Este artigo e o que segue abaixo (Hoje falo de deuses, demônios, da nota do MP e da Escola Sem Partido) foram publicados pelo jurista Lenio Streck, recentemente, na revista Consultor Jurídico (Conjur).
Streck, autor dos mais citados em nossa prática jurídica, é conhecido como um de nossos maiores hermeneutas.
Pela importância do tema, e por sua clareza, achamos importante que nossos leitores que não são juristas também possam a ele ter acesso.
C.L.
LENIO LUIZ STRECK*
Esta coluna é para iniciados. Os “janjões” (na sequência saberão o que é “janjão”) não devem ler, para não terem confusão e mais inópia mental. Tratarei da tal Escola Sem Partido (ESP), reivindicação de parcela da sociedade (principalmente políticos e membros da “sociedade civil” — sem que se saiba bem o que é isso), em um país em que pastores têm partido (e como têm!), donos de canais de TV (alguns são também pastores) têm partido, membros do PJ e MP têm partido e até clubes de futebol (Atlético Paranaense) têm partido… só os professores não podem tomar (ou ter) partido, mesmo que esse “tomar partido” seja explicar fatos históricos e possuir (e partir de) matrizes teóricas (ciência existe, sim!), como o é no mundo civilizado. Mas aqui em Pindorama, os “liberais” [sic] (na economia e conservadores nos costumes) querem controlar e censurar os professores em sala de aula. Dá para contar as mazelas da escravidão sem falar das… mazelas da escravidão? Hum, hum.
O que fazer com os anos 30, pergunta a professora Alana Freitas El Fahl, os mais perigosos da história? Jorge Amado, comunista dando voz aos pobres e pretos, Graciliano Ramos, que até foi preso; Cecilia foi desencavar os inconfidentes com que intenção? Vinicius, um sedutor viciado em whisky, Rosa de Hiroshima é uma declaração de sua posição… e os nordestinos todos se achando só porque escreveram os principais romances do século… Lins do Rego hospedou Graciliano quando este saiu da prisão… devia ser um comuna. O que fazer com essa literatura? Pois é. Vamos ver o tal projeto.
O relator do projeto ESP, deputado Flavinho (parece nome de aluno, tipo Joãozinho, Arturzinho), fez um substitutivo (ler aqui). Ele se indignou com o nome ESP. Prefere chamar de movimento ou algo assim. Quem ler o texto do “substitutivo Flavinho” (se aprovado, será a Lei Flavinho) logo verá que é uma lei sem sanções. Inócua. Em alguns pontos, patética. O que acontece a quem descumprir? Vai responder a um PAD? Será falta grave ensinar que a Bíblia é só uma alegoria e que a terra não é plana? Ou será passível de demissão o professor que disser que Adão e Eva são apenas personagens de uma narrativa? Faltou só um dispositivo proibindo professores de desmitificar a lenda do Papai Noel… bom, de certo modo, quem ler a Lei Flavinho atentamente ali encontrará essa possibilidade.
Há um dispositivo bem bizarro ao final da lei. Falo do artigo 7º, que cria uma exceção: “No âmbito da educação básica, as escolas particulares de orientação confessional e ideologia específicas [sic] poderão veicular e promover os conteúdos de cunho religioso, moral e ideológico autorizados contratualmente pelos pais ou responsáveis pelos estudantes”. Bingo. O sic é meu. Repito: orientação confessional e ideologia específicas… ou seja, quem quiser, pode fazer contrato assinado com as escolas e, então, será possível ensinar que o coelho da Páscoa é uma ficção (estou sendo alegórico, é claro).
Gostei também de a lei estabelecer o tamanho do quadro no qual estarão as instruções aos professores (artigo 4º: 21 centímetros de altura por 29,7 centímetros de largura — padrão A4 —, e fonte com tamanho compatível com as dimensões adotadas). Que maravilha, não? Fora desse tamanho, o quadro é nulo. Ilegal. Ou algo assim. É demais, não? No RS tem a lei do churrasco. Se usar sal fino, o churrasco é ilegal.
Também é ótimo o parágrafo pelo qual as escolas deverão disponibilizar aos pais, ou responsáveis pelos estudantes, material informativo que possibilite o pleno conhecimento dos temas ministrados e dos enfoques adotados. Bingo! Claro: os pais têm de fiscalizar o conteúdo que será ministrado aos alunos. Para fazer censura. Os pais são “tão bem formados” que só colocam os filhos no colégio porque o homeschooling ainda não está liberado… (estou sendo sarcástico aqui)!
A coisa é essa. Interessante é como se dão as discussões desse tipo no Brasil. Os comentários aos meus artigos na ConJur seguem essa ótica. Mais ou menos como esse quadro do Porta dos Fundos, no “debate” sobre redução da idade penal. De um lado, um expert, com formação científica; de outro, um janjão senso comum, que discute o problema a partir de sua experiência e do que ocorre na sua rua! E uma “comentarista-modelo-rede-social” na plateia. E um néscio como âncora! Bem, advirto que um janjão não deve assistir, porque estará frente ao espelho. Já os não janjões vão se divertir.
Sigo. Em 1728, Jonathan Swift, no seu clássico Viagens de Gulliver, denunciava as impossibilidades de descrição de fatos de um ponto de vista arquimediano. Ele brinca com isso ao falar da descrição de um relógio.
Pedimos para que ele retirasse tudo que estivesse na extremidade dessa corrente, que nos pareceu ser um globo, metade prata, e a outra metade de um metal transparente; do lado transparente nós vimos certas figuras estranhas desenhadas de modo circular, e embora pudéssemos tocá-las, até que percebemos que os nossos dedos foram retidos por uma substância transparente. Ele pôs este mecanismo em nossos ouvidos, que fazia um ruído contínuo, como o de um moinho d’água: e pensamos que fosse de algum animal desconhecido, ou a divindade por ele adorada; mas nós tendemos mais para esta última opinião, porque ele nos garantiu, (se nós o entendemos direito, pois ele se expressava muito imperfeitamente) que ele raramente fazia alguma coisa sem consultá-lo. Dizia que era seu oráculo, e afirmava que esse mecanismo determinava o tempo para todas as ações de sua vida.
Não vou explicar o texto acima. Os não janjões entenderão.
Como falar sobre a escravidão? Pela ESP, mais ou menos assim: homens de tez clara que usavam artefatos do qual saíam cordões com bolinhas de metal e lançavam esse objeto na parte posterior das pessoas de tez escura… bingo. Bendito o sarcasmo de Swift, um notório membro da Escola Com Partido (ECP) da época.
Não há um grau zero. Não há uma Bodenlösigkeit (um lugar sem fundamento). A tal ESP funciona(ria) como? Do modo como no sarcasmo de Swift, o golpe de 64 seria/será descrito como sendo o produto final de um conjunto de homens vestindo roupas de cor verde, dirigindo veículos de grande porte…? Complete você. Chamemos o personagem das Viagens de Gulliver. Parece que os adeptos da ESP não sabem o que é um fato institucional. E que não existem descrições que não sejam, em si, prescrições. Até a frase “fulano é gordo” pode ser uma perfeita descrição — e absolutamente verdadeira —, só que nela está contido um telos, como diria Alasdair MacIntyre, cuja análise sobre a modernidade (livro Depois da Virtude) cai como uma luva para desmi(s)tificar uma coisa como essa, a ESP.
Em termos filosóficos, a ESP é uma anedota. A Folha de S.Paulo, em editorial, chega a dizer que o projeto é Escola Sem Sentido. No editorial, a Folha diz: “Proibir que professores empreguem a palavra ‘gênero’, por exemplo, ultrapassa os limites do ridículo”. Coisas do esquerdismo da Folha, alguns dirão (estou sendo sarcástico de novo). Ora, se exageros existirem no ensino, seja em qualquer sentido (gênero, política etc), estas devem ser enfrentadas caso a caso. E não a partir de index e censura prévia.
Ou alguém quer dizer que o professor não deve dizer que a terra é redonda e que a tese de que a terra é plana é uma fraude? Ou o professor não deve ensinar que a Bíblia é metafórica-alegórica e que a terra não tem apenas alguns milhares de anos e que o criacionismo não tem sentido científico, naquilo que se entende como ciência? Ou alguém vai dizer que Deus mandou parar o sol para que Josué guerreasse mais um pouquinho? Ou dizer que Newton nada sabia? (ups, nesse caso, a ESP tomou partido).
Pensar que é possível uma ESP, que, na verdade, quer dizer Escola Sem Valoração-Ideologia (o “partido” é por conta de quem defende a tese, uma vez que nada tem de partidário contar fatos históricos — como já falei, se há exageros, estes devem ser resolvidos no plano da discussão, e não da proibição), é pensar que é possível fazer juízos neutros ou avalorativos, distinguindo fato e valor.
Quem diz que é possível separar fato e valor já está fazendo um juízo de valor. O valor está no fato de que é bom separar fato e valor! Simples assim. Ou tem de desenhar? Alguém grita: “Não se discute questão moral”. Pois é. Aquele que disse isso assumiu uma posição sobre uma questão moral, assumiu também uma posição moral substantiva de primeira ordem. Só se fala da moral de dentro da moral. Quem quer sair disso tem de, primeiro, sair do paradoxo.
O que deve ser combatido são visões relativistas. Mas aqui o assunto já seria outro. Alguém dirá: ah, mas não é disso que se trata. “Achamos que não há avaloração; achamos que só não pode valorar para a esquerda…”. Pois é. O que é matéria “valoratilizada”? Exemplos, por favor. “Paulo Freire”, gritará alguém. Pois é. Ensinar que Ivo viu a uva não tem sentido se o aluno não sabe o que é uva; ensinar que Joãozinho deve escovar seus dentes só tem sentido se este e seu pai e mãe têm dentes… isso é coisa de esquerdista-comunista? De novo, tem ironia e sarcasmo no que estou dizendo. Bom, se pensarem que usar Paulo Freire é coisa de comunista ou quejandos, o assunto encerra aqui mesmo. Porque é difícil o diálogo com quem se comporta como o leitor de jornal de Wittgenstein: duvidava do que lia e, por isso, comprava outro exemplar para confirmar. Primeiro, é melhor que o interlocutor indignado leia a Teoria do Medalhão, de Machado.
Há um programa Direito & Literatura sobre isso (ver aqui). O conto? Já está em domínio público (ups, vai ser privatizado, então!). Aos janjões aos quais não apraz a leitura (tudo que tem mais de dez linhas machuca), sintetizo aqui, em uma frase do conto, o que dizia o pai a seu filho Janjão, ensinando-o a ser… um medalhão:
Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas ideias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da plateia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as ideias; pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até a morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida.
Pois é. Guardadas as proporções, a coluna desta semana vale como o Príncipe de Machiavelli, para parafrasear e homenagear o nosso Flaubert brasileiro.
Ah, numa palavra final: e não venham querer imitar o Porta dos Fundos. De lambuja aqui vai mais um quadro, desta vez sobre aquecimento global. E também não venham com acusações janjaninas do tipo “você nunca entrou em uma sala de aula para lecionar ensino fundamental”. Ledo Ivo engano. Sou do ramo. Passei em concurso público em primeiro lugar quando tinha 16 anos e lecionei para cinco classes na mesma sala! E desde lá leciono em universidade. Nunca precisei de Lei Flavinho (sic) ou quejandos. Quejandos, até sim (de novo, ironia e/ou sarcasmo).
* Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br. Esta coluna foi publicada originalmente na revista Consultor Jurídico (Conjur), 08/11/2018.
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