Após 346 mortos em dois desastres aéreos em cinco meses, o mais novo modelo da Boeing, o 737 Max, considerado seu carro-chefe para a década à frente, com uma carteira de encomendas de 5 mil aviões, encontra-se aterrissado no mundo inteiro, depois de evidências de erro de projeto e de conluio com a agência aérea dos EUA (FAA) no processo de certificação. Os acidentes aéreos ocorreram minutos após a decolagem.
Aos 189 mortos de outubro do ano passado na queda do 737 Max do voo 610 da Lion Air, logo após a decolagem, no mar de Java, Indonésia, somam-se agora 157 mortos da Ethiopian Airlines, no mergulho, contra um campo perto de Adis Abeba, de modelo semelhante e circunstâncias idênticas. As caixas pretas do voo 302 já chegaram a Paris para decodificação e análise.
Com as autoridades dos EUA correndo atrás de isolar o desgaste, e com as ações da Boeing tomando um tombo de 12% em uma semana, o jeito em Washington foi providenciar duas investigações da certificação do 737 Max pela FAA, uma do Departamento de Justiça, e outra, do Departamento de Transportes.
Ou seja, se fosse para valer, como a Boeing recebeu luz verde para um sistema de voo defeituoso. Conforme o Wall Street Journal, o modelo representa, nas expectativas da Boeing, dois terços das suas entregas futuras e 40 por cento dos seus lucros.
No domingo, em Adis Abeba, familiares foram à catedral da Santíssima Trindade para cerimônia fúnebre em homenagem a 17 dos mortos do voo da Ethiopian Airlines, no dia 10, entre eles os oito membros da tripulação. Os caixões estavam cobertos com a bandeira etíope.
Na quinta-feira, parentes angustiados visitaram o local da tragédia em um campo carbonizado: o impacto foi tão violento que os corpos ficaram despedaçados. O governo etíope calculou em seis meses o tempo necessário para a identificação por DNA.
NOVINHOS EM FOLHA
Em entrevista ao Democracy Now, o consultor de aviação da Consumer Report, William McGee, destacou que não se trata de aeronaves antigas. “Este é um avião que só está em serviço desde 2017. Agora, nesse período de tempo, a aeronave que caiu em outubro tinha dois meses; o que caiu no domingo, 4 meses”.
Como McGee ressaltou, “isso é realmente sem precedentes em todos os anos em que estive nessa indústria. Não vemos aviões novinhos em folha caírem na decolagem como estes, sob circunstâncias similares”.
A Boeing se viu obrigada a suspender a entrega do 737 Max, e está amontoando os aviões no estacionamento da fábrica em Seattle.
Quando da decretação pelas autoridades chinesas da suspensão de todos os voos de 737 Max em seu espaço aéreo, tentativa da FAA e da Boeing de asseverarem que este era um “avião seguro” e sem “problemas sistêmicos” desmanchou-se quando o ministro dos Transportes do Canadá, Marc Garneau, anunciou que dados de satélite demonstravam que a trajetória do voo da Ethiopian Airlines antes do impacto tinha “um perfil muito semelhante” ao do 737 Max da Air Lion da queda de outubro.
BRIGA DE FOICE
A Boeing iniciou o projeto em 2011, para competir com o enorme sucesso do Airbus 320neo. Para implantar motores mais pesados e supostamente economizadores de combustível, a Boeing acabou por deslocar o centro de gravidade do 737 original, o que tentou compensar com um sistema automatizado (MCAS) que tinha como efeito colateral, em certas circunstâncias, como na decolagem e sob piloto automático, erroneamente fazer o estabilizador de cauda provocar um abaixamento do bico do avião e forçar o avião a mergulhar.
Há relatos de pilotos apavorados lutando contra o MCAS (o sistema automatizado) pelo controle do avião. No caso do voo da Lion Air, foi determinado que o sensor do ângulo de subida tinha um defeito e forneceu uma leitura falsa ao sistema automatizado que, na suposição de restabelecer a sustentação, forçou a aeronave a mergulhar, enquanto o piloto tentava erguer o nariz do avião. Tudo aconteceu em intervalos de 15 a 20 segundos que se repetiram por alguns minutos até o colapso.
O piloto do voo etíope havia reportado problemas de controle interno e chegou a receber permissão para retornar. O piloto do vôo da Lion Air também pediu para voltar minutos depois de decolar de Jacarta.
NO IPAD
Para facilitar a venda do novo modelo, a Boeing fez a propaganda enganosa de que não precisava de treinamento adicional em simulador e a coisa foi tão longe quanto improvisar cursos de uma hora online de atualização.
Um piloto da American Airlines, Dennis Tajer, revelou que só ficou sabendo da existência do sistema automatizado MCAS quando, depois da queda do voo 612 da Lion Air, a Boeing informou sobre “leitura errônea de dados”. Também porta-voz da Allied Pilots Association, ele relatou que o treinamento de familiarização com o novo modelo consistiu em uma exposição “de uma hora em um iPAD”.
Segundo o New York Times, um grupo de pilotos que estudou o novo modelo sem realmente voar, compilou um guia de 13 páginas sobre as diferenças entre o 737 MAX e seu antecessor, sem sequer mencionar o sistema MCAS. Um piloto em novembro passado chamou o manual de voo do novo modelo de “inadequado e quase criminoso”.
ULTRAPASSADOS
“A verdade é que o departamento de projetos da Boeing está velho e ultrapassado, seus projetos não têm condições tecnológicas de concorrer com as novas versões do A320” da Airbus, afirmou o presidente da Associação dos Investidores Minoritários do Brasil (Abradin), Aurélio Valporto.
O presidente da Associação alertou sobre os sérios problemas do Boeing 737 MAX, a quarta geração da família 737, “que resultaram não somente numa turbina menos eficiente por conta de problemas de projeto no trem de pouso, mas, aparentemente, problemas eletrônicos e de projeto graves que resultaram em acidentes fatais e morte de todos os ocupantes”.
Por sua vez o ex-candidato a presidente Ralph Nader, que perdeu uma sobrinha-neta na queda do voo da Ethiopian Airlines, denunciou que o 737 Max foi vendido como se fosse “uma pequena modificação do confiável 737 que está no mundo inteiro” e, portanto, as companhias aéreas “não precisavam realmente treinar seus pilotos”. “A questão toda é o corte de custos”, assinalou.
BOEING: FISCAL DA BOEING
Com 346 mortos na conta, agora a discussão é de como foi que a FAA achou tudo isso tão normal. O Seattle Times publicou no fim de semana um relatório questionando os protocolos seguidos e dizendo que havia “falhas cruciais”. Mas a questão de fundo é a promiscuidade entre a FAA e a Boeing.
A Boeing é a maior exportadora dos EUA e a ação de maior peso no índice Dow de Wall Street, com um faturamento de US$ 100 bilhões no ano passado, 60% disso na área da aviação civil, dos quais um terço na carteira de pedidos do 737. O ex-executivo da Boeing, Patrick Shanahan, é o atual chefe do Pentágono de Trump.
Desde 2005, sob W. Bush, a FAA introduziu – melhor dizendo, a Boeing – um programa de controle no qual o fabricante poderia determinar seus próprios funcionários como “designados” da FAA na certificação de seus aviões comerciais. Sistema mantido por Obama e, agora, por Trump, alegadamente pela falta de pessoal.
Como notou um ex-diretor do órgão responsável pela segurança no transporte dos EUA, Jim Hall, “o fabricante se torna essencialmente o fabricante e o regulador, devido à falta de capacidade do governo para fazer o trabalho”. Relacionamento que classificou, com certa ironia, de “muito acolhedor”. Já Nader lembrou que a FAA é conseguida como “agência federal das lápides”, por só agir depois de desastres aéreos com muitas mortes.
ANTONIO PIMENTA