Em audiência pública na Câmara dos Deputados, sindicalistas, especialistas e parlamentares rebatem argumentos do governo Bolsonaro para a entrega da maior empresa de energia elétrica da América Latina por pouco mais de 10% do seu valor
Especialistas do setor elétrico criticaram a privatização da Eletrobrás, em audiência pública na Câmara dos Deputados, realizada na segunda-feira (16), e defenderam que o Tribunal de Contas da União (TCU) interrompa o processo.
O representante do Coletivo Nacional dos Eletricitários e diretor da Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobrás (Aesel), Ikaro Chaves, destacou que “nós estamos vendo um processo fraudulento”.
“Nós estamos falando aqui de uma empresa que valeria hoje no mínimo R$ 400 bilhões. O que se quer é entregar essa empresa por R$ 67 bilhões, pouco mais de 10% do seu valor. Mas na verdade, o valor da Eletrobrás vai muito além disso. O valor da Eletrobrás é muito além de monetário, muito além de financeiro. É de uma empresa portadora de futuro e de presente. Famílias escolhem entre comer e pagar a conta de luz. Tem gente que acha isso normal. Nós estamos vendo aqui um projeto de privatização que não vai ter outro efeito se não aumentar ainda mais a conta de luz para as famílias brasileiras”, criticou Chaves.
Entre as séries de fraudes no processo de privatização da Eletrobrás, Ikaro Chaves apontou que o governo Bolsonaro desconsiderou o parâmetro de custo marginal da expansão (CME) de potência para vender a estatal por R$ 67 bilhões.
Segundo o engenheiro, o custo total deveria levar em conta os parâmetros energia e potência, o que já elevaria o valor de 67 para R$ 113 bilhões, “um desfalque de R$ 46 bilhões”, destacou Chaves.
“Primeiro, sobre a questão da subavaliação da Eletrobrás. Quando você vai vender uma empresa é preciso saber quanto que ela vai faturar ao longo do tempo. No caso, são 30 anos de concessão, e quanto que a Eletrobrás privatizada vai faturar ao longo do tempo? Nós temos alguns modelos matemáticos que são capazes de fazer estimativas sobre isto”… “A variável mais importante chama-se CME (Custo Marginal de Expansão). O CME é uma variável onde se coloca o seguinte, quanto vai valer a energia durante o tempo. Roda-se o modelo matemático com as suas variáveis de entrada e aí você chega no valor. Qual foi a fraude com relação a subavaliação? Uma hidrelétrica tem dois produtos principais: energia e potência. Porque uma hidrelétrica, diferente de uma usina eólica, por exemplo, ela pode fornecer energia instantaneamente. Uma usina eólica ou uma usina solar, você não controla o vento e nem controla o sol, mas no caso da usina hidrelétrica você pode controlar sim o despacho de água. Por isso que a EPE (Empresa de Pesquisa Energética) dividiu o CME em dois produtos. O CME energia e o CME potência”, explicou o eletricitário, que continuou.
“A última privatização importante de uma usina hidrelétrica brasileira foi a privatização da Usina de Porto Primavera, em São Paulo, e quando foi feita essa privatização o próprio Ministério de Minas e Energia (MME) utilizou como variável o CME, que junta tanto energia quanto potência. Pois agora, com a privatização da Eletrobrás, eles acharam jeitinho, usaram apenas o CME energia, desconsiderando que as usinas hidrelétricas têm um produto chamado potência. Então, quando a gente vê, o CME energia é sempre menor do que o CME completo. É evidente, porque o CME completo composto de duas parcelas, [no processo de privatização] está se considerando só uma das parcelas”.
“A gente vê que o valor utilizado pelo MME para fazer o cálculo do valor adicionado, ou seja, aquele dinheiro que vai ser retirado do bolso do consumidor e vai para os acionistas, ele utilizou R$ 172 megawatt-hora. Agora, o último valor de CME que nós temos é de R$ 246 do megawatt-hora, porque está faltando uma parcela que é a potência – que eles fizeram de conta que não existe”. “Eles desconsideraram o CME potência, que a gente vê que tem um valor”, ressaltou o sindicalista. “Essa parcela das usinas de repente desapareceu? Essas usinas passaram a não ter potência? Usinas que têm reservatórios que são responsáveis por 52% da água armazenada do país não têm potência nenhuma? Não podem garantir potência nenhuma? Desapareceu, sumiu? É como se a gente estivesse vendendo um sobrado e avaliado só o térreo. Faz de conta que não existe a parte de cima. Isto é uma fraude”, advertiu Chaves.
Ikaro Chaves também apontou que o governo não apresentou dados de que o preço da energia para os consumidores ficará mais caro. “Só há alegações. Não há uma planilha para que se possa reproduzir um cálculo. Isto não tem outro nome, isto é fraude, e grosseira, diga-se de passagem”.
Com base em dados da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Chaves destacou que as tarifas de energia ficarão mais caras para os consumidores. “Serão subtraídos ao longo de 30 anos do bolso do consumidor R$ 308 bilhões”, disse o engenheiro, ao ponderar que a Fiesp não considerou a Usina de Tucuruí em seus cálculos. “Com a Usina de Tucuruí serão R$ 400 bilhões que vão ser subtraídos do consumidor brasileiro em 30 anos”.
Outra fraude no processo de privatização defendida por Bolsonaro é de que a Eletrobrás precisa de dinheiro para investir. “Dinheiro ela vai ter muito, como eu falei, R$ 400 bilhões ao longo desses 30 anos. Dinheiro não vai faltar para esses caras. Agora, primeiro, eu quero que me diga qual é o artigo da Lei onde está obrigando a Eletrobrás [privatizada] a investir R$ 1 em geração e transmissão de energia elétrica? Não tem uma só obrigação de investimento na expansão do sistema elétrico brasileiro. Nenhuma. Ou seja, vai ter que contar com a boa vontade dos acionistas da Eletrobrás para ao invés de colocar o dinheiro no bolso investir no setor elétrico brasileiro”.
PATRIMÔNIO
O diretor do Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas de Energia do Rio de Janeiro e Região (Sintergia-RJ) e da Confederação Nacional dos Urbanitários, Emanuel Mendes Torres, chamou de nefasto o processo de privatização da Eletrobrás. “Essas pessoas irresponsáveis têm feito de tudo para entregar o patrimônio e ceifar os empregos dos trabalhadores”, declarou.
“A Eletrobrás ao longo desses últimos anos ela teve uma política de não mais fazer os investimentos. Não porque a Eletrobrás não podia, mas foi uma política da diretoria executiva da Eletrobrás que orientou o conselho de administração da empresa que não realizasse mais investimentos, mas que desse prioridade aos acionistas. Ou seja, todos os lucros vieram para ser distribuídos em forma de dividendos e eles ganharam muito dinheiro ao longo desse tempo. O governo o tempo todo alega que a Eletrobrás não pode investir mais, que não tem condição de investir mais, é mentira. A Eletrobrás hoje é uma empresa enxuta. A Eletrobrás tem uma dívida baixíssima. A Eletrobrás tem um quadro de pessoal enxuto. A Eletrobrás tem dinheiro em caixa. A Eletrobrás tem dinheiro a receber e nenhuma empresa seja ela pública ou privada faz investimento 100% do seu capital. Ela pode muito bem fazer a capitalização e fazer os investimentos necessários”, frisou Mendes Torres.
O representante do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico (Ilumina), Gustavo Teixeira, destacou também que a Eletrobrás hoje tem capacidade de investimento, mas que a companhia não avança nos investimentos por uma questão ideológica de privatização da Eletrobrás.
PRIVATIZAÇÃO NÃO VAI REDUZIR AS TARIFAS
“A Eletrobrás tem capacidade de investimento? Sim. O que foi argumentado é que ela não tem vontade. Então, capacidade é diferente de vontade. A empresa tem uma condição financeira hoje bastante saudável, o que falta mesmo é vontade de investimento. A privatização da Eletrobrás vai reduzir as tarifas? Não. Já foi discutido aqui, existia um impacto bastante grande da descotatização – que é a liberalização do preço da energia de um conjunto de usinas hidrelétricas, que hoje estão sob o regime de cotas e são as energias mais baratas do país. Além de outros elementos estranhos que foram inseridos no processo [de privatização]. Então, a privatização não vai reduzir as tarifas”.
“A privatização vai gerar mais empregos? Também não. Aumenta o custo de produção, a energia é muito importante e, portanto, a classe industrial vem se colocando também contrária a esse processo, exatamente pelo impacto nos custos de produção e não há nenhuma garantia de investimento por parte dos novos acionistas. A gente sabe que investimento tem uma relação direta com o emprego e dessa forma a privatização não deve gerar novos empregos”, pontuou Teixeira, que seguiu com seus questionamentos.
“A privatização vai contribuir para uma matriz mais limpa? Também não. Não há nenhuma garantia de que a Eletrobrás hoje, que é uma das empresas de energia renovável maior do mundo, tem a maior capacidade instalada em termos dos reservatórios, não há nenhuma garantia nessa modelagem de que o novo acionista vai manter esse perfil de energia renovável, de energia limpa da Eletrobrás. E como não há nenhuma garantia de investimento, a gente não pode afirmar que a privatização vai contribuir para uma matriz mais limpa”.
“A gente poderia fazer uma quinta pergunta: a privatização da Eletrobrás garante a segurança energética? Não. Porque existe um risco muito grande de concentração de mercado e esse risco de concentração de mercado já foi levantado por diversas instituições, inclusive por defensores da privatização. Quer dizer, a Eletrobrás pela sua dimensão, tanto no segmento de transmissão quanto no segmento de geração, ela teria aí uma carta branca para especular no mercado de energia por conta do tamanho do poder de mercado que a empresa tem”, alertou Teixeira.
Gustavo ressalta ainda, que só quem ganha com a privatização da Eletrobrás é o setor financeiro. “Se a gente for olhar o conjunto do setor produtivo da economia brasileira o setor elétrico ele fica entre o segundo ou terceiro como o maior pagador de dividendos. O que significa isso? Significa que há uma transferência de renda da população, das famílias e das empresas, para os acionistas dessas corporações, que na sua grande maioria são investidores institucionais. São os grandes fundos de investimento”, disse.
Eles possuem participação em todas as grandes corporações. Ou seja, um fundo de investimento possui participação relevante em torno de 5% a 7% no capital de todas as grandes corporações do setor elétrico. Então, é muito difícil a gente afirmar que a concorrência nesse setor, porque os acionistas são os mesmos. Não é à toa que o Estado participa como acionista importante no setor, para poder garantir que não haja um conluio entre esses investidores institucionais, e é muito possível que isso ocorra com essa diluição da participação da União do capital da Eletrobras”, advertiu.
A audiência pública foi uma iniciativa do deputado Pedro Uczai (PT/SC), presidente da Comissão de Legislação Participativa. O deputado defendeu uma mobilização da sociedade para que o processo de privatização seja suspenso.
Está na pauta do Tribunal de Contas da União (TCU) nesta quarta-feira (18) a continuidade do processo de privatização da Petrobrás.