Há vinte anos, os EUA iniciaram o bombardeio da Iugoslávia, através da Otan, em violação à Carta da ONU, às leis internacionais e aos Princípios de Nuremberg, no dia 24 de março de 1999, operação que durou 78 dias, assassinando milhares de civis e ferindo dezenas de milhares, e que destruiu escolas, jardins de infância, hospitais, asilos de idosos, pontes, fábricas, refinarias de petróleo, a rede elétrica, um trem de passageiros, a sede da Cruz Vermelha em Pristina, a sede da TV iugoslava e até a embaixada da China em Belgrado.
O ataque culminou a campanha imperialista para esquartejar a Iugoslávia, que depois seria completada com golpe de estado e prisão do líder da resistência, o presidente Slobodan Milosevic, levado para o Tribunal fantoche da Otan na Holanda. Onde acabou morrendo em 2006 – por envenenamento ou enfarte -, após encabeçar a própria defesa e desmascarar a agressão contra os iugoslavos. No ano passado, Milosevic foi inocentado pelo próprio tribunal da principal acusação, a de genocídio.
A agressão à Iugoslávia serviu para testar o formato de invasão que depois seria estendido ao Iraque, Afeganistão e outros países, que resultou na morte de mais de um milhão de civis nos anos seguintes: à revelia do Conselho de Segurança, sem mandato da ONU, formando a ‘coalizão dos dispostos’, sempre em nome de ‘causas humanitárias’, até quando não havia como esconder o assalto ao petróleo, e fazendo uso de mentiras escabrosas.
Em abril-maio, até mesmo aqueles que supostamente estariam sendo ‘protegidos’ pela Otan foram bombardeados, matando centenas e destruindo inclusive a sede da Cruz Vermelha em Pristina – indisfarçável crime de guerra.
Centenas de milhares de iugoslavos ficaram sem meios de subsistência, sem abrigo e até sem acesso a água potável. Nos bombardeios, os EUA usaram bombas de urânio depletado, cuja conseqüência é que até hoje o percentual de crianças sérvias diagnosticadas com câncer é três vezes maior que a média europeia. O prejuízo para a economia iugoslava foi de cerca de US$ 30 bilhões; as 14 maiores empresas do país foram devastadas.
Conforme o chanceler russo, Serguei Lavrov, o que aconteceu em 1999 “continua ecoando no mundo até hoje”. “Foi o começo da substituição do direito internacional pela ‘ordem’ baseada em algumas regras arbitrárias, ou melhor, no direito dos fortes”.
“A operação [de bombardeio da Iugoslávia] foi realizada com violações grosseiras de todos os princípios do direito internacional humanitário, porque eles bombardearam objetos puramente civis”, assinalou o chefe da diplomacia russa.
Em 1999, a intervenção estrangeira já havia imposto a redução da Iugoslávia à Sérvia e Montenegro, depois da separação da Eslovênia e da Croácia, a que se seguiu a guerra civil na Bósnia. Enquanto Washington dizia que a separação das duas primeiras se devia a serem ‘etnias diferentes’, no caso da Bósnia, ao contrário, o que tinha que ser mantido era a ‘diversidade’ e por isso os sérvios-bósnios não podiam se unir à Iugoslávia. Em 1995, acordo que criou uma Bósnia federada encerrou a luta.
Então, a intervenção se dirigiu sobre Kosovo, província de maioria albanesa, mas berço histórico da nação iugoslava, com o autodenominado ‘Exército de Libertação de Kosovo’, de vínculos com a Al Qaeda, traficantes albaneses e expertise dos serviços secretos americanos – receita depois repetida na Líbia e na Síria.
Os violentos ataques a civis sérvios forçaram Belgrado a enviar forças de segurança para proteger os cidadãos e até um armistício foi tentado. No início de 1999, a polícia teve de voltar a coibir os extremistas.
O pretexto para o bombardeio foi criado com uma provocação executada pelos terroristas do ELK em janeiro, o chamado ‘incidente de Racak’, que prontamente recebeu a bênção do representante dos EUA na Organização pela Cooperação e Segurança Europeia, William Walker. Apesar de legistas russos, bielorrussos e finlandeses terem encontrado traços de pólvora nas mãos dos “civis” supostamente “executados”, o que mostrava que as mortes haviam sido em combate e não como Washington acusava.
“O fato de ser uma provocação é conhecido há muito tempo. Isto foi repetidamente dito, escrito e citado provas. Os civis supostamente mortos eram, na verdade, militares, militantes do Exército de Libertação do Kosovo, que estavam simplesmente vestidos com trajes civis. Há muito se sabe que isso era uma ‘encenação’”, reiterou Lavrov.
“Infelizmente, o então chefe da missão da OSCE, o americano Walker, organizou essa provocação e, tendo chegado ao local e encontrado cadáveres que, como eu disse, estavam bem vestidos em trajes civis, ali mesmo declarou que um ato de genocídio havia ocorrido”.
Na seqüência, Washington deu um ultimato a Belgrado, que consistia em entregar Kosovo, privatizar a economia iugoslava e autorizar a ocupação do país por tropas da Otan, o que Milosevic rechaçou. No dia 24, começaram os bombardeios, que serviram também para testar os novos mísseis teleguiados por satélite.
“Os americanos já haviam decidido [pelo ataque] há muito tempo e tentaram “legitimá-lo” pelo Conselho de Segurança da ONU. Sem conseguir, partiram para a agressão unilateral contra um Estado soberano em violação da Carta da ONU, dos princípios da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa e de toda a ordem mundial criada com base na Segunda Guerra Mundial”, destacou Lavrov.
Os EUA também escolheram como data de início do ataque à Iugoslávia o dia em que o então primeiro-ministro Yevgeny Primakov estava a caminho de Washington para conversações. Primakov mandou o avião dar meia volta e retornou à Rússia, encerrando os anos de enlevo do bebum Yeltsin com Washington.
Mais adiante, a destruição da embaixada da China em Belgrado – um crime inominável e cínico – estimulou o que se tornou a retomada, em novas bases, das relações estratégicas entre Moscou e Pequim.
Nos EUA, o sanguinário ataque à Iugoslávia também unia o útil – a pilhagem ao leste europeu – com o agradável, já que servia para desviar internamente a pressão dos republicanos pelo impeachment de Bill Clinton, sob o escândalo do caso com uma estagiária.
Até hoje Kosovo está ocupado pela Otan e os EUA criaram ali uma enorme base, Camp Bondsteel, a maior do mundo fora do território norte-americano. Sob o guarda-chuva dos ataques aéreos, o ELK, entre outros crimes, traficou órgãos humanos e expulsou da província 120 mil ciganos e dezenas de milhares de sérvios. A intervenção abriu a caixa de Pandora na Europa, ao mexer nas fronteiras estabelecidas ao final da II Guerra Mundial, e com os Bálcãs de volta à condição de barril de pólvora, à espera de uma faísca.
ANTONIO PIMENTA