O retorno de Netanyahu, réu em quatro processos por corrupção e receptação de suborno, só será possível se contar com o apoio da facção liderada por Itamar Ben Gvir, abertamente fascista e advogada de um ataque planificado contra as populações árabes em Israel e nos territórios palestinos ocupados por Israel.
Para fazer maioria no parlamento (que em Israel significa a obtenção de pelo menos 61 cadeiras), com 64 assentos, Netanyahu terá que se compor – obviamente lhes entregando cargos governamentais – com os fascistas do bloco “Sionismo Religioso” integrado pelo partido “Poder Judeu”, um bloco fascista que, nestas eleições cresceu de 6 para 14 cadeiras.
BLOCO RACISTA
Esse bloco é comandado, além do fanático Ben Gvir, por um grupo de incitadores do racismo, pregadores escancarados da desigualdade entre árabes e judeus e – se possível – de sua expulsão de Israel.
Como resumiu o professor da UFRJ, Michel Gherman, o bloco “é uma frente composta por três partidos: um de extrema direita, outro kahanista [liderado pelo já falecido rabino norte-americano Meir Kahane, a tal ponto racista e provocador que chegou a ser expulso até do parlamento israelense] e o terceiro neonazista”.
PIROMANÍACOS
O grupo, que o jornal israelense Haaretz denominou de “os piromaníacos”, inclui:
1 – Como já dissemos, Itamar Ben Gvir, aquele que, dias antes do assassinato de Itzhaq Rabin, roubou o emblema do carro do então primeiro-ministro (que firmou acordo de paz e colocou em prática os primeiros passos do acordo com o líder palestino Yasser Arafat) e deu a seguinte declaração com o emblema na mão: “Já chegamos até seu carro, logo chegaremos até você”.
Esse mesmo Gvir colocou com destaque em sua sala de estar a foto de Baruch Goldstein o assassino que entrou de metralhadora em punho na mesquita situada em Hebron, vizinha à tumba da matriarca Raquel, e disparou matando 29 fiéis muçulmanos.
2 – Bezalel Smotrich, que reside em casa construída sobre terras assaltadas aos palestinos na Cisjordânia e que, advogando “soberania israelense” nos territórios palestinos, apresentou proposta de lei definindo como legal o assalto a terras dos palestinos sem qualquer restrição.
Após eleito para o parlamento unicameral israelense em 2015 Smotrich defendeu, em um de seus pronunciamentos, a segregação de parturientes árabes em hospitais israelenses afirmando que “é simplesmente natural que minha mulher não gostaria de ficar deitada ao lado de alguém que acabou de dar à luz um nenê que poderia vir a matar o seu bebê após vinte anos”.
3 – Orit Strock, também moradora em residência localizada em terras assaltadas a palestinos e que liderou uma conferência com o propósito de “fortalecer a identidade judaica em Israel”, parece ter educado muito bem a seu filho Zvi Strock, que pegou dois anos e meio de cadeia por filmar a si próprio – junto com um cúmplice – espancando um jovem palestino, atirando perto de seu corpo e depois jogando o jovem palestino amarrado e nu em uma estrada.
4 – Simcha Rothman – Advogado que integra o grupo “Orgulho Gay de Direita”, se notabilizou por defender a suspensão das investigações dos crimes de Netanyahu por fraude e corrupção.
5 – Michael Ben Ari – líder do movimento Kach (Assim, em hebraico) que estimula e organiza assaltos a terras palestinas, além de encabeçar passeatas provocativas ao pátio da principal mesquita de Jerusalém, a Al Aksa, aos gritos de “Morte aos Árabes”, uma incitação tão escrachada e estúpida que até os Estados Unidos, na tentativa de evitar total desmoralização de sua política externa, teve que denominar de “organização terrorista”.
Importante, no entanto, salientar que estas aberrações desumanas não surgiram, nem conquistaram expressiva votação partindo do nada. Esse nazifascismo israelense teve no próprio Netanyahu um dos principais incentivadores.
A MÍSTICA DO “JUDEU DE VERDADE”
Em uma mística que fomentou durante década e meia no poder, Netanyahu, ou Bibi, como ficou apelidado, se diz portador da essência do judaísmo. De tal forma que quem não vota nele e opta por um dos partidos do bloco anti-Netanyahu, principalmente no partido opositor que se mantém sionista, mas se posiciona à esquerda, o Meretz, não seria “judeu de verdade”.
Uma postura que nega a frágil e contraditória democracia israelense, a de que a sociedade judaica em Israel, de acordo com os que a defendem, tem por formação um caráter multifacetado e abriga correntes políticas diversas.
Aliás, essa concepção judaico-messiânica de Bibi foi importada aos Estados Unidos por Trump que, em sua tentativa de reeleição, declarou que o judeu norte-americano que votasse no adversário, além de ingrato, não seria um “judeu de verdade”, uma senda, aliás, seguida pelo recentemente derrotado bolsonarismo em seus seguidores no interior da comunidade judaica brasileira.
Para além da persistência em seu suposto caráter de intérprete de um judaísmo excludente, ele acabou colhendo o que não gostaria: uma bancada com a participação destacada de elementos explícita e abertamente racistas, abertamente favoráveis à implementação escancarada e, portanto, sem qualquer disfarce, de um regime de apartheid, de um regime que – na prática de Ben Gvir e seus cúmplices – dissemina e legisla a favor de um torpe supremacismo judaico, com todo o seu corolário de agressões e provocações contra os árabes palestinos, sejam eles muçulmanos, cristãos ou drusos.
Sofre derrota a tentativa do Meretz e de uma dezena de organizações judaicas ou judaico-palestinas – a exemplo do Bloco Shalom, da organização Paz Agora, ou dos comunistas reunidos no partido Hadash – de estabelecer a paz com os palestinos, revogar as partes discriminantes contra a população árabe, presentes na Lei Estado-Nação (no lugar de uma inexistente Constituição democrática que estabeleceria a igualdade perante a lei de todos os cidadãos do país) e implantada em governo de Netanyahu.
A busca desse setor – que vai da posição sionista de esquerda até uma visão inclusiva, antissegregacionista e laica de uma Federação Israel-Palestina – se vê frustrada.
SEGREGACIONISMO COMO MAL DE RAIZ
O que toma forma aberta, pelo menos por agora, é o agravamento de uma situação criada já com a implantação do Estado de Israel e, portanto, do mal de raiz segregacionista presente nos fundamentos do Estado sionista, imposto aos palestinos através da Nakba (Catástrofe), através do terror durante o conflito aberto de 1948 que resultou em uma limpeza étnica com a expulsão de centenas de milhares de palestinos, hoje espalhados na diáspora ou em campos de refugiados no Oriente Médio.
O principal partido que se mantém sionista e tem advogado a democratização de fato do Estado de Israel, com o pleno reconhecimento do Estado da Palestina, o Meretz, sequer ultrapassou a cláusula de barreira 3,5%, ficando com 3,25% dos votos válidos e fora do Knesset, o parlamento unicameral israelense, onde até aqui detinha 4 cadeiras.
Aliás, o sectarismo da dirigente dos trabalhistas, Merav Micheli, que se negou a fundir com o grupo Meretz, como queria o atual premiê Yair Lapid, fez com que Netanyahu e seu bloco tivesse uma maioria que não corresponde ao número de votos obtidos nas urnas: 49,5%.
Atitude similar foi tomada pela organização política árabe, Balad, que advoga o fortalecimento do sentimento nacional palestino no seio da sociedade árabe israelense, e se negou a marchar junto com o bloco comunista, Hadash-Taal e também ficou de fora.
Isso é o que está permitindo aos fascistas de Gvir e aos partidos religiosos judaicos açambarcar 6 cadeiras a mais para atingir 64 assentos para o bloco pró Netanyahu contra 51 dos que lhe são oposição. As 5 cadeiras restantes ficam com os comunistas do Hadash que preferem permanecer fora da composição cujo único ponto de unidade é o caráter anti-Netanyahu.
Está em curso, portanto, uma guinada à direita com o possível ingresso ao governo de forças abertamente racistas e antidemocráticas (que advogam, entre outros absurdos, a expulsão de Israel, a cassação da cidadania israelense aos que forem julgados infiéis ao Estado, na verdade uma condição que desejam impor aos antifascistas, aos anti-Apartheid).
MUDAR É PRECISO
O agravamento que estas eleições impõem tem levado judeus de outras nacionalidades a alertarem para o perigo representado por Gvir, a todos que se identificam com Israel e a experiência sionista.
Exemplo disso é a norte-americana Lara Friedman, presidente da Fundação para a Paz no Oriente Médio, que destacou, assim que saíram os resultados da eleição israelense: “Para Biden, evitar conflitos com Israel é o objetivo fundamental, com os EUA se negando a condenar e a exigir responsabilidade do governo israelense pela morte de uma jornalista palestino-norte-americana, Shireen Abu Akel, por forças do exército de Israel, assim como deixou de desafiar o ataque israelense a organizações palestinas de direitos humanos, ou quando se negou a rechaçar a imposição draconiana israelense à entrada na Cisjordânia [território palestino sob ocupação e cerco e sujeito a contínuo e crescente assalto de suas terras por colonos judeus], ou ainda quando não tomou nenhuma atitude significativa para objetar a expansão dos assentamentos judaicos ou por responsabilizar Israel pela violência destes colonos”.
Lara acrescenta que, “enquanto é certo que a lista das escandalosas violações dos direitos palestinos e até de direitos de cidadãos norte-americanos de origem palestina vão continuar crescendo sob um governo de direita em Israel, cujos componentes expõem suas posições mais descaradamente racistas, não há razão para acreditar que a política norte-americana de abraçar a impunidade internacional de Israel vai repentinamente mudar”.
Uma crise se instalou entre as forças judaicas israelenses que buscam um caminho de convivência com os árabes palestinos. Neste contexto começa a crescer o número de ativistas que defendem uma atuação mais firme e presente de judeus progressistas e pacifistas israelenses junto aos árabes em Israel e em prol do reconhecimento e estabelecimento de um Estado da Palestina e da promoção da igualdade entre os cidadãos do país que passa a ter sua existência internacionalmente reconhecida sob risco.
Tais forças, experimentadas na luta antifascista em condições das mais adversas, saberão encontrar caminhos para a superação de tão lamentável página.
Concluo esta matéria com uma homenagem à jornalista Shireen Abu Akleh, assassinada pelas forças israelenses e reproduzindo sua profética escolha: “Escolhi o jornalismo para ficar perto das pessoas. Pode não ser fácil mudar a realidade, mas ao menos fui capaz de fazer esta voz ser ouvida pelo mundo”.
NATHANIEL BRAIA