocupantes do representante da AstraZenica no Congresso Nacional, eu tinha esperança que a Fiocruz seguiria a linha da cooperação no ambiente da pandemia, algo já recomendado até pela OMS, e que seria constrangedor para a própria AstraZenica fazer de modo abusivo! Mas agora fomos surpreendidos por um acordo draconiano, que nos submeteu aos desígnios de uma multi com uma vacina ainda problemática. Tudo nos faz duvidar se houve qualquer estudo de prospecção tecnológica para escolher esta, ante tantas outras vacinas em desenvolvimento avançado.
Ainda esperamos justificativas mais sólidas da presidência da Fiocruz, ou um recuo da AstraZenic,a face à repercussão mundial que o caso está tendo.”
A Hora do Povo perguntou ainda o que achava do acordo da Sinovac com o Instituto Butantan.
“Como já escrevi em artigos assinados e publicados online aqui no HP e em outros sites, não temos conhecimento dos termos do acordo estabelecido, mas algumas coisas indicam que foi uma opção melhor do ponto de vista da segurança da vacina, por ser com o vírus inativado.
“Os dados dos testes da China comprovam isso e o próprio estudo que o Butantan conduz no Brasil, segundo seus dirigentes, também já demonstrou isso. A dúvida técnica é a duração da imunidade. Mas na situação de hoje, mesmo que seja curta, de dois anos, digamos, já será muito importante para proteger os mais velhos, e que apresentam comorbidades, e para o uso em contenção de surtos localizados, detectados pela vigilância epidemiológica.
“O Butantan já esclareceu que não pagará royalties pela vacina. Mas não disse se terá que pagar qualquer valor pela transferência de tecnologia e nada sobre o preço de cada dose na fase de importação (as primeiras 50 ou 60 milhões de doses).
“Ainda assim, conhecendo o que o Presidente da China afirmou, na Assembleia Mundial da Saúde, e na Assembleia Geral da ONU, não esperamos um acordo draconiano.
“Mais do que nunca o acordo do Butantan com a Sinovac é nossa esperança imediata.
“O apoio e defesa da iniciativa do Instituto Butantan é importante para que possa fazer os investimentos rápidos para produzir localmente e aumentar sua capacidade produtiva. É óbvio que a China tem muito a vacinar em casa e em outros países, o Governo federal deve promover parcerias produtivas para que outros laboratórios públicos, inclusive a Fiocruz, e mesmo privados, possam produzir o volume necessário e, se possível, exportar para outros países latino-americanos. Tudo dentro do espírito de cooperação.”
“PS: nesse espírito, eu mesmo já me voluntariei para participar do teste dessa vacina no Instituto Vital Brazil, mas não fui chamado. Renovo minha disposição.”
Matérias relacionadas: