Em seu pronunciamento na ONU, o ministro do Exterior da Federação Russa enfatiza que Washington “se arroga árbitro da Humanidade”, gera “focos de tensão e conflitos”, e desrespeita o direito internacional
“Os neonazis ucranianos que tomaram o poder em Kiev não representam a população da Crimeia e do Donbass”, ressalta o ministro russo
Em reunião do Conselho de Segurança da ONU na quarta-feira (20), o chanceler russo Sergei Lavrov proferiu um demolidor discurso contra a violação, por Washington, dos princípios da Carta das Nações Unidas após o fim da Guerra Fria, ao se arrogar o lugar de árbitro dos destinos de toda a humanidade, imbuído da pretensão ao excepcionalismo, à “ordem sob regras”, às sanções e à ingerência sobre os demais povos.
Ele chamou a restaurar “o legado dos pais fundadores da ONU” e o primado do direito internacional. A reunião havia sido convocada pela presidência da vez, a Albânia, em paralelo à Assembleia Geral em curso, sob o tema “Manter a paz e a segurança internacionais: promover a implementação dos princípios e propósitos da Carta das Nações Unidas através do multilateralismo eficaz: manter a paz e segurança da Ucrânia”.
A reunião foi montada para criar um palco adicional para o presidente Zelensky, cuja viagem a Washington estava sendo um fiasco, bem diferente do tratamento de estrela do rock que lhe fora propiciado no ano passado. Os deputados dos EUA sequer tinham “espaço na agenda” para ouvi-lo.
“A atual ordem internacional foi construída sobre as ruínas e na sequência da colossal tragédia da Segunda Guerra Mundial. Baseou-se na Carta das Nações Unidas, uma fonte fundamental do direito internacional moderno”, sublinhou Lavrov. “Em grande parte, graças à ONU, foi possível evitar uma nova guerra mundial, prenhe de uma catástrofe nuclear”.
“Infelizmente, após o fim da Guerra Fria, o ‘Ocidente coletivo’, liderado pelos Estados Unidos, arrogou-se o lugar de árbitro dos destinos de toda a humanidade e, dominado por um complexo de exclusividade, começou a ignorar cada vez mais o legado dos pais fundadores da ONU”.
Lavrov denunciou que, hoje em dia, “o Ocidente refere-se às normas e aos princípios estatutários de forma seletiva, de tempos a tempos, exclusivamente em função das suas necessidades geopolíticas egoístas”, o que conduz inevitavelmente “ao enfraquecimento da estabilidade global, à exacerbação das atuais e ao incitamento de novos focos de tensão”. Os riscos de conflito global – ele reiterou – “também estão aumentando”.
“É precisamente para travá-los, para encaminhar os acontecimentos numa direção pacífica, que a Rússia insistiu e insiste em que todas as disposições da Carta das Nações Unidas sejam respeitadas e aplicadas, não de forma seletiva, mas na sua totalidade e interligação. Incluindo os princípios da igualdade soberana dos Estados, da não ingerência nos seus assuntos internos, do respeito pela integridade territorial e do direito dos povos à autodeterminação”, destacou.
Desde o colapso da URSS e a formação de Estados independentes no seu lugar, os Estados Unidos e os seus aliados “têm interferido de forma grosseira e aberta nos assuntos internos da Ucrânia”, disse Lavrov. Como a secretária de Estado Adjunta dos EUA, Victoria Nuland, “admitiu publicamente” e até com orgulho no final de 2013, “Washington gastou 5 bilhões de dólares para alimentar políticos obedientes ao Ocidente em Kiev”.
CADEIA CRONOLÓGICA DE ACONTECIMENTOS NA UCRÂNIA
Lavrov disse que Washington vem tentando de todas as formas possíveis silenciar, “cancelar toda a história até 2014”. Por conseguinte, o tema da reunião de hoje permite “recuperar a cadeia cronológica dos acontecimentos” e “atitude dos principais atores em relação à implementação dos princípios e objetivos da Carta das Nações Unidas”.
“Em 2004-2005, o Ocidente, com o objetivo de levar um candidato pró-americano ao poder, sancionou o primeiro golpe de Estado em Kiev, forçando o Tribunal Constitucional da Ucrânia a tomar uma decisão ilegal de realizar uma terceira volta de eleições não prevista na Constituição do país”, afirmou o chefe da diplomacia russa.
Lavrov chamou de “ainda mais descarada” a ingerência nos assuntos internos ucranianos durante a segunda Maidan, em 2013-2014, “quando toda uma série de voyageurs ocidentais encorajaram diretamente os participantes nas manifestações antigovernamentais a ações violentas”.
A mesma V. Nuland discutiu com o embaixador dos EUA em Kiev a composição do futuro governo, a ser formado pelos golpistas, ele relembrou. “Ao mesmo tempo, indicou à União Europeia o seu verdadeiro lugar na política mundial, do ponto de vista de Washington. Sua frase escabrosa de duas palavras. É significativo que a União Europeia a tenha ‘engolido’”.
“Em fevereiro de 2014, as personagens selecionadas pelos americanos tornaram-se participantes-chave na sangrenta tomada do poder, organizada, recordo, um dia depois do acordo alcançado entre o Presidente legitimamente eleito da Ucrânia, Viktor Yanukovych, e os líderes da oposição, sob as garantias da Alemanha, Polônia e França”. O princípio da não ingerência nos assuntos internos foi “repetidamente espezinhado”.
RACISMO E RUSSOFOBIA
Prosseguindo nessa cronologia dos acontecimentos de 2014, Lavrov sublinhou que “imediatamente após a tomada violenta do poder, os golpistas declararam que a sua prioridade absoluta era restringir os direitos dos cidadãos ucranianos de língua russa”.
Quando os habitantes da Crimeia e do sudeste do país se recusaram a aceitar os resultados da tomada inconstitucional do poder, foram declarados terroristas pelo novo regime, que lançou “uma operação punitiva contra eles”.
“Em resposta, a Crimeia e o Donbass realizaram referendos em plena conformidade com o princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, consagrado no nº 2 do artigo 1”, apontou o ministro russo.
Lavrov desmascarou a ação dos diplomatas e políticos ocidentais, que em relação a esta que é a norma mais importante do direito internacional, buscam reduzir todo o contexto e a essência do que está acontecendo à inadmissibilidade de violar a integridade territorial.
“A este respeito, gostaria de recordar que a Declaração das Nações Unidas de 1970 sobre os Princípios do Direito Internacional relativos às Relações Amistosas e à Cooperação entre os Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, adotada por unanimidade, estipula que o princípio do respeito pela integridade territorial é aplicável aos ‘Estados que observam nas suas ações o princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos (…) e, consequentemente, têm governos que representam (…) todas as pessoas que vivem no território’”.
“O fato de os neonazis ucranianos que tomaram o poder em Kiev não representarem a população da Crimeia e do Donbass não precisa ser provado. E o apoio incondicional das capitais ocidentais às ações do regime criminoso de Kiev não é mais do que uma violação do princípio da autodeterminação na sequência de uma interferência grosseira nos assuntos internos”, assinalou Lavrov.
Durante o reinado de Poroshenko e, depois, com Zelensky, o regime instaurado pelo golpe de Estado adotou “leis racistas que proibiam tudo o que era russo – educação, meios de comunicação social, cultura, passaram à destruição de livros e monumentos, proibição da Igreja Ortodoxa Ucraniana e confiscação dos seus bens”, denunciou Lavrov.
O que constituiu “uma violação desafiadora do nº 3 do artigo 1º da Carta das Nações Unidas sobre o respeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos – sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. Além de contradizer diretamente a Constituição da Ucrânia, “que consagra a obrigação do Estado de respeitar os direitos dos russos e de outras minorias nacionais”, destacou Lavrov.
FRONTEIRAS DE 1991?
“Quando ouvimos apelos à aplicação da “fórmula de paz” e ao regresso da Ucrânia às fronteiras de 1991, coloca-se a questão: será que aqueles que apelam a esta medida estão familiarizados com as declarações dos dirigentes ucranianos sobre o que vão fazer com os habitantes dos respectivos territórios?”, questionou o chefe da diplomacia russa.
Ele lembrou que ameaças de extermínio legal ou físico são repetidamente dirigidas publicamente contra a população do Donbass, em nível oficial. O Ocidente – ele acrescentou – não só não reprime os seus protegidos em Kiev, como também “encoraja entusiasticamente as suas políticas racistas”.
Fazendo um parêntese, Lavrov apontou que “de forma semelhante os membros da UE e da NATO têm vindo a encorajar, há décadas, as ações da Letônia e da Estônia para derrotar os direitos de centenas de milhares de residentes de língua russa que foram apelidados de ‘não cidadãos’”.
Lavrov destacou que os acordos de Minsk, em fevereiro de 2015, foram aprovados por uma resolução especial do Conselho de Segurança – em total conformidade com o artigo 36º da Carta, que apoia “qualquer procedimento de resolução de litígios que tenha sido aceito pelas partes”. Neste caso, Kiev, a República Popular de Donetsk e a República Popular de Lugansk.
No entanto – ele lembrou -, “no ano passado, todos os signatários dos Acordos de Minsk, exceto Vladimir Putin (Angela Merkel, François Hollande e Petr Poroshenko), admitiram publicamente e até de bom grado que, quando assinaram este documento, não tinham qualquer intenção de o cumprir. Apenas procuravam ganhar tempo para reforçar o potencial militar da Ucrânia e enchê-la de armas contra a Rússia”.
Durante todos estes anos, a UE e a OTAN apoiaram diretamente a sabotagem dos acordos de Minsk, pressionando o regime de Kiev a resolver o “problema do Donbass” pela força, disse Lavrov. Em violação do artigo 25º da Carta, segundo o qual todos os membros da ONU são obrigados a “obedecer às decisões do Conselho de Segurança e a executá-las”.
No pacote dos acordos de Minsk, os líderes da Rússia, Alemanha, França e Ucrânia assinaram uma declaração em que Berlim e Paris se comprometeram a fazer bastante, incluindo ajudar a restaurar o sistema bancário no Donbass. “Mas não mexeram um dedo”. E contrariamente a todas estas obrigações, Poroshenko anunciou um bloqueio comercial, econômico e de transportes ao Donbass.
Na mesma declaração, Berlim e Paris comprometeram-se a promover o reforço da cooperação trilateral no formato UE-Rússia-Ucrânia para uma solução prática para as preocupações comerciais da Rússia, bem como a promover “a criação de um espaço humanitário e econômico comum do Atlântico ao Oceano Pacífico”, o que se revelou “uma farsa”.
LIÇÕES DE GROMYKO
“O lendário ministro das Relações Externas da URSS, A.A. Gromyko, observou, com razão, mais do que uma vez: ‘dez anos de negociações são melhores do que um dia de guerra’. Seguindo este preceito, negociamos durante muitos anos, procuramos acordos no domínio da segurança europeia, aprovamos o Ato Fundador OTAN-Rússia, adotamos as declarações da OSCE sobre a indivisibilidade da segurança ao mais alto nível em 1999 e 2010 e, desde 2015, insistimos na aplicação incondicional dos acordos de Minsk resultantes das negociações”.
Tudo isto em plena conformidade com a Carta das Nações Unidas, que exige “proporcionar condições para a justiça e o respeito pelas obrigações decorrentes de tratados e outras fontes do direito internacional”, ressaltou Lavrov, acrescentando que “nossos colegas ocidentais espezinharam este princípio quando assinaram todos estes documentos, sabendo de antemão que não os iriam cumprir”.
“Falando de negociações. Continuamos a não as abandonar”, enfatizou Lavrov, lembrando que Putin tem falado sobre isso muitas vezes, “inclusive muito recentemente”. Em contrapartida, o presidente da Ucrânia, Vladimir Zelensky, assinou um decreto que proíbe as negociações com o governo de Vladimir Putin. “Se os Estados Unidos estão tão interessados nelas, penso que não será difícil ‘dar a ordem’ para que a ordem executiva de Vladimir Zelensky seja cancelada”, acrescentou.
Atualmente, na retórica dos nossos adversários, só ouvimos slogans: “invasão, agressão, anexação”, disse Lavrov. “Nem uma palavra sobre as causas profundas do problema, sobre como durante muitos anos alimentaram o regime abertamente nazi, reescrevendo abertamente os resultados da Segunda Guerra Mundial e a história do seu próprio povo”.
O Ocidente – destacou – evita uma conversa substantiva baseada em fatos e no respeito por todos os requisitos da Carta das Nações Unidas. “Há uma forte impressão de que os representantes ocidentais têm medo de discussões profissionais que exponham a sua demagogia”.
OCIDENTE IMPEDIU APLICAÇÃO DOS ACORDOS DE MINSK
Enquanto proferem encantamentos sobre a integridade territorial da Ucrânia – salientou Lavrov -, “as antigas metrópoles coloniais calam-se perante as decisões da ONU sobre a necessidade de Paris devolver o Mayotte ‘francês’ à União das Comores, e de Londres abandonar o arquipélago de Chagos e iniciar negociações com Buenos Aires sobre as ilhas Malvinas”.
“Estes ‘campeões’ da integridade territorial da Ucrânia fingem agora não se lembrarem do significado dos acordos de Minsk, que consistiam na reunificação do Donbass com a Ucrânia, com garantias de respeito pelos direitos humanos fundamentais, principalmente o direito à sua língua materna”, disse Lavrov.
“O Ocidente, que impediu a sua aplicação, é diretamente responsável pelo colapso da Ucrânia e pelo incitamento à guerra civil no país”, completou.
SEGURANÇA COLETIVA E INDIVISÍVEL
Lavrov se referiu então ao referir o artigo 2º do capítulo VIII da Carta da ONU, “cujo respeito poderia evitar uma crise de segurança na Europa e contribuir para harmonizar as medidas de confiança baseadas num equilíbrio de interesses”. Este artigo consagra a necessidade de desenvolver a prática da resolução pacífica de litígios com a ajuda de organizações regionais.
“De acordo com este princípio, a Rússia, juntamente com os seus aliados, tem defendido consistentemente o estabelecimento de contatos entre a CSTO e a OTAN, a fim de facilitar a implementação prática das decisões acima mencionadas das cúpulas da OSCE de 1999 e 2010 sobre a indivisibilidade da segurança, que estipulam, em particular, que ‘a nenhum Estado, grupo de Estados ou organização pode ser atribuída a responsabilidade primária pela manutenção da paz e da estabilidade na área da OSCE ou considerar qualquer parte desta região como sua esfera de influência’”.
“Todos sabem que era exatamente isto que a OTAN estava fazendo – tentando criar a sua vantagem total na Europa e agora na região da Ásia-Pacífico”, disse Lavrov. Foram ignorados numerosos apelos dos mais altos órgãos da CSTO à Aliança do Atlântico Norte. “A razão para uma posição tão arrogante dos Estados Unidos e dos seus aliados, como toda a gente pode ver hoje em dia, é a falta de vontade de conduzir um diálogo igualitário com quem quer que seja”.
“Se a Otan não tivesse rejeitado as propostas de cooperação da CSTO, talvez isso tivesse evitado muitos dos processos negativos que conduziram à atual crise europeia, devido ao fato de se ter recusado a ouvir a Rússia ou a ter enganado durante décadas”, apontou Lavrov.
SÍNDROME NEOCOLONIAL
“Hoje, quando estamos discutindo o ‘multilateralismo efetivo’ por sugestão da Presidência, não devemos esquecer os numerosos fatos da rejeição genética do Ocidente a qualquer forma de cooperação igualitária. Que pérola a de Josep Borrell de que a Europa é ‘um jardim florido rodeado de selva’”.
Trata-se de uma síndrome puramente neocolonial que despreza a igualdade soberana dos Estados e as tarefas de “reforço dos princípios da Carta das Nações Unidas através de um multilateralismo efetivo” que estão hoje em dia em evidência no nosso debate, acrescentou Lavrov.
O chefe da diplomacia russa denunciou ainda que, numa tentativa de impedir a democratização das relações interestatais, “os Estados Unidos e os seus aliados privatizam cada vez mais, de forma aberta e sem cerimônias, os secretariados das organizações internacionais, contornando os procedimentos estabelecidos para as decisões sobre a criação de mecanismos subordinados com mandatos não consensuais, mas com a pretensão de se arrogarem o direito de culpar aqueles que, por qualquer razão, não agradam a Washington”.
“A este respeito, gostaria de vos recordar a necessidade de uma aplicação rigorosa da Carta das Nações Unidas, não só pelos Estados membros, mas também pelo Secretariado da nossa organização. Nos termos do artigo 100º da Carta, o Secretariado deve atuar com imparcialidade e não deve receber instruções de nenhum governo”.
“Já falamos do artigo 2º da Carta. Gostaria de chamar a atenção para o seu ponto-chave 1: ‘A Organização baseia-se no princípio da igualdade soberana dos Estados de todos os seus membros’. Desenvolvendo este princípio, a Assembleia Geral da ONU, na Declaração de 24 de outubro de 1970 que mencionei, reafirmou ‘o direito inalienável de cada Estado de escolher o seu próprio sistema político, econômico, social e cultural sem interferência de qualquer parte’.
A este respeito – disse Lavrov -, temos sérias dúvidas quanto às declarações do Secretário-Geral Antonio Guterres, de 29 de março, segundo as quais “o regime autocrático não garante a estabilidade, é um catalisador do caos e do conflito”, mas “as sociedades democráticas fortes são capazes de se autocorrigir e de se autoaperfeiçoar. Podem estimular mudanças, mesmo radicais, sem derramamento de sangue ou violência”.
‘DEMOCRACIAS’ VS ‘AUTOCRACIAS’
“Involuntariamente, lembramo-nos das ‘mudanças’ provocadas pelas aventuras agressivas das ‘democracias fortes’ na Iugoslávia, no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, na Síria e em muitos outros países”, denunciou Lavrov.
“Mais adiante, o estimado Antonio Guterres afirmou que: ‘Elas (as democracias) são centros de ampla cooperação enraizados nos princípios da igualdade, da participação e da solidariedade'”.
É digno de nota – acrescentou o ministro russo – que todos estes discursos foram proferidos na “cúpula para a democracia” convocada pelo Presidente Joe Biden fora da ONU, cujos participantes foram selecionados pelo governo dos EUA com base na lealdade – e não tanto a Washington como ao Partido Democrata no poder nos Estados Unidos.
“As tentativas de utilizar esses fóruns de encontro para discutir questões de natureza global contradizem diretamente o parágrafo nº 4 do artigo 1º da Carta das Nações Unidas, que afirma a necessidade de ‘assegurar o papel da Organização como centro de coordenação de ações para atingir objetivos comuns’”.
“Contrariamente a este princípio, há alguns anos, a França e a Alemanha proclamaram uma ‘aliança de multilateralistas’, para a qual também convidaram apenas os obedientes, o que, por si só, reafirma a inevitabilidade da mentalidade colonial e a atitude dos iniciadores em relação ao princípio do ‘multilateralismo efetivo’, hoje na ordem do dia.
Ao mesmo tempo, foi implantada uma “narrativa” sobre a União Europeia como o ideal desse mesmo “multilateralismo”, lembrou Lavrov. “Bruxelas apela agora a que se alargue o mais rapidamente possível o número de membros da UE, incluindo, em particular, os países dos Balcãs. Mas o pathos principal não é o da Sérvia, nem o da Turquia, que há décadas conduz negociações de adesão sem esperança, mas o da Ucrânia”.
NAZIS NÃO PRECISAM ENTRAR NA FILA DA UE
“Afirmando-se como o ideólogo da integração europeia, Josep Borrell não hesitou recentemente em pronunciar-se no sentido de que o regime de Kiev deveria ser admitido na União Europeia tão logo quanto possível. A Sérvia, a Turquia e outros ficarão à espera. Mas os nazis são aceitos nas fileiras da UE sem entrar na fila”.
As primeiras palavras da Carta da ONU – “Nós, os povos” – refletem uma fonte fundamental de legitimidade: o consentimento dos governados, enfatizou Lavrov. “É útil correlacionar esta tese com o ‘histórico’ do regime de Kiev, que desencadeou uma guerra contra uma grande parte do seu próprio povo – contra os milhões de pessoas que não aceitaram serem controladas pelos neonazis e russófobos que tomaram ilegalmente o poder no país e enterraram os acordos de Minsk aprovados pelo Conselho de Segurança da ONU, minando assim a integridade territorial da Ucrânia”.
“Aqueles que, contrariamente à Carta das Nações Unidas, dividem a humanidade em ‘democracias’ e ‘autocracias’, fariam bem em responder à pergunta: a que categoria atribuem o regime ucraniano? Não estou à espera de uma resposta”.
CS E ASSEMBLEIA GERAL
Lavrov tratou da questão da relação entre o Conselho de Segurança e a Assembleia Geral. O “coletivo ocidental” tem promovido agressivamente e há muito tempo o tópico do “abuso do direito de veto” e conseguiu – através de uma pressão não muito correta sobre outros membros da ONU – uma decisão de considerar o tópico relevante na Assembleia Geral após cada aplicação deste direito, o qual o Ocidente está a provocar cada vez mais deliberadamente.
“Isto não é um problema para nós. As abordagens da Rússia a todas as questões da ordem do dia são abertas, não temos nada a esconder e não é difícil voltar a afirmar esta posição. Além disso, o recurso ao veto é um instrumento absolutamente legítimo, previsto na Carta, para evitar a adoção de decisões que poderiam provocar uma cisão na Organização”.
AS RESOLUÇÕES NÃO IMPLEMENTADAS
“Mas, já que o procedimento para discutir o uso do veto na Assembleia Geral foi aprovado, “por que não pensar nas resoluções do Conselho de Segurança que não foram vetadas, que foram adotadas, inclusive há muitos anos, mas que não foram implementadas, apesar das disposições do artigo 25º da Carta”, apontou Lavrov.
“Porque é que a Assembleia Geral não considera as razões para este estado de coisas – por exemplo, no que diz respeito às resoluções do Conselho de Segurança sobre a Palestina e sobre toda a gama de problemas do Médio Oriente e Norte da África, sobre o JCPOA [plano de acordo com o Irã, desmontado por Washington], bem como a Resolução 2202, que aprovou os acordos de Minsk sobre a Ucrânia?”.
SANÇÕES SÓ DA ONU
“O problema associado aos regimes de sanções também requer atenção”, destacou Lavrov. “Já se tornou a norma: o Conselho de Segurança, após longas negociações – em estrita conformidade com a Carta – deixar de aprovar sanções contra um país específico e, em seguida, os Estados Unidos e os seus aliados impõem restrições unilaterais ‘adicionais’ contra o mesmo Estado contra o qual tais sanções não foram aprovadas pelo Conselho de Segurança e não estão incluídas na sua resolução como parte do ‘pacote’ acordado”.
Outro exemplo flagrante é a decisão que Berlim, Paris e Londres acabam de tomar, de “prorrogar” as restrições ao Irã que expiram em outubro, de acordo com a Resolução 2231 do Conselho de Segurança da ONU. “Ou seja, os países europeus e o Reino Unido declaram que a decisão do Conselho de Segurança expirou, mas não se preocupam com isso, têm as suas próprias ‘regras’”.
Para Lavrov, tudo isto torna ainda mais urgente considerar a questão de que, após a adoção pelo Conselho de qualquer resolução de sanções, “nenhum dos membros da ONU teria o direito de a desvalorizar, impondo as suas próprias restrições ilegítimas contra o mesmo país”.
É igualmente importante – acrescentou – que todos os regimes de sanções do Conselho de Segurança sejam “limitados no tempo”, uma vez que o seu caráter indefinido priva o Conselho de flexibilidade em termos de influência sobre as políticas dos sancionados. Lavrov também propôs que quaisquer sanções a submeter ao CS deveriam ser acompanhadas “de avaliações das suas consequências para os cidadãos através das agências humanitárias da ONU”.
ORDEM MUNDIAL IGUALITÁRIA E POLICÊNTRICA
“Caros colegas, os fatos falam da mais profunda crise nas relações internacionais e da falta de desejo e vontade por parte do Ocidente para ultrapassar esta crise. Espero que ainda exista e seja encontrada uma saída para esta situação. Para começar, todos têm de assumir a responsabilidade pelo destino da nossa Organização e do mundo – num contexto histórico, e não do ponto de vista de alinhamentos eleitorais oportunistas e momentâneos nas próximas eleições nacionais de um Estado-Membro”.
“Permitam-me que vos recorde mais uma vez: há quase 80 anos, ao assinarem a Carta das Nações Unidas, os líderes mundiais concordaram em respeitar a igualdade soberana de todos os Estados – grandes e pequenos, ricos e pobres, monarquias e repúblicas”.
“Por outras palavras, já nessa altura, a humanidade reconhecia a necessidade de uma ordem mundial igualitária e policêntrica como garantia da estabilidade e da segurança do seu desenvolvimento”, disse Lavrov. “Por isso, hoje não se trata de nos submetermos a qualquer “ordem mundial baseada em regras”, mas sim de cumprirmos com todas as obrigações assumidas quando da assinatura e ratificação da Carta na sua totalidade e interligação”.