Dados disponíveis até o momento reforçam a convicção de que o fatídico episódio de 6 de janeiro não foi um fato isolado ou uma mera presepada dos lacaios de Trump. O objetivo, perpetrar um golpe de Estado, e o alvo, a democracia norte-americana
Os episódios que envolveram a invasão e a depredação do Capitólio, o parlamento norte-americano, no último dia 6 de janeiro, continuam repercutindo fortemente pelo mundo afora, notadamente nos EUA depois de aberto o impeachment de Trump.
Afinal, o que aconteceu exatamente naquele dia em que cinco pessoas morreram, outras tantas ficaram feridas e muitas outras foram presas?
O que caracterizou o movimento?
Uma trapalhada dos fundamentalistas desesperados de Trump tentando evitar a proclamação de Joe Biden como novo presidente norte-americano no mano a mano?
Um fato isolado, produzido espontaneamente por esses mesmos negacionistas, para marcar posição e dizer à nação americana que vão dar prosseguimento ao seu desiderato, mesmo depois do chefe fora do poder?
Ou um golpe nitidamente fascista, urdido consciente e deliberadamente para tentar provocar um impasse político e, com isso, frustrar a assunção do presidente eleito democraticamente?
Até hoje, mais de uma semana depois do ocorrido, os principais personagens do ataque ao Congresso dos Estados Unidos, ou, pelo menos, os mais conhecidos até o momento, já estão atrás das grades.
Primeiro, foi Richard Barnett, o vândalo que invadiu o gabinete da presidente da Câmara, Nancy Pelosi. Depois, foi a vez de Jacob Anthony Chansley, cuja imagem com chapéu de pele e chifres e rosto pintado viralizou em todo mundo, E, agora, mais recentemente, Adam Johnson, denunciado pelo indevido apoderamento de um atril.
Pelas figuras caricatas expostas na grande mídia, portando até bandeiras confederadas manchadas pela chaga da escravidão, a inclinação seria por descartar a possibilidade do ato se configurar como um golpe fascista.
Mas vamos aos fatos, pelo menos os apurados até o momento, para uma conclusão, ainda que passível de novas interpretações, em razão de novos elementos que vierem a surgir nas investigações que estão sob a responsabilidade do FBI, órgão, hoje, anda, sob a influência de Trump, pelo menos até o dia 20, data da posse de Biden.
A CONEXÃO TRUMPISTA
As informações preliminares dão conta de que a polícia americana procura estabelecer uma conexão da turba trumpista simplesmente com a produção do caos, que acabou fugindo do controle depois que eclodiu, para colocar na defensiva o vice, Mike Pence, e os principais líderes do Congresso, e, com isso, pelo menos, adiar a proclamação do resultado eleitoral, ou se havia um plano organizado de fazer reféns e, até, matar parlamentares e assessores com o claro propósito de promover um golpe de estado.
As imagens divulgadas em muitas fotos do episódio conspirativo não deixam mentir: muitos dos invasores portavam consigo amarras de plástico utilizadas para deter e imobilizar pessoas pelas mãos. E mais: alguns deles faziam ou fazem parte das forças de segurança e do segmento militar, motivo pelo qual portavam esse tipo de material, além de armas – que só serviriam para tirar a vida de quem oferecesse resistência ao objetivo pretendido.
Até o momento já são quase 200 pessoas entre detidos e indiciados por diferentes modalidades de crime cometidos contra o Capitólio, no distúrbio que configurou o mais brutal ataque sofrido pelo parlamento dos EUA em toda sua história recente.
Chama a atenção o envolvimento de Jacob Anthony Chansley (também conhecido como Jake Angeli), do Arizona, conhecido como O xamã do QAnon, que usa o nome de lobo do Yellowstone em seu canal do YouTube, que entrou no Capitólio de chifres, peles na cabeça e peito nu. Chansley, de 32 anos, segue o culto do QAnon, considerada uma organização de terrorismo interno pelo FBI, e que divulga uma teoria enlouquecida sobre a existência de uma quadrilha global de pedófilos adoradores de Satanás, que supostamente se infiltraram nos níveis mais altos do governo norte-americano para acabar com Donald Trump.
Outros dois elementos estão sendo investigados pela Promotoria de Washington DC: Derrick Evans, de 35 anos, membro do Congresso do Estado da Virgínia Ocidental, que publicou no Facebook um vídeo encorajando os vândalos a participarem do ataque; e Richard Barnett, do Arkansas, fotografado com os pés sobre a mesa de Pelosi, incansável defensor de Trump e do direito de portar armas, que publicara na véspera em sua conta no Facebook a existência de “montes de provas” da suposta fraude eleitoral ocorrida em 3 de novembro, anunciando, vejam só, que estava preparado para uma “morte violenta”, anúncio apropriado, somente, para quem tinha o objetivo de matar.
Como já foi relatado, aqui, no HP, um fotógrafo da Reuters, Jim Bourg, denunciou ter ouvido de sediciosos gritos de “enforquem Mike Pence”, o vice, que estava no Capitólio para presidir a cerimônia de certificação de Biden. Em meio aos desordeiros, um deles exibia uma réplica de um patíbulo com a respectiva corda com o nó de forca. Há testemunhos, também, de que estavam na mira Nancy Pelosi e o líder da minoria na Câmara, Charles Schumer.
A CONIVÊNCIA DO FBI E DO PENTÁGONO
Diante desses fatos, a pergunta que clamorosamente não quer calar é: qual o motivo pelo qual a Guarda Nacional não agiu preventivamente para evitar os distúrbios ocorridos dia 6 no Capitólio quando se sabia, antecipadamente, da marcha dos fascistas para a capital americana?
O que levou a mesma Guarda Nacional demorar horas para responder ao chamado dos líderes do Parlamento e ao apelo da prefeita de Washington, Muriel Bowser?
Qual a razão para que o símbolo da democracia norte-americana, o Parlamento, fosse, naquele momento, o lugar mais desprotegido dos EUA?
Tudo começou no comício do putsch quando Trump deu a senha para que seus acólitos desencadeassem a fúria contra Mike Pence, a quem cobrou “coragem” para fraudar as eleições em favor do presidente bilionário.
“Espero que Mike [Pence] faça a coisa certa. Se ele fizer, venceremos a eleição”, afirmou Trump, cuja estratégia para tentar virar o jogo e inviabilizar a certificação de Biden dependia da conjugação de três fatores.
Primeiro, contar com a conivência de seu vice, responsável por oficializar, como presidente do Congresso, a certificação, devolvendo aos estados os resultados para que os de maioria republicana mudassem o quadro do Colégio Eleitoral à favor de Trump.
Segundo, garantir o ingresso nas dependências do Capitólio de sua turba histérica e estridente. “Enforquem Pence [o vice-presidente dos EUA]” e “Cadê a Pelosi”, era o que mais se ouvia deles depois da invasão.
E, terceiro, para a consecução do objetivo anterior, retardar ao máximo o deslocamento da Guarda Nacional, responsável por impedir os ataques ao Parlamento.
O então chefe da Polícia do Capitólio, Steven Sund, afirmou ao jornal Post que o general Walter Piatt, diretor do Estado Maior do Exército, lhe disse que não poderia imediatamente recomendar ao secretário Ryan McCarthy a autorização para o deslocamento da Guarda Nacional já que desordeiros pró-Trump haviam invadido o prédio.
Piatt é o mesmo que comentou sua aversão ao “visual da Guarda Nacional em uma linha de policiamento com o Capitólio ao fundo”, ou seja, a moldura mais adequada ao Parlamento, para ele, são os bajuladores tresloucados do Trump!
A prefeita da capital confirmou também ao Post a versão de Sund, que, segundo ela, deixou “perfeitamente claro que eles precisavam de ajuda extraordinária, incluindo a Guarda Nacional”.
Embora McCarthy e Piatt tenham jurado, depois, de pés juntos, que não negaram o pedido do Capitólio, o fato é que, quando a Guarda Nacional chegou, já haviam ocorrido quatro das cinco mortes verificadas durante a invasão. O próprio Piatt confirma que, quando congressistas e a prefeita pediam desesperadamente socorro à Guarda Nacional, essa era a última opção, sob a ótica do sagaz militar.
Outro elemento intrigante é que Sund, no mesmo relato ao Post, afirmou que o general Piatt havia dito que preferiria que a Guarda Nacional assumisse posições na capital, para permitir que “a polícia de D.C. respondesse no Capitólio”. Outras informações dão conta de que, por ordem do Pentágono, na semana que antecedeu a invasão, a “polícia de D.C.” havia sido desarmada, apesar dos apelos em contrário da prefeita Bowser.
Sund acrescentou, ainda, que sua tentativa de contar com a Guarda Nacional foi dificultada pelos principais operativos da segurança do Congresso, o sargento-de-Armas da Câmara, Paul Irving, e o sargento-de-Armas do Senado, Michael Stenger, que já renunciaram também.
Outra testemunha que reforça a versão de Sund foi dada ainda na semana passada pelo governador republicano do vizinho Estado de Maryland, Larry Hogan, reconhecido opositor de Trump no partido, oferecendo detalhes sobre o impasse que perdurou por duas horas enquanto o Congresso era agredido pelos trumpistas.
Hogan narrou, também, o fato de que a Guarda Nacional de Maryland só poderia entrar em território federal (a capital, Washington) mediante autorização do Pentágono, o que aconteceu somente duas horas depois, através de uma ligação do secretário do Exército, McCarthy.
Soube-se, ainda, que o socorro tardio só aconteceu depois que o Estado-Maior Conjunto do Exército foi acionado pelo próprio vice-presidente, Mike Pence, o que permitiu o desbaratamento do cerco sofrido até então pelo Capitólio.
Um relatório do FBI da Virgínia advertiu, um dia antes do violento ataque, que extremistas de direita estavam planejando viajar a Washington em 6 de janeiro para realizar atos violentos, uma “guerra”, segundo o documento interno, ao qual teve acesso o The Washington Post, que contradiz a versão inicial da agência federal, segundo a qual não dispunha de informações sobre a ameaça iminente.
Informações divulgadas pelo Post apontam que alguns indivíduos que invadiram o Capitólio dispunham de um mapa dos complexos túneis do prédio e possíveis pontos de encontro entre os instigadores em Kentucky, Pensilvânia, Massachusetts, Carolina do Sul e na capital norte-americana, e ainda comentaram sobre a transferência de potenciais feridos.
Em suma, já eram muito contundentes os indícios de que os extremistas chegavam à cidade com planos para algo mais do que apenas uma manifestação.
A OMISSÃO DO FBI
O FBI, apesar de todos as informações captadas nas mensagens que recebeu, preferiu a omissão. O autor do relatório sobre os movimentos que tinham como objetivo o Capitólio, que não foi identificado, “pede às agências (no caso, a dos estados, grifo nosso) que o receberem que não ajam com base nessas informações brutas sem coordenação prévia com o FBI”, expressando preocupação com a violação da liberdade de expressão por parte dos manifestantes.
Para o FBI de Trump, mais importante que o Parlamento e o que a instituição representa é o direito dos fanáticos trumpistas invadirem e depredarem a sua integridade física, ameaçarem a vida dos congressistas e funcionários e provocarem a morte de alguns.
Ou seja, o Capitólio estava estranhamente subprotegido por ordem do Pentágono de Trump, enquanto o FBI preferia cruzar os braços em nome de uma falaciosa – para não dizer, criminosa, “liberdade de expressão”.
O Pentágono e o FBI agiram como agiram em razão de uma cobertura superior, que só poderia ser conferida pelo presidente americano e por mais ninguém.
Agora, quando o processo de impeachment de Trump tramita aceleradamente no Parlamento, pouco a pouco, os fatos vão se conectando e todos eles têm em seu vértice a figura de Trump. Segundo Adam Schiff, presidente do Comitê de Inteligência da Câmara, foi o presidente quem “acendeu o estopim que explodiu no Capitólio” no dia 6 de janeiro.
A ESCÓRIA DESPERTADA
Os episódios decorrentes do ataque ao Capitólio é mais um capítulo, talvez o mais eloquente a desnudar o caráter de Trump e de sua turba, representantes de um obscurantismo tosco e destrutivo que despertaram uma escória até então adormecida nos esgotos norte-americanos, nos porões mais imundos e apodrecidos do país, e que, agora, para tentar salvar seu chefe maior, está disposta a fazer o jogo sujo em nome de enganosas e inabaláveis crenças, contando, como se apurou, com a conivência de quem tinha a autoridade legal para reprimir o atentado ao parlamento americano e não o fez.
Outros fatos corroboram a conexão.
Ainda em 2020, foi detida uma milícia em Michigan que planejava o sequestro da governadora do Estado, a democrata Gretchen Whitmer, com a ameaça de fazer vários reféns. Felizmente, o caso foi investigado a tempo de ser frustrado.
As redes sociais, depois do fatídico 6 de janeiro, diante da conivência e incitamento de Trump à frustrada sublevação, estão transbordando das retóricas dos chamados supremacistas brancos e seguidores da extrema-direita que disseminam o ódio aos inimigos políticos do presidente sucumbente, pregando o banimento de todos eles e a instauração de um governo despótico.
A semelhança com o grupo dos 300 que pregou o golpe contra o Parlamento e a Suprema Corte brasileiras é pura coincidência!
A grande mídia norte-americana reverberou a arapuca trumpista da seguinte forma: “A democracia dos Estados Unidos, em perigo” e “O templo da liberdade, atacado por uma turba alienada”. O The Washington Post chegou a considerar o episódio “a maior ameaça à nossa segurança nacional desde o 11 de setembro”, provocado pelo que denominaram “terrorismo interno”, que coloca “a democracia em perigo”.
Ora, apenas um golpe de caráter fascista pode colocar a democracia dos EUA “em perigo”, algo que um ato isolado de tresloucados e histéricos militantes não é capaz de provocar. Somente ameaças dessa natureza poderiam levar, por exemplo, aplicativos universais como o Twitter e Facebook banirem, com muita razão, as contas de Donald Trump. Aliás, o mesmo Twitter parece ter capturado mensagens que apontam a possibilidade de um novo ataque ao Capitólio dos EUA e aos legislativos estaduais entre os dias 17 e 20 de janeiro.
David Laufman, funcionário de alto escalão do Departamento de Justiça norte-americano durante os ataques às torres gêmeas, em 2011, hoje, ex-promotor federal, vai mais longe em sua avaliação sobre os limites da investigação. Segundo ele, se tem alguém que não ser poupado da apuração por parte do FBI e do Departamento de Justiça é o atual presidente que incitou o ataque ao Capitólio e dele poderia ter se beneficiado.
A HISTÓRIA QUE SE REPETE
Os EUA já passaram por episódios semelhantes, sobre os quais, à época, o establishment político e econômico abafou como pode para ocultar a podridão dos interesses mesquinhos da indústria bélica e seus congêneres.
A película de Oliver Stone JFK, a pergunta que não quer calar, ao decifrar de forma magistral as causas do assassinato do presidente John F. Kennedy, em 1963, a partir de relatos e informações captadas ao longo de décadas por investigações, antes manipuladas, talvez tenha se constituído na denúncia mais eloquente do século, que expôs, como nunca, as vísceras do sistema político e econômico dos EUA à serviço, à época, dos donos das armas e do petróleo, interessados em insuflar o país para a guerra do Vietnã, da qual saíram vergonhosamente derrotados.
Dessa vez, espera-se que não tarde tanto tempo para vir à tona a plena elucidação das causas que envolveram o episódio de 6 de janeiro e, com isso, seja possível desferir um tiro certeiro na ameaça fascista que voltou a inquietar os americanos e seu vulnerável sistema político, assim como resgatar os melhores valores da história dos EUA, ainda que essa fase esteja muito distante no tempo.
Enquanto isso, pelos dados já disponíveis e os antecedentes históricos, a dedução mais óbvia e próxima da realidade é que os Estados Unidos da América sofreram a ameaça de um golpe fascista – uma tentativa de golpe de estado a serviço de Trump e de sua obsessão doentia em permanecer no poder mesmo depois de derrotado nas urnas.
(MAC)