Na eleição intermediária de maior participação em um século, o partido de Trump sofreu a maior derrota desde o escândalo de Nixon em 1974. Democratas têm agora maioria de 37 cadeiras e ganharam 7 novos governos estaduais
Com a maior participação em um pleito intermediário em cem anos – 49%, o Partido Democrata obteve a maior vitória na Câmara dos Deputados desde o Watergate, conquistando 37 cadeiras a mais, em uma eleição que o próprio Trump caracterizara como um “referendo sobre seu governo” e na qual se jogou freneticamente nos comícios com um discurso xenófobo e racista contra os imigrantes. A última vez que o comparecimento havia sido tão grande foi em 1914, já iniciada a I Grande Guerra, quando as mulheres ainda não votavam.
A derrota de Trump nas urnas incluiu ainda a perda de sete governos estaduais, o que só não se estendeu à Flórida e Geórgia – e ainda assim por muito pouco – em função da supressão de eleitores negros e outras fraudes. Estavam em disputa 33 dos 50 executivos estaduais.
Os republicanos só mantiveram o Senado, restando uma vaga a ser decidida em segundo turno, no Mississipi, no dia 27. Para apavorar ainda mais seus eleitores e empurrá-los às urnas, Trump apelou até mesmo para o envio de milhares de soldados para a fronteira com o México, onde ficaram encenando pôr arame farpado, quando a caravana de refugiados ainda estava a quase mil quilômetros de distância e a pé.
Trump ampliou a aposta na xenofobia, anunciando a intenção de rasgar, por decreto, a 14ª Emenda constitucional, que garante a cidadania a filhos de imigrantes nascidos nos EUA, mesmo os ilegais, desde o final do século XIX.
Em suma, foi um rotundo ‘não’ do povo americano à conclamação de Trump de que “eu não estou na cédula, mas eu também estou na cédula, porque isto é também um referendo sobre mim”.
Sucintamente, na Câmara, os republicanos afundaram de uma maioria de 241 a 194, para 200 a 232 (com três resultados em aberto). Nos governos estaduais, de 33 que detinham, encolheram para 27, enquanto os democratas subiram de 16 para 23. Na contramão, no Senado a diferença em favor dos republicanos aumentou de 2 para 5.
Na recontagem, os republicanos mantiveram o governo e cadeira do Senado na Flórida, e o governo da Geórgia. Mas não houve como abafar as enormes deformações do sistema eleitoral dos EUA, que permite que um candidato seja, ao mesmo tempo, o juiz da eleição.
Foi assim que o republicano Brian Kemp, que cassou o direito de voto de dezenas de milhares de negros e supervisionou a eleição em que ele próprio era candidato a governador, suplantou a candidata negra Stancey Abrams e impediu um segundo turno na Geórgia. O mesmo ocorreu na Flórida, contra o candidato democrata negro, Andrew Gillum. Eleições definidas por diferenças tão pequenas quanto 0,12%.
Como denunciou Abrams, imprensada por jornalistas se aceitava Kemp como ‘legítimo governador’, “não vou negar o imprimatur legal que diz que é dele a posição, e rezo pelo seu sucesso. Mas eu dizer que esta eleição não foi contaminada e uma privação de direitos de milhares de eleitores, isso eu não vou dizer”.
Dos quatro estados do Meio Oeste que foram essenciais na vitória de Trump em 2016, os democratas venceram em quatro na disputa ao Senado, e em três na dos governadores.
Mesmo em estados em que há muito tempo os democratas não tinham um resultado favorável, o pêndulo está se deslocando. Como no Texas, onde Beto O’Rourke perdeu para o já senador Ted Cruz, ex-candidato a candidato a presidente, por apenas 3%. No Arizona, a democrata Krysten Sinema venceu no senado, o que não acontecia há 30 anos.
Também cresceu enormemente a participação das mulheres, com mais de 100 congressistas eleitas. Entre elas, duas muçulmanas – apesar de toda perseguição de Trump contra os islâmicos -, Ilhan Omar e Rashid Tlaib, e a mais jovem deputada, Alexandria Ocasio-Cortez. Deb Haaland e Sharice Davids se tornaram as primeiras mulheres de origem indígena a se elegerem deputadas federais.
Pesquisas de reta final mostraram que os republicanos sofreram uma grande perda entre os eleitores idosos: a diferença a favor dos candidatos democratas na faixa etária acima de 65 anos foi de 13 pontos percentuais, o que foi atribuído pelo Common Dreams principalmente aos cortes no Medicare e Medicaid sob Trump.
Se não foi propriamente uma surpresa a eleição de uma bancada de milionários e de “democratas da CIA”, em compensação, como assinalou Bernie Sanders, a “nova turma de calouros do Congresso é a mais progressista da história” – e se elegeu com bandeiras como o Medicare para Todos (Saúde Pública), universidade gratuita, salário mínimo nacional de US$ 15 a hora e solução para a dívida estudantil. Vários se declararam “socialistas”, o que era quase palavrão nos EUA depois do macartismo.
GUERRAS
Como de costume, a política externa agressiva e a guerra de ocupação do Afeganistão, que já dura 17 anos, a mais longa da história dos EUA, foram postas de lado do debate nas eleições, bem como a ameaça de volta aos piores momentos do risco de guerra nuclear, com o abandono unilateral dos tratados de limitação de armas.
Ao que parece, a ordem na Casa Branca é fazer de conta que a casa não caiu: “conseguimos desafiar a história e ter ganhos importantes no Senado”, asseverou a líder do Comitê Nacional do Partido Republicano, o que atribuiu ao “apoio dos movimentos a favor de Trump e à estratégia do nosso partido”. Mas a ira de Trump com o resultado das urnas mereceu registro em muitos jornais, e ainda sobrou para Jeff Sessions, sumariamente demitido, além dos vexames nas comemorações, em Paris, dos 100 anos do fim da I Grande Guerra.
Foi também a mais cara eleição intermediária da história, com um recorde de US$ 5,2 bilhões. Os democratas começam a se dar conta da amplitude da manifestação popular. “Passamos de ter ficado aliviados por ganhar a Câmara de Deputados para ficar muito satisfeitos por uma onda genuína, progressiva e inspiradora, de vitórias democratas”, afirmou o ativista Ben Wikler, do movimento MoveOn. Do seu sarcófago, Hillary Clinton imediatamente se prontificou para “2020” – o que levou um colunista do Post a lembrar que é mais fácil ela se eleger “presidente da Líbia do que dos EUA”. Nem Wall Street faz fé.
ANTONIO PIMENTA