Coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida defende que o presidente Lula vete o projeto aprovado pelo Congresso. “Bancos vão se apoderar de receitas públicas antes mesmo que estas alcancem os cofres públicos! Um escândalo”, condenou Maria Lucia Fattorelli
A coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida (ACD), Maria Lucia Fattorelli, denuncia o chamado “Esquema de Securitização do Crédito”, autorizado pelo Projeto de Lei Complementar (PLP) 459/2017, de autoria do Senador José Serra (PSDB/SP), que foi aprovado na Câmara dos Deputados no final de maio deste ano. Por já ter sido avaliado no Senado, cabe agora ao presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva (PT), vetar ou sancionar o projeto de lei.
A Auditoria Cidadã da Dívida, após atuar para a derrubada no PLP 459/2017 no Congresso Nacional, agora faz campanha para que o presidente Lula vete a proposta.
“O projeto”, critica Fattorelli, “permite que todos os entes federados (União, Estados, DF ou municípios) contraiam dívida pública de forma disfarçada, que sequer é registrada como ‘dívida pública’, mas na prática esse empréstimo será pago mediante o desvio de parte da arrecadação tributária, por fora dos controles orçamentários”.
Fattorelli afirma também que “esse empréstimo disfarçado, que funciona de forma semelhante a um consignado de recursos públicos, é totalmente velado, sem transparência, e não se sabe sequer o quanto os entes federados deixarão de receber e o quanto receberão em troca”.
Auditora-fiscal aposentada da Receita Federal, Fattorelli explica que o PLP 459/2017 prevê que os entes federados podem vender o dinheiro já recebido pela rede arrecadadora. Serão entregues “os direitos originados de créditos, ou seja, não serão vendidos os créditos em si, mas o fluxo de recebimento originado deles”, disse.
“O projeto prevê que esse dinheiro será proveniente de créditos já reconhecidos e parcelados, ou seja, que já estão sendo recebidos, e não os chamados “créditos podres”, como diz a falsa propaganda que tem sido veiculada”, crítica a administradora e contadora. “Na verdade, o esquema compromete de forma drástica os recursos orçamentários que estes já arrecadariam correntemente, mas irão perder para o esquema da securitização”, completou.
Para os bancos, fundos financeiros e demais especuladores do erário, ressalta Fattorelli, “será um negócio estupendo, pois eles irão se apoderar de receitas públicas antes mesmo que estas alcancem os cofres públicos! Um escândalo”, condenou.
A seguir, a entrevista completa.
HP – O que é o chamado “Esquema de Securitização do Crédito”, proposto no Projeto de Lei Complementar (PLP) 459/2017, já aprovado pelo legislativo federal, e que agora só depende da sanção presidencial para entrar em vigor?
MARIA LUCIA FATTORELLI – O projeto permite que todos os entes federados (União, Estados, DF ou Municípios) contraiam dívida pública de forma disfarçada, que sequer é registrada como “dívida pública”, mas na prática esse empréstimo será pago mediante o desvio de parte da arrecadação tributária, por fora dos controles orçamentários. Dessa forma, os entes federados irão desviar parte da arrecadação de tributos que pagamos e que sequer alcançará os cofres públicos, tendo em vista que durante o percurso pela rede bancária esses recursos serão desviados para os investidores privilegiados que têm acesso e compram os papéis financeiros emitidos nesse esquema (debêntures).
Esses recursos cedidos ficam vinculados ao esquema de securitização, ferindo frontalmente o artigo 167, IV, da Constituição Federal e toda a legislação de finanças do país. O empréstimo disfarçado, que funciona de forma semelhante a um consignado de recursos públicos [saiba mais] é totalmente velado, sem transparência, e não se sabe sequer o quanto os entes federados deixarão de receber e o quanto receberão em troca.
Em Belo Horizonte, por exemplo, onde este esquema foi implementado, e houve a instalação de uma CPI da Câmara Municipal para investigá-lo, o município abriu mão de receber R$ 880 milhões nos anos subsequentes (com mais 1% de juros ao mês e atualização pelo IPCA) em troca do recebimento de um empréstimo de R$ 200 milhões, com taxa de juros altíssima. Tais fluxos ocorrem fora do orçamento público, sem a possibilidade de fiscalização efetiva, configurando uma fraude contábil, financeira, econômica e até moral, pois coloca entes federados nessa vergonhosa situação.
HP – Direitos originados, venda do fluxo de arrecadação, poderia esclarecer um pouco mais?
FATTORELLI – O Projeto prevê que os entes federados vendam “direitos originados de créditos”, ou seja, não serão vendidos os créditos em si, mas o fluxo de recebimento originado deles (o dinheiro já recebido pela rede arrecadadora), uma vez que o próprio texto legal deixa explícito que os créditos tributários e não tributários continuarão a ser cobrados pelos respectivos órgãos governamentais encarregados dessa cobrança.
O projeto prevê que esse dinheiro será proveniente de créditos já reconhecidos e parcelados, ou seja, que já estão sendo recebidos, e não os chamados “créditos podres”, como diz a falsa propaganda que tem sido veiculada. Assim, a ideia de que os entes federados poderiam conseguir recursos a partir de créditos de difícil recebimento não passa de propaganda enganosa, e, na verdade, o esquema compromete de forma drástica os recursos orçamentários que estes já arrecadariam correntemente, mas irão perder para o esquema da securitização.
HP – Onde entram as empresas estatais nestas transações?
FATTORELLI – Para operar o esquema, são criadas empresas estatais não dependentes (ou fundos de investimento), que emitem novas debêntures (ou papéis financeiros semelhantes), os quais são vendidos a operadores privilegiados do mercado financeiro que têm acesso a esses papéis. Essas empresas ou fundos funcionam como uma fachada, pois a operação é nitidamente uma operação de crédito. O PLP 459/2017 tem seu texto cifrado, mas menciona que o fluxo de recebimento dos créditos recebidos será destinado para “pessoas jurídicas de direito privado” ou fundos de investimento, referindo-se despistadamente a essas estatais regidas pelo direito privado.
Essas empresas estatais já nascem ferindo a Constituição Federal, pois desobedecem flagrantemente ao disposto no artigo 173, uma vez que não há nada de “relevante interesse coletivo”. Fere também a legislação comercial que trata de debêntures, cuja justificativa é a captação de recursos para financiar atividades empresariais. No caso, a empresa estatal (ou fundo) fica apenas com parte dos recursos captados por ocasião da venda de debêntures a investidores privilegiados e repassa a maior parte para o ente federado que, em troca, passa a desviar parcela relevante de seu fluxo de arrecadação para o pagamento desse empréstimo disfarçado ao investidor privilegiado.
HP – A Constituição permite a venda do fluxo de arrecadação?
FATTORELLI – Não, ao contrário, veda expressamente como indicado no inciso IV do artigo 167 (que impede a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa). O esquema viola adicionalmente o artigo 165 (§5º) da CF/88, segundo o qual todos os fluxos de recursos públicos devem passar pelo orçamento do respectivo ente federado.
HP – A securitização de crédito não seria uma boa alternativa para antecipar a arrecadação dos municípios, sem aumentar impostos?
FATTORELLI – Não, tendo em vista que inicialmente pode até entrar algum dinheiro nos cofres do município (quando a estatal criada para operar o esquema vende as debêntures a algum investidor privilegiado e repassa a maior parte dos recursos obtidos ao município), porém, a um custo exorbitante e por meio de operação flagrantemente inconstitucional e fraudulenta, conforme já mencionado anteriormente.
A propaganda enganosa acerca do projeto envolve essa mentira de que entes federados poderiam obter recursos a partir da venda de créditos “podres”, o que não existe na prática. O que existe é empréstimo onerosíssimo e disfarçado, obtido através da venda de debêntures por empresa estatal (ou fundo) criada para operar o esquema e pagamento desse empréstimo por meio do desvio de receitas públicas tributárias e não tributárias. Portanto, haverá uma perda imensa de recursos, além de desmoralização, e não um ganho.
HP – Mas esses recursos podem ajudar a reverter o déficit previdenciário dos municípios, como argumenta a Confederação Nacional de Municípios (CNM)?
FATTORELLI – Esse tipo de esquema de securitização de créditos públicos é altamente oneroso. Só para implementá-lo, o custo é gigante, como comprovado no Estado de Goiás, onde a implantação do esquema foi abortada [saiba mais], pois só de taxas e custos iniciais o estado teria que pagar mais de R$ 325 milhões.
Adicionalmente, as taxas de juros oferecidas pelas debêntures emitidas pela empresa são elevadíssimas! Em Belo Horizonte, ficaram próximas de 23% ao ano! Para completar o dano, as receitas públicas desviadas durante o percurso dos recursos pela rede bancária arrecadadora sairão do controle do respectivo ente federado, o que representa um risco de mais perdas do que o esquema já provoca, mostrando-se uma operação completamente insustentável e comprometedora dos orçamentos futuros.
Diante de tudo isso, o resultado em todos os casos já verificados tem sido a perda de recursos, e não o ganho. Apesar de o projeto colocar que pelo menos 50% das “receitas” do esquema deve ser destinado para a Previdência, por outro lado, um volume muito maior de recursos serão perdidos, inclusive os que deveriam ser destinados a financiar a previdência dos municípios.
HP – Então, quem são os verdadeiros beneficiários do projeto de securitização?
FATTORELLI – Somente os grandes investidores que têm acesso às debêntures emitidas pelas empresas criadas para operar o esquema, ou seja, grandes bancos e investidores que operam elevadas quantias no mercado financeiro. Para estes, será um negócio estupendo, pois eles irão se apoderar de receitas públicas antes mesmo que estas alcancem os cofres públicos! Um escândalo, além da desmoralização completa dos que optarem por esse esquema de empréstimo disfarçado, intermediado por empresas estatais ou fundos, e sem que a sociedade possa acompanhar, em tempo real, nos sistemas dos orçamentos públicos, qual foi o valor do empréstimo, quanto foi efetivamente recebido, e o quanto foi pago de juros e amortizações, pois esses pagamentos se darão por fora dos controles orçamentários.
Em Belo Horizonte, foi necessária a instalação de uma CPI para se apurar o custo imenso da operação e as perdas, que são objeto de ação popular [saiba mais]. Se os orçamentos públicos já não têm sido suficientes para o atendimento das necessidades sociais urgentes, como ficaremos se parcela crescente da arrecadação passar a ser desviada por fora e sequer será contabilizada no orçamento público?
ANTONIO ROSA
Excelente denúncia.
Da vontade de esganar esses abutres com as próprias tripas