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A Oitava Emenda proíbe “punição cruel e incomum”. Sentença é apontada como “atroz e sedenta de sangue”
Decisão da Suprema Corte dos EUA, que autorizou a execução no Missouri de um prisioneiro portador de doença rara por injeção letal, que causaria a ele uma agonia excruciante, foi amplamente condenada por juristas norte-americanos e entidades de direitos humanos como uma legalização da tortura e reinterpretação maligna da Oitava Emenda da Constituição, revertendo 60 anos de precedentes progressistas. A Oitava Emenda proíbe “punição cruel e incomum”.
Sentença apontada pelo Common Dreams como “sedenta de sangue” e “atroz”, conforme denunciaram ativistas e advogados.
A defesa do condenado Russell Bucklew pedia que, ao invés de injeção letal, a execução fosse por câmara de gás, em razão de sua enfermidade.
O que fora acolhido no voto de minoria do Juiz Shephen Breyer, que registrou que o réu “sofre de uma condição congênita conhecida como hemangioma cavernoso que faz com que tumores cheios de vasos sanguíneos cresçam por todo o corpo, inclusive em sua cabeça, rosto, pescoço e cavidade oral”.
Em consequência, como Breyer apontou, “executá-lo por injeção letal fará com que os tumores que crescem em sua garganta se rompam durante sua execução, fazendo com que ele gagueje e sufoque em seu próprio sangue por até vários minutos antes de morrer”,
No voto de maioria, o juiz Neil Gorsuch, um dos dois ultraconservadores indicados por Donald Trump – outro é o notório Brett ‘MeToo’ Kavanaugh -, foi além do que seria a apreciação do caso Bucklew vs Precythe, ao estabelecer que “a Oitava emenda não garante a um prisioneiro uma morte indolor.”
E, ainda mais, ao reiterar a posição extremada do veterano Clarence Thomas, da safra de constitucionalistas de Bush Pai, de que só há “punição cruel e incomum” quando a dor “é deliberadamente infligida.” Se isso não é a exoneração da tortura …
O site de análise jurídica Above the Law (Acima da Lei) denunciou que a decisão não apenas condena Bucklew “a uma morte dolorosa em vez de forçar o Estado a encontrar um método menos doloroso”, como o recluso solicitou, mas enfraquecerá as proteções da Oitava Emenda “aos outros detentos do Corredor da Morte das gerações vindouras”.
Indo à questão de fundo – “o número desconhecido de pessoas inocentes que foram executadas neste país desde que a pena de morte foi restabelecida” – o articulista Elie Mystal alerta contra essa neutralização da Oitava Emenda.
“Em vez de apenas matar o assassino e acabar com ele, Gorsuch não pôde resistir a ver o caso Bucklew como uma oportunidade para experimentar justificativas do direito do Estado de infligir sofrimento que há muito têm sido descartadas por pessoas decentes.”
Não é a figura de Bucklew, há 22 anos no corredor da morte, que está em discussão: assassinou o novo namorado da ex, e a sequestrou e estuprou.
A argumentação de Gorsuch também foi rebatida pela juíza Sonia Sotomayor, que salientou que “existem valores mais altos do que garantir que as execuções sejam feitas no prazo” – ele apontava como mera manobra protelatória o pedido do réu.
“Se uma sentença de morte ou a maneira como é executada viola a Constituição, essa mancha nunca pode sair”, sublinhou.
O caso é apenas o mais extremo de uma lista que só faz crescer de exibições de crueldade, com detentos estrebuchando por horas porque a injeção letal não teve exatamente o desempenho esperado. O que se agravou desde que a corporação que fabricava o sódio thiopental parou de fornecê-lo, segundo Gorsuch, por causa de “campanha dos oponentes da pena de morte.”
A opinião de maioria de cinco membros essencialmente ignorou a evidência da condição médica rara do réu e rechaçou a sugestão de execução com gás nitrogênio – que existe legalmente em três estados nos EUA – com a cínica justificativa de que não teria apresentado um ‘plano completo’ da própria execução, ao não incluir detalhes como o ‘equipamento de proteção’ dos carrascos.
Gorsuch buscou se mostrar como um “originalista”, um defensor dos fundamentos constitucionais originários quando a Oitava Emenda foi adotada em 1791, e até se dedicou a descrever os métodos de execução “cruéis e incomuns” da época, como “enforcar, esquartejar, arrastar o corpo pela rua e queimar na fogueira”, para concluir que não havia como excluir sufocamento “por vários minutos”.
Desde 1958, sob a presidência de Earl Warren, a Suprema Corte estabeleceu que a Oitava Emenda proibia não apenas o que era considerado bárbaro no século XVIII, mas qualquer punição que desafiasse “padrões evolutivos de decência que marcam o progresso de uma sociedade em amadurecimento”.
É com base nessa concepção que passou a ser considerado que a pena capital é “cruel e incomum” aplicada a qualquer criança ou jovem, ou aos deficientes intelectuais, ou àqueles que sofrem de doença mental de tal forma que não podem compreender seu crime ou sua punição.
Mesmo com certos recuos durante o governo Reagan e com a indicação por Bush Pai de reacionários como Clarence Thomas, foi isso que prevaleceu.
Agora, a decisão encabeçada por Gorsuch implica na reversão do precedente de longa data da Suprema Corte de que – como o Juiz Breyer notou em seu voto – “a Oitava Emenda não é uma proibição estática que proscreve as mesmas coisas que proibiu no século XVIII. Pelo contrário, proíbe punições que seriam consideradas cruéis e incomuns hoje”.
Do que deriva que o “originalismo” de Gorsuch é só a folha de parreira com que busca se opor a qualquer desenvolvimento democrático dos princípios constitucionais. Como situou Ian Millhiser, no Think Progress, a opinião da maioria “literalmente arranca o coração de mais de meio século dos precedentes da Oitava Emenda e o substitui por uma regra legal muito diferente que, até recentemente, foi rejeitada por todos, exceto pelos conservadores mais linha dura da Suprema Corte”.