O escolhido para ministro da Educação, por Bolsonaro, Ricardo Vélez-Rodríguez, tem um blog de nome “Rocinante” – que, como se sabe, era (ou é) o nome do cavalo de Dom Quixote.
Há quem diga que, depois do Rocinante, o próximo escolhido será o Bucéfalo, mas que Bolsonaro está em dúvida se o melhor não será o Incitatus.
Porém, Vélez-Rodríguez é especialista em muitas coisas. Descreve a si mesmo como “profesor universitario e investigador en el área de historia de las ideas, la teoría del conocimiento, la cosmología y la filosofía política” (o sujeito é colombiano, daí o uso do castelhano).
Provavelmente, também deve ser especialista em culinária e mecânica espectral – mas isso nós não temos certeza.
Do que temos certeza é que se trata de um entusiasmado pelo profícuo trabalho dos “serviços secretos norte-americanos” (por exemplo, ao falar das Farc, de seu país de origem: “Os serviços secretos norte-americanos estão realizando um rigoroso monitoramento desse novo Narco-Estado” – como se os problemas colombianos não competissem aos colombianos resolverem, mas aos norte-americanos).
Também é um adepto da ditadura de 1964 – segundo ele, que nem nasceu no Brasil, o golpe de 1º de abril de 1964 é “uma data para lembrar e comemorar“.
Quanto à Educação, sabe-se que o sujeito preconizou a existência de comissões para disciplinar os alunos, quer dizer, “conselhos de ética que zelassem pela reta educação moral dos alunos“.
Como esses conselhos agiriam, ele não esclareceu. O máximo que disse foi: “trata-se de institucionalizar a reflexão“. Será através da palmatória, da vara de marmelo e outros modernos instrumentos pedagógicos?
Vélez-Rodríguez, evidentemente, é um assecla da “escola sem partido”, isto é, da escola de um partido só.
Mais que um assecla: diz ele que uma medida fundamental para “garantir a Liberdade” (assim mesmo, com letra maiúscula) é proibir professores e alunos de debaterem livremente ou de tomarem partido, para evitar a “tentação totalitária”. Logo, se os professores e estudantes forem proibidos de discutir, estaria assegurada a Liberdade, com “L” maiúsculo, e evitadas as tentações (v. seu artigo “Independência: escola sem partido, república sem bambú”).
Mussolini, convenhamos, era mais sincero, ao dizer que “a liberdade é um cadáver putrefato”. Pelo menos não dizia que sua ditadura era para “garantir a liberdade”.
Quanto aos problemas educacionais, Vélez-Rodríguez é até mais explícito: seu problema é com a escola, pois “o Pátrio Poder precisa ser preservado. Todos os totalitarismos do século XX partiram para negar esse sagrado poder de a família educar os seus filhos”.
Se é assim, para que escola?
É óbvio que a razão dos pais para colocarem seus filhos na escola é fazer com que eles aprendam algo diferente – mais extenso, mais profundo, mais científico ou mais artístico – do que eles, pais, são capazes de ensinar.
Qualquer pai (ou mãe) normal – isto é, que não seja maluco – quer que os filhos aprendam coisas que ele, pai (ou mãe), não sabe, coisas que, às vezes, até acabam por esclarecer os próprios pais.
Se não fosse assim, para que colocar os filhos na escola?
A última coisa que um pai saudável pode querer é que seus filhos sejam prisioneiros do próprio lar. Os filhos não são extensões dos pais, mas seres humanos que se desenvolvem em direção à autonomia, em sua plenitude.
Nisso, a escola – em todos os níveis – tem um papel fundamental.
Mas Vélez-Rodríguez – e demais adeptos do “escola sem partido” – defendem que a própria função da escola, ao ir além do que podem os próprios pais, é “totalitária”.
Portanto, é forçoso concluir, são contra a escola.
Aquela escola que dizem querer, não é uma escola. Como pode ser escola aquilo que não vai além da família? Como pode existir escola sem debate, sem confronto de ideologias, sem partidos, dominada por um pensamento único, apenas com a ideologia e com o partido desses inquisidores?
Isso não é escola. Isso é o que poderia existir de mais totalitário.
Não estamos exagerando, leitores: a recente votação sobre o ensino domiciliar (chamado, sintomaticamente, de “homeschooling”) no Supremo Tribunal Federal (STF), evidenciou, exatamente, o ódio dos neo-escravagistas à escola (v. STF nega recurso que pedia reconhecimento de direito a ensino domiciliar).
Por que eles odeiam a escola, e, sobretudo, a escola pública?
Porque são obscurantistas – e a tal ponto – que suas crenças não resistem a qualquer debate.
Assim, o problema, para esses trogloditas, passou a ser a escola.
A propósito, o último regime, aqui no Brasil, a defender que os filhos do povo – e, muitas vezes, até os filhos (e, sobretudo, as filhas) da elite – não deviam ir à escola, chamou-se escravagismo.
Não é por acaso que até as escolas particulares advertiram contra a escolha de Vélez-Rodríguez, momentos antes dela ser anunciada, na quinta-feira. Disse a nota da Associação Brasileira de Escolas Particulares (Abepar):
“A Abepar considera um enorme retrocesso se o novo titular do MEC for um nome estranho à área educacional, que resulte de uma escolha política e ideológica, marcada pela defesa de teses regressivas, ultrapassadas e questionáveis, como é o caso do projeto Escola sem Partido.
“Acreditamos que, se o escolhido for um nome nessa linha, provavelmente teremos pela frente um período de grave turbulência no meio acadêmico e educacional, com prejuízos para os alunos e os professores das redes públicas e particulares de ensino.”
Pois agora teremos um ministro da Educação que detesta a escola.
Certamente, Vélez-Rodríguez poderá alegar que, como professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, não se pode dizer que ele detesta a escola.
Pois é, leitores, as Universidades Federais, no Brasil, são tão democráticas que até admitem indivíduos que detestam a escola, que querem proibir o debate e a luta ideológica dentro das escolas – para que somente a sua ideologia reacionária seja permitida – e que acham possível sequestrar crianças e jovens em um suposto recesso do lar.
SALGADO
Quanto ao que pretende fazer no MEC, Vélez-Rodríguez publicou, no último dia sete, um texto intitulado “Um roteiro para o MEC”, confeccionado porque “através das vozes de algumas pessoas ligadas à educação e à cultura (dentre as quais se destaca o professor e amigo Olavo de Carvalho), fui indicado para a possível escolha, pelo Senhor Presidente eleito Jair Bolsonaro, como ministro da Educação”.
Nesse texto, a única ideia que existe, sobre o MEC, é entregar toda a Educação – inclusive a universitária – aos municípios, baseado na profunda tese de que o município “é onde os cidadãos realmente vivem” e no lema bolsonarista “Menos Brasília e mais Brasil”.
Vélez-Rodríguez é, portanto, a favor de encarcerar o cidadão no município, como se ele não fosse parte (e parte formadora), também, do Estado e do país, dissolvendo a Nação no município.
A ideia não é original: foi levantada por Plínio Salgado, o führer do integralismo, ainda na década de 30 do século passado – e dizem que ele copiou essa profunda ideia de Hitler e outros nazistas.
Quanto ao resto, é claro que municipalizar todo o ensino significaria destruir o sistema educacional de alto a baixo.
Por sinal, não pense o estimado leitor que Vélez-Rodríguez está propondo que as escolas sejam transformadas em escolas públicas municipais. Não, o sujeito é um privatista que acha que abrir escolas públicas é “autoritarismo estatizante”. Portanto, a municipalização dele é privada. E não nos pergunte, leitor, como é isso. Nem ele sabe.
Mas, depois disso, o ódio dessa gente pela escola não necessita de mais demonstrações.
O escrito de Vélez-Rodríguez (“Um roteiro para o MEC”), apesar do nome, que sugere um tratado, tem apenas uma lauda e meia (o homem é um gênio da síntese).
Nele, além do revival galinha-verde municipalista, Vélez-Rodríguez ataca os outros concorrentes ao posto de ministro da Educação de Bolsonaro (e, no dia sete deste mês, ele já sabia quem eram os concorrentes).
Ataca, também, o fundador do sistema público de ensino brasileiro, Getúlio Vargas, porque teria sido “estatizante”, “de cima para baixo” (de onde se conclui que sua proposta é acabar com a ação do Estado na Educação, para ter um sistema “de baixo para cima”).
E tenta se aproveitar do repúdio nacional ao PT, como se o que diz fosse muito diferente de certas “ideias petistas” sobre Educação (v. um apanhado delas em Anísio Teixeira contra os privatizadores do ensino).
Por fim, Vélez-Rodríguez tem o descaramento de se apresentar como continuador de Anísio Teixeira, educador cassado pela ditadura quando era reitor da Universidade de Brasília – e morto em circunstâncias muito suspeitas, em 1971.
Mas isso merece uma abordagem à parte.
FAMÍLIA
Anísio Teixeira – a quem Jorge Amado dedicou “Capitães da Areia”, chamando-o “o amigo das crianças” – foi o educador brasileiro que mais enfatizou a importância do ensino público, gratuito e para todos (isto é, para pobres e ricos).
Foi o educador que, ainda na década de 30 do século passado, escreveu um programa partidário para a Educação (o do Partido Autonomista do Distrito Federal, que elegeu Pedro Ernesto prefeito do Rio de Janeiro, em outubro de 1934).
Foi aquele que, para revolucionar a educação na então capital da República, organizou “uma equipe que reuniu grande número de colaboradores dos mais distintos matizes ideológicos: católicos, liberais, comunistas, pensadores de direita e de esquerda” (cf. Clarice Nunes, “Anísio Teixeira”, Coleção Educadores, MEC, 2010, p. 22).
Além disso, Anísio Teixeira tinha, sobre a relação entre família e escola, precisamente o ponto de vista oposto a essa gororoba reacionária do ministro da Educação de Bolsonaro. Escreveu Anísio:
“Existe algo de irreal e equívoco nessa afirmação de que cabe à família o controle da escola. Costumam os defensores dessa posição afirmar que a família é o grupo social natural e concreto e que o Estado é vago e abstrato. Ai de nós, que hoje é exatamente o contrário. Por mais desagradáveis que sejam certas realidades, há que aceitá-las e dispor as coisas à vista dos fatos, dos ‘teimosos fatos’ de que falava William James. Respeitar os fatos é o começo de toda sabedoria.
“Ora, os fatos são os de que a família já não é a antiga família, segura e sólida, capaz de arcar com as suas terríveis responsabilidades. Hoje precisa ela, acima de tudo, de ser ajudada. Cabe-lhe a educação dos filhos até a idade escolar e, depois, colaborar com a escola em tudo que lhe for possível, mas não lhe podemos entregar a própria responsabilidade da escola. O seu respeito hoje ao mestre não pode ser menor do que o respeito que deve ao médico. Um e outro a ajudam, mas não são seus criados, e sim profissionais independentes e autônomos.
(…)
“Em sociedade democrática, fundada na igualdade e na livre informação, não é possível a subordinação hierárquica que o sistema de controle das escolas pelas famílias exigiria. Esse sistema, com efeito, imporia o controle confessional, delegando as famílias à sua Igreja o controle da educação” (v. Anísio Teixeira: a educação privada é um anacronismo).
Talvez Anísio Teixeira – há 58 anos, pois essas palavras foram escritas em 1960 – tenha destrinchado a “escola sem partido”.
Anísio, educado por jesuítas, não era avesso à religião. Mas o que ele frisa é que uma determinada ideologia, uma única ideologia, ainda que religiosa, não pode dominar a escola e “controlar a educação”.
Por quê?
Porque seria destruir a escola.
Que o elemento que Bolsonaro anunciou para a Educação tente se esconder atrás da figura de Anísio Teixeira, apenas mostra – além da falta de escrúpulos – como ele sabe que não consegue sustentar publicamente sua verdadeira posição.
Não é à toa que essa gente é a favor de uma ditadura.
C.L.