A insanidade palaciana, além de prejudicar a população do país, que precisa se vacinar, sabota também a empresa brasileira que já fabrica a Sputnik V. Vacina já é usada de forma segura e eficaz em vários países
Em meio à maior crise sanitária da história brasileira, que já matou mais de 217 mil pessoas, e segue abatendo diariamente cerca de mil brasileiros, Jair Bolsonaro retira, burocrática e estupidamente, a possibilidade do uso no Brasil da vacina Sputnik V, desenvolvida pelo respeitado instituto de pesquisa Gamaleia, da Rússia. A Sputnik V já está em processo de transferência de tecnologia para a empresa farmacêutica brasileira União Química.
Segundo o jornal O Globo, documentos internos do governo federal mostram que o texto da medida provisória editada em janeiro deste ano, que permitia ao Ministério da Saúde adquirir vacinas no exterior antes mesmo do aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), foi mudado para excluir a Rússia da lista.
A MP foi editada por conta da urgência e pela gravidade da situação. Ela permite que imunizantes aprovados por agências reguladoras de outros países possam ser utilizadas como base para liberar o produto com maior agilidade no Brasil.
Essa medida provisória foi alterada no dia 6 de janeiro. Uma minuta datada do dia 29 de dezembro incluía também o Ministério da Saúde da Rússia. A versão preliminar continha a autoridade russa e destacava a necessidade de ampliar as listas de instâncias internacionais para aumentar o leque de opções de compra da vacina pelo governo brasileiro.
Por ordem dos lunáticos do governo, liderados pelo próprio presidente, que vê conspirações por toda a parte, a Rússia foi excluída da MP. Com isso, uma vacina com 91,4% de eficácia, e que já está sendo produzida no país, não poderá ser utilizada.
Bolsonaro tentou fazer o mesmo com a China.
Ele atacou a CoronaVac, desenvolvida pela empresa chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, de São Paulo. Chegou a comemorar como “vitória sua” uma morte ocorrida durante os testes com o imunizante no país. Depois teve que se calar pois se tratava de um suicídio, sem relação com a vacina. Insistente, ele voltou a atacar a vacina, dizendo que ela provocaria doenças, deformações e até a morte. Tudo devidamente desmentido por cientistas, médicos e pela prática.
Toda essa estupidez obscurantista teve que ser reformulada às pressas porque a falta de vacinas gerou uma situação insustentável. Bolsonaro, seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, e o chanceler, Ernesto Araújo, tiveram que parar de atacar a China para agradar o governo dos EUA. Até porque todas as opções viáveis de vacinas para uso no Brasil passam pelo gigante asiático.
A CoronaVac é produzida na China – está transferindo tecnologia para o Butantan, e a vacina AstraZeneca, que o Brasil está importando, é produzida por uma fábrica chinesa na Índia. Brigar com a China, portanto, não traz futuro a ninguém.
A versão final, assinada pelo presidente Jair Bolsonaro e mais quatro ministros, incluiu a China, mas retirou a Rússia. Já constavam o Reino Unido, além do Japão, Estados Unidos e União Europeia. A aprovação nesses países serviria de base para a Anvisa conceder autorização excepcional de vacinas.
Agora, o “bandido” é outro. A “perseguição” mudou para a Rússia. Só que a empresa brasileira União Química, com sede em Brasília, já anunciou que tem condições de oferecer, de imediato, 10 milhões doses da vacina e pode produzir 60 milhões de doses nos próximos seis meses. O Brasil precisa de mais de 400 milhões de doses para vacinar toda a população.
A União Química informou que o Instituto Gamaleia, da Rússia, já está transferindo tecnologia para a produção no Brasil do IFA (Insumo farmacêutico Ativo) e que a empresa já estará produzindo de forma experimental a matéria prima em abril.
Com esse processo, o Brasil recupera, em parte, a sua autonomia neste setor de produção de insumos farmacêuticos, perdida com as políticas neoliberais de desmonte do setor de Ciência e Tecnologia, de cortes de investimentos públicos e de desindustrialização do país, iniciadas na década de 1990 e acentuadas bastante nos últimos anos.
Prova maior de que o governo não age com base na ciência reside no fato de que a vacina já está sendo usada com sucesso em diversos países, inclusive vizinhos, sem nenhum relato de problemas.
Além disso, em dezembro, o próprio ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, anunciou o plano nacional de imunização para Covid-19 e citou a possibilidade de comprar diversas vacinas, incluindo a da Rússia. Desde esse posicionamento até agora os dados sobre a vacina russa confirmaram a sua segurança e os testes já haviam mostrado sua alta eficácia.
A Sputnik V já foi aprovada para uso emergencial em países como Argentina, Bolívia, Venezuela e Paraguai. No Brasil, a farmacêutica União Química pretende produzir a vacina russa para a demanda interna e outros países da América Latina.
A União Química, farmacêutica responsável pela Sputnik V no Brasil, submeteu à Anvisa o Dossiê de Desenvolvimento Clínico de Medicamento, em dezembro, para pedir permissão para dar início aos testes clínicas da vacina em território brasileiro.
O Brasil está com 10 milhões da CoronaVac e mais 2 milhões da vacina da AstraZeneca. O Instituto Butantan anunciou que ja está envazando mais 4 milhões de doses e receberá mais insumos até o final do mês. A da AstraZeneca aguarda o envio de insumos.
Ou seja, para uma população de 212 milhões de pessoas, coma pandemia em franco processo de expansão, o país está numa situação dramática quanto ao ritmo de vacinação. Não se justifica, portanto, essa má vontade do governo com o Instituto Gamaleia, da Rússia.
Primeiro, por seu prestígio e espírito de cooperação, ao aceitar transferir tecnologia para o Brasil, e, segundo, com uma empresa brasileira que está se arriscando e investindo na capacidade de produção interna de insumos, uma decisão que interessa muito ao país e ao povo brasileiro.
Nas argumentações burocráticas enviadas ao STF a Anvisa ignora solenemente o fato de que a tecnologia usada pela Sputinik V é a mesma da AstraZeneca, já avaliada pelo órgão.
“É importante o destaque para a inovação e a complexidade biotecnológica da vacina Sputnik V, que exige apurada avaliação técnica das condições de fabricação do insumo farmacêutico ativo e da vacina na forma pronta para uso, assim como dos estudos de qualidade, imunogenicidade, segurança, eficácia e o plano de monitoramento dos riscos, permitindo que essa vacina possa ser utilizada na população brasileira sob a chancela da autorização de uso emergencial, em caráter experimental, concedida pela Anvisa”, afirmam.
O órgão discorre ainda sobre regras constitucionais e leis que impedem a aprovação emergencial da vacina já em uso pelo mundo afora. “A ação enseja violação de pilares básicos contidos no texto da Constituição Federal de direcionamento do agir do Poder Público, especialmente de proteção e prevenção da vida e da saúde da população brasileira, por meio de políticas sociais e econômicas que visem à redução de doenças e de outros agravos à saúde”, diz a Anvisa.
Por fim, esquecendo-se de que a legislação permite, em situações de emergência, a aprovação de uso emergencial para vacinas aprovadas em outros países, a Anvisa afirmou, cinicamente, que “submeter à análise técnica” da instituição a “uma decisão tomada por autoridade estrangeira” é abdicar da soberania nacional. Caso explícito de “dois pesos e duas medidas”.