O artigo abaixo, do jurista, professor e procurador do Trabalho Cássio Casagrande, nos pareceu interessante para o conhecimento de nossos leitores.
Os EUA não possuem uma instituição semelhante à nossa Justiça do Trabalho, criada pelo presidente Getúlio Vargas em 1941 – ou semelhante à Justiça do Trabalho de outros países, como a Alemanha, a França, a Espanha ou a Bélgica.
Nesse sentido, os EUA são um país muito atrasado.
O que não quer dizer que não exista, lá, um Direito do Trabalho.
Apenas…
Bem, leitores, vejamos o artigo de Casagrande, originalmente publicado no site JOTA.
Acrescentemos, somente, um comentário: os mesmos juízes da Corte Suprema dos EUA que, em nome da “liberdade de contrato”, declararam “inconstitucional” a fixação de salários mínimos para mulheres e crianças (é esse o conteúdo da sentença no processo Adkins v. Children’s Hosp.), nada tinham contra a fixação dos preços de mercadorias – ou seja, sobrepreços – pelos cartéis e monopólios privados, na mesma época.
C.L.
CÁSSIO CASAGRANDE*
Nascida no Kansas em 1899, Elsie Parrish tinha 36 anos, seis filhos e um neto quando bateu na porta do escritório do Dr. Charles Burnham Conner, modesto, porém respeitado advogado da pitoresca Wenatchee, conhecida como “a capital da maçã”, uma cidadezinha de dez mil habitantes no vale do Rio Colúmbia, Estado de Washington.
Elsie havia trabalhado durante dois anos como camareira para o Hotel Cascadian, tendo sido despedida no dia 11 de maio de 1935, ocasião em que embolsou um cheque de 17 dólares a título de saldo de salários. Naquela tarde do fim da primavera de 1935, ela explicou ao advogado que queria ajuizar uma ação trabalhista contra o antigo patrão. Disse ao causídico que a questão era muito simples: o empregador pagava-lhe uma remuneração inferior ao salário mínimo estadual para mulheres. Nas contas de Elsie, ela tinha para receber uma diferença de 216,19 dólares por todo o contrato de trabalho.
O Dr. Conner ouviu a narrativa da camareira com um ar complacente, pensando em como a Senhora Parrish era ingênua ao descrever a sua causa como “simples”. Sem dúvida, os fatos eram incontroversos: os salários pagos pelo Cascadian, administrado pela companhia West Coast Hotel, eram inequivocamente inferiores ao estabelecido na lei estadual. Mas o problema era a questão “de direito”: desde o julgamento do caso Adkins v. Children’s Hospital em 1923, a Suprema Corte dos EUA declarara a inconstitucionalidade de leis que fixavam salários mínimos, ao argumento de que essas normas violavam a “liberdade de contrato”. A jurisprudência estava de tal forma consolidada que os órgãos administrativos estaduais de fiscalização no Estado de Washington sequer se davam ao trabalho de promover o enforcement [execução] da lei local do salário mínimo.
A decisão proferida pela Suprema Corte no caso Adkins era mais uma dentre tantas da famosa “Era Lochner”, período da história da corte constitucional americana correspondente às três primeiras décadas do século XX, durante as quais juízes conservadores e ativistas dominaram a composição do tribunal, fulminando como inconstitucionais todas as leis do Congresso e das Assembleias estaduais que instituíam leis trabalhistas. Esse período sombrio foi assim denominado em razão do famoso caso Lochner v. New York, de 1905, que inaugurou essa fase e no qual foi declarada a inconstitucionalidade da lei do Estado de Nova Iorque que limitava a jornada de trabalho dos padeiros a dez horas por dia e sessenta semanais. O argumento era o de que leis trabalhistas violavam a liberdade contratual, que estaria protegida pelo due process of law da Décima Quarta Emenda.
Pelos trinta anos seguintes à decisão do caso Lochner, os juízes conservadores mantiveram-se em maioria e derrubaram de forma inclemente e despudorada todas as leis sociais de proteção ao trabalho originárias do poder Legislativo, estadual ou federal.
Neste longo interlúdio, os Justices da Suprema Corte invalidaram, dentre outras, além da limitação da jornada de trabalho (Lochner v. New York, 198 U.S. 45 (1905)), normas que asseguravam o direito de livre associação aos sindicatos (Adair v. United States, 208 U.S. 161 (1908)); que garantiam o exercício da greve e do boicote (Lowe v. Lawlor, 208 U.S. 274 (1908)); que proibiam o trabalho infantil (Hammer v. Dagenhart, 247 U.S. 251 (1918)) e, como visto, que estabeleciam salário mínimo (Adkins v. Children’s Hospital, 261 U.S. 525 (1923)).
Mas então a Bolsa de Nova Iorque quebrou no dia 24 de outubro de 1929 e veio a Grande Depressão. Nas ruas de Manhattan choviam suicidas. No início dos anos 1930, um em cada quatro americanos estava desempregado, milhões encontravam-se afundados em dívidas e outros tantos passavam fome. Os subterrâneos do metrô de Nova Iorque eram a casa de milhares de trabalhadores. Herbert Hoover, do Partido Republicano, fora eleito em 1928 – antes do crash em Wall Street – e sua resposta para a crise foi mais “laissez faire” liberal: ele acreditava que a depressão era natural em um movimento cíclico do capitalismo e que a competição livre das forças de mercado por si só reergueria a economia, eliminando os “fracos”. Mas a sua resposta estava errada, pois o cenário só se deteriorava, ano a ano. Na eleição de 1932, o oposicionista do Partido Democrata Franklin Delano Roosevelt nadou de braçada e levou a presidência.
F.D.R. assumiu em 1933 e, diferentemente de Hoover, defendia que somente uma intervenção do Estado poderia reorganizar a economia e tirar os EUA do buraco. Ele aplicou a doutrina keynesiana de intervenção tópica do governo para alavancar a economia e assim nascia o “New Deal”. E um dos pilares da nova política rooseveltiana seria o reforço da legislação laboral, através da criação de uma norma federal uniforme (National Labor Relations Act, de 1935) que estabelecia patamares mínimos de regulação trabalhista e criava condições para que os sindicatos tivessem força e posição de equilíbrio nas negociações coletivas. Mas essas medidas equivaliam a uma declaração de guerra à jurisprudência conservadora da Suprema Corte, ainda dominada pelos juízes provectos e reacionários da “Era Lochner” (os Justices eram então apelidados de “Os Nove Velhos”), sustentada na ideia – há muito superada na Europa – de que a liberdade de contrato de trabalho deveria ser absoluta.
No ano de 1935, a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade de diversas leis fundamentais do New Deal, em especial aquela que era talvez a sua espinha dorsal, a National Industrial Recovery Act (NIRA), que continha também algumas provisões sobre regulação laboral. Essa decisão foi divulgada no dia 27 de maio de 1935, uma segunda-feira, causando um grande estardalhaço. O dia passou a ser conhecido como a “Black Monday” de Roosevelt. Portanto, a Suprema Corte resolveu dobrar a aposta e “pagar para ver”, especialmente porque contava então com uma maioria sólida de cinco juízes conservadores.
F.D.R. estava furioso com as decisões dos anos judiciários de 1935 e 1936, extremamente conservadoras, que anulavam suas principais medidas.
O povo lhe havia concedido um mandato para por fim às políticas excessivamente liberais de Hoover, mas agora a Suprema Corte estava barrando suas iniciativas, restabelecendo por decisão judicial a política de laissez faire anterior que fora rejeitada nas urnas. Certamente o próximo alvo da Suprema Corte seria a National Labor Relations Act, pois os empresários já estavam propondo diversas ações contra ela, arguindo sua inconstitucionalidade.
Roosevelt decidiu então confrontar a corte constitucional, especialmente depois de ser reeleito em novembro de 1936 com uma votação avassaladora.
Valendo-se do fato de que a Constituição dos EUA não define o número de juízes da Suprema Corte (matéria relegada à legislação ordinária), F.D.R. começou a conceber no início do segundo mandato o famoso “court packing plan”, o plano de empacotamento da corte: um projeto de lei que, caso aprovado, lhe permitiria indicar, em curto prazo, mais seis juízes para a Suprema Corte! O projeto seria encaminhado ao Congresso logo no início do segundo mandato de Roosevelt e suscitaria um acirrado debate entre os congressistas.
Bem, mas voltemos ao caso da senhora Elsie Parrish, pois é exatamente neste momento que, por um belo capricho da história, a sua ação trabalhista vai parar no olho do furacão da luta renhida que ameaçava o equilíbrio entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Enquanto Roosevelt e os juízes da Suprema Corte disputavam uma dura batalha política sobre a constitucionalidade de medidas fundamentais do New Deal, o processo Parrish v. West Coast Hotel corria modorrentamente na Justiça do Estado de Washington. O hotel havia vencido em primeira instância, mas a decisão surpreendentemente acabara sendo revertida na Suprema Corte Estadual em favor de Elsie. O argumento (pouco consistente para afastar o precedente) era o de que no caso Adkins v. Children’s Hospital a lei do salário mínimo declarada inconstitucional era federal, enquanto que no caso Parrish a lei era estadual.
Por acreditar que a decisão deste tribunal violava o precedente Adkins v. Childrens’ Hospital – já que era irrelevante a competência federativa para solucionar a questão, pois tanto a União como os estados podem editar leis trabalhistas nos EUA -, a companhia hoteleira recorreu à Suprema Corte dos EUA, contratando um habilidoso, reputado e caro advogado da capital americana. A empresa não estava preocupada apenas com os 216,19 dólares reclamados pela senhora Parrish, é claro. O processo era importante porque teria um impacto na folha de pagamento de toda a rede de hotéis administrados pela corporação, sem contar a avalanche de ações que certamente seriam ajuizadas para reclamar o passivo trabalhista.
O caso entrou na pauta da Suprema Corte para sustentação oral em dezembro de 1936 (semanas após a reeleição de Roosevelt, portanto). O advogado patronal estava muito confiante, especialmente porque o precedente do caso Adkins havia sido reafirmado pela corte constitucional em um caso julgado seis meses antes, Morehead v. New York ex re. Tipaldo, 298 U.S. 587 (1936). Nesta hipótese, uma apertada maioria de cinco a quatro declarara a inconstitucionalidade de uma lei do Estado de Nova Iorque que estabelecia salário mínimo para mulheres e crianças. Franklin Roosevelt criticou publicamente esta decisão, dizendo que ela criava uma “terra de ninguém”, na qual nenhum governo conseguiria agir.
No entanto, quando a decisão do caso West Coast Hotel v. Parrish, 300 U.S. 379 (1937) foi anunciada pela Suprema Corte, em 29 de março, o público descobriu com grande espanto que a decisão era distinta daquela do caso Morehead, julgada apenas alguns meses antes!
Contra todas as expectativas e probabilidades, por cinco votos a quatro, os Justices desta vez decidiram o caso em favor da trabalhadora, a camareira Elsie, declarando agora a constitucionalidade da lei do Estado de Washington, afirmando assim a possibilidade das assembleias legislativas estaduais instituírem salários mínimos para as mulheres.
A corte declarou expressamente que o precedente Adkins v. Children’s Hospital de 1923 estava superado (“overruled”). Era o fim da “Era Lochner”. Coincidentemente, o caso foi divulgado em uma segunda-feira e essa data passou a ser conhecida como a “White Monday”. Com grande ironia, o Advogado-Geral do governo Roosevelt declarou: “A Constituição nesta segunda-feira, dia 29 de março de 1937, não significa a mesma coisa que ela significava no dia 27 de maio de 1936”.
Mas, afinal, o que havia mudado em menos de um ano? Aparentemente, nada. A composição da Suprema Corte era exatamente a mesma, nenhum juiz havia deixado o tribunal nesse período.
O voto que alterou o placar foi proferido pelo Juiz Owen J. Roberts. Ele simplesmente mudou de lado, juntando-se aos juízes que haviam sido vencidos no idêntico e recente caso anterior.
Muitas explicações têm sido dadas para o comportamento do Juiz Owen Roberts, pois a mudança de seu posicionamento representaria dali por diante uma verdadeira guinada na orientação ideológica da Suprema Corte, favorável ao New Deal e à legislação trabalhista. Para alguns historiadores, Roberts mudou de lado por temer uma intervenção mais dura de Roosevelt através do “plano de empacotamento da corte”. Essa explicação teria dado ensejo, inclusive, a uma expressão que entrou para o folclore da corte constitucional americana. A alteração repentina de opinião do Juiz Owen passou a ser conhecida como “the switch in time that saved nine” (a mudança oportuna que salvou nove).
Essa versão é rechaçada por outros autores, que sustentam que Roosevelt encaminhou mensagem ao Congresso com o “court packing plan” quando o voto de Owen no caso Parrish já havia sido elaborado. Isso de fato é corroborado por estudos mais recentes, mas é bastante possível que os juízes constitucionais já estivessem cientes do plano nos bastidores. Também há aqueles que acreditam que Owen J. Roberts refletiu sobre as consequências da decisão do caso Morehead (muito criticada pela opinião pública e pelo próprio presidente), simplesmente mudando seu pensamento jurídico. Teriam contribuído para isso os veementes votos divergentes proferidos naquele caso anterior, elaborados por juízes da minoria que eram considerados verdadeiros luminares da Suprema Corte, como Harlan F. Stone, Benjamin N. Cardozo e Louis D. Brandeis. Roberts era o juiz que havia ingressado por último naquele colegiado e não se pode desconsiderar a hipótese de que tenha se deixado convencer ou influenciar por aqueles grandes juristas.
Não pode ser igualmente descartado que o juiz, ao mudar de opinião, tenha levado em conta outras considerações de ordem política, já que a votação maciça do eleitorado em favor da reeleição de Roosevelt era um recado inequívoco sobre o que a população pensava do New Deal e da instituição de leis trabalhistas limitando a liberdade contratual.
Muito provavelmente, talvez todos esses fatores tenham concorrido para mudar a linha do Juiz Owen J. Roberts, que acabaria por reorientar a atuação da Suprema Corte a partir do caso Parrish, no sentido de reconhecer a constitucionalidade da regulação da atividade econômica pelo Estado, especialmente em matéria de direitos sociais.
O plano de empacotamento da corte de Roosevelt foi rejeitado pelo Congresso em meados de 1937. Nos anos seguintes ao caso Parrish, inúmeras ações foram levadas à Suprema Corte pelo patronato para questionar a constitucionalidade da National Labor Relations Act, começando por N.L.R.B v. Jones & Laughlin Steel Corporation, 301 U.S. 1 (1937), julgada naquele mesmo ano. Neste e nos demais processos a legislação trabalhista da Era Roosevelt foi mantida incólume pela Suprema Corte, cuja composição também começou a ser modificada lentamente por F.D.R., pela natural reposição de juízes aposentados ou falecidos. Alguns juristas norte-americanos, não sem razão, referem-se a esse momento como a “Revolução Constitucional de 1937”.
Em razão deste contexto, a ação trabalhista ajuizada pela camareira Elsie Parrish representou na história dos EUA o triunfo da legislação social para a classe trabalhadora daquele país, após terrível período de grande opressão patronal durante a “Era Lochner”, no qual a realidade eram salários baixos, jornadas excessivas e abuso na contratação de mulheres e crianças.
Nestes tempos obscuros que atravessamos, quando a legislação trabalhista é demonizada em tantos lugares, a história de Elsie Parrish lembra uma lição importante aos que acreditam na Justiça: é preciso lutar pelo Direito, mesmo quando tudo parece perdido.
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Elsie Parrish foi procurada por muitos jornalistas durante e após a decisão do caso pela Suprema Corte. Ela não se sentia confortável com a notoriedade, pois acreditava que havia perdido oportunidades de emprego em razão do ajuizamento da ação trabalhista contra o Hotel Cascadian. A foto que ilustra essa matéria foi tirada por um jornal local de Wenatchee logo depois da decisão da Suprema Corte, em outro hotel para o qual ela passou a trabalhar, em uma cidade próxima. Elsie voltou à sua vida anônima de trabalhadora e nos anos 1940 mudou-se para a Califórnia, onde viveu até seu falecimento, na cidade de Anaheim, em 03 de abril de 1980.
* Doutor em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.
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