
Para sair livre e rumar à sua terra natal após 15 anos de perseguição por expor crimes hediondos dos EUA, o jornalista investigativo teve que se dizer culpado de, no jargão do establishment norte-americano, “conspirar para obter e expor documentos de segurança”
A chegada do jornalista e fundador do WikiLeaks, Julian Assange, como um homem livre à sua terra, a Austrália, depois de 15 anos de perseguição feroz de parte dos EUA tentando calá-lo e extraditá-lo por expor aos povos os próprios arquivos do Pentágono documentando os crimes de guerra perpetrados no Iraque e Afeganistão, foi comemorado no mundo inteiro.
Como sublinhou sua esposa, Stella, que o esperava na quarta-feira (26) em Canberra junto com seus dois filhos pequenos, Gabriel e Max, “foram necessários milhões de pessoas, foram necessárias pessoas trabalhando nos bastidores, pessoas protestando nas ruas por dias, semanas, meses e anos”. “E conseguimos.”
Como último ato da estúpida e antidemocrática perseguição, Assenge teve de comparecer a um tribunal numa colônia norte-americana no Pacífico, próxima à Austrália, para se declarar “culpado” de uma única de 18 acusações lançadas contra ele, a de ter agido, junto com a ex-soldado Chelsea Manning, para informar ao mundo sobre os crimes de guerra norte-americanos que vinham sendo encobertos. Ou, segundo no jargão do establishment ianque, por “conspirar para obter e divulgar documentos confidenciais de defesa nacional”.
Como biombo “jurídico”, os governos Trump e Biden haviam usado a famigerada “Lei de Espionagem”, criada em 1917 para perseguir e encarcerar honrados cidadãos norte-americanos que eram contrários à entrada dos EUA na I Guerra Guerra Mundial – aquela “guerra de bandidos” pela redivisão e pilhagem do mundo, segundo a definição clássica.
O que Nixon não havia conseguido contra Daniel Ellsberg e os “Papeis do Pentágono” ao tempo da Guerra do Vietnã, foi raivosamente buscado por Trump, e em seguida mantido por Biden: enquadrar na “Lei de Espionagem” jornalistas por veicularem ao público informações verdadeiras de crimes. Extraditá-lo.
A acusação de “espionagem” contra Assange era ainda mais cínica, dado que a divulgação dos arquivos do Pentágono, como todos sabem, foi feita não apenas pelo WikiLeaks, mas conjuntamente com os principais jornais do mundo.
Não houve qualquer “espionagem” da “defesa nacional” dos EUA, mas exposição ao público de crimes de guerra cometidos pelos EUA como parte de sua “ordem unipolar”, perpetrados por toda a parte, durante três décadas de “excepcionalismo” à revelia da Carta da ONU, que incluíram até mesmo a oficialização da tortura, sob W. Bush.
Como denunciaram entidades internacionais de jornalistas, como Assange não era norte-americano e nem fez a publicação das denúncias nos EUA, é a tentativa de criar uma aplicação extraterritorial contra a liberdade de imprensa, contra o jornalismo.
Em última instância, a acusação a Assange é a prova de que não existe liberdade de imprensa nos EUA e a 1ª Emenda se tornou peça decorativa.
“1ª EMENDA”
Na audiência de três horas em Saipan, Assange estava acompanhado por seus advogados e por diplomatas australianos.
“Trabalhando como jornalista, encorajei minha fonte a fornecer informações que se dizia serem confidenciais para publicar essas informações”, disse Assange à juíza escalada para oficializar o acordo, Ramona Manglona.
Ele enfatizou que “acreditava que a Primeira Emenda protegia essa atividade, mas aceito que era uma violação do estatuto de espionagem.”
Assange acrescentou então significativamente: “A Primeira Emenda estava em contradição com a Lei da Espionagem, mas aceito que seria difícil ganhar um caso deste tipo dadas todas estas circunstâncias”.
Como a equipe jurídica de Assange e entidades de defesa dos direitos civis e da liberdade de expressão advertiram, ao não simplesmente desistir do pedido de extradição, o que a Casa Branca fez foi buscar abrir um precedente para que Biden – ou Trump, a eleição é em novembro – persigam jornalistas no mundo inteiro, tornados em reféns do aparato repressivo e judicial norte-americano. “Vejam o que fizemos com Assange”, é a “mensagem” implícita.
O advogado de Assange nos EUA, Barry Pollack, disse aos repórteres do lado de fora do tribunal de Saipan que o editor e ativista “sofreu tremendamente em sua luta pela liberdade de expressão”.
Outra advogada de Assange, Jennifer Robinson, disse após a audiência que toda a provação “abre um precedente perigoso que deveria ser uma preocupação para jornalistas em todos os lugares”.
“INFORMAÇÕES VERDADEIRAS E DIGNAS DE NOTÍCIA”
“O sr. Assange revelou informações verdadeiras, importantes e dignas de notícia, incluindo a revelação de que os Estados Unidos cometeram crimes de guerra, e ele sofreu tremendamente em sua luta pela liberdade de expressão, pela liberdade de imprensa e para garantir que o público americano e a comunidade mundial recebam informações verdadeiras e importantes dignas de notícia”, sublinhou Pollack.
Ele apontou que Assange abordou a inconstitucionalidade inerente à Lei de Espionagem de 1917, na medida em que criminaliza a posse e disseminação de informação de defesa, o que entra em conflito com os direitos dos jornalistas, como assegurado na Primeira Emenda, de obter e publicar tal material.
“O sr. Assange não iria concordar com qualquer decisão deste caso que exigisse que ele aceitasse alegações que simplesmente não são verdadeiras”, acrescentou Pollack.
“Senhor Assange não se declarou culpado e não se declararia culpado de 17 acusações da Lei de Espionagem, pirataria informática. Houve aqui um conjunto muito restrito de fatos acordados e o Sr. Assange reconhece que, claro, aceitou documentos de Chelsea Manning e publicou muitos desses documentos porque era do interesse do mundo que esses documentos fossem publicados. Infelizmente, isso viola os termos da Lei de Espionagem. É isso que reconhecemos hoje. O Sr. Assange também disse claramente que acredita que deveria haver proteção da Primeira Emenda para essa conduta, mas a verdade é que, tal como está escrito, a Lei da Espionagem não tem uma defesa com base na Primeira Emenda”, aliás, ao contrário, a desrespeita.
“O que ele reconheceu é o que ele tem que reconhecer, o que é verdade e nada de que deveria se envergonhar: sim, ele recebeu informações confidenciais de Chelsea Manning e publicou essas informações.”
Em Canberra, o pai de Assange, John Shipton, se disse preocupado com as “circunstâncias políticas e jurídicas que rodeiam”o acordo. “Acho que será um problema para jornalistas e editores em qualquer lugar do mundo publicar críticas ao governo dos Estados Unidos”, acrescentou.
UM DIA DE CELEBRAÇÃO
Ao desembarcar do avião em Canberra, Assange ergueu o punho direito e foi aplaudido por apoiadores à distância. Ele abraçou sua esposa Stella e seu pai, John Shipton, que estavam esperando na pista.
“Hoje foi um dia de celebração”, disse Stella. “Julian precisa de tempo para se recuperar. Para se acostumar com a liberdade. Alguém me disse ontem que tinha passado por algo semelhante, que a liberdade vem devagar. E quero que Julian tenha esse espaço para redescobrir a liberdade, aos poucos. E rapidamente.”
Antes da chegada, falando na transmissão ao vivo da campanha de Assange no YouTube, ela disse que estava “eufórica, animada, exausta”. “Não consigo dar a volta por cima”, disse ela sobre a libertação do marido. “É como se eu estivesse tendo uma experiência fora do corpo.”
“Minha fé nunca, nunca, nunca morreu”, disse o pai de Assange à Reuters. “Que Julian possa voltar para casa na Austrália e ver sua família regularmente e fazer as coisas comuns da vida é um tesouro. A vida medida entre a beleza do ordinário é a essência da vida”.
OS EUA CONTRA O JORNALISMO E A VERDADE
A repercussão da publicação, pelo WikiLeaks, em conjunto com os principais jornais do mundo, de centenas de milhares de arquivos do Pentágono e do Departamento de Estado, registrando desde crimes de guerra até articulações para golpes e extorsões, foi respondida pelo governo Obama, com a então secretária de Estado Hillary Clinton chegando a propor “abatê-lo com um drone”.
Em conluio com os governos da Suécia e do Reino Unido, os EUA montaram uma operação para destruir a reputação de Assange, forjando uma falsa acusação de estupro, que serviu de mote para a caçada judicial.
Quando ele se dispôs a voltar à Suécia, desde que houvesse a garantia de que não seria extraditado para os EUA e Estocolmo recusou, tornou-se evidente que era isso que estava sendo preparado.
Com a falsa acusação – de que a Suécia abriu mão só em 2017 – as autoridades britânicas entraram na perseguição, forçando o jornalista a pedir asilo em 2012 na Embaixada do Equador em Londres, na presidência de Rafael Correa, que foi concedido. Então, Chelsea Manning já estava no cárcere e condenada por entregar os arquivos dos crimes.
Nem dentro da embaixada do Equador Assange escapou da perseguição, com, já no governo Trump, chegando a tramar o sequestro e assassinato do jornalista, e com a CIA tendo cooptado a empresa que prestava segurança à embaixada para seu esquema sórdido.
Quando o vice Lenin Moreno assumiu o poder no lugar de Correa na Presidência do Equador, o governo Trump cooptou-o e este, afinal, cassou irregularmente a condição de asilado, e a polícia inglesa foi chamada para sequestrar o jornalista.
Dali Assange foi para um tribunal que, num caso de falta a uma audiência, ao invés de uma multa, como é de praxe, mandou-o para uma prisão de segurança máxima, Belmarsh, chamada pela BBC de “Guantánamo britânica”, onde ficaria por cinco anos sob regime de solitária 23 horas por dia, numa cela de 2 x3 metros.
O relator especial da ONU, Nils Melzer, que o visitou no cárcere considerou que Assange manifestava todos os sintomas de vítimas de tortura, em consequência dessa perseguição.
Sob tais condições draconianas, a saúde física e mental de Assange se deteriorou, a ponto de a juíza de primeira instância, apesar de no resto concordar com todas as alegações de Washington, ter recusado a extradição por temer pela vida do jornalista.
Depois a sentença favorável a Assange foi revogada pela Corte Superior, após supostas garantias dos EUA que, segundo a Anistia Internacional, “não valiam o papel em que estavam escritas”. Só no último minuto a corte aprovou um último pedido de revisão apresentado pela defesa, quando já avançavam negociações com a participação do governo australiano e a ameaça de extradição estava no auge.
Ao longo de todos esses anos, no mundo inteiro uma poderosa corrente a favor de Assange se ergueu. “Libertem Assange” e “Jornalismo não é crime”, exigiram manifestantes, entidades, personalidades, artistas e líderes políticos. Alguns deles, como Daniel Ellsberg e o cineasta John Pilger, incansáveis defensores de Assange, não puderam vê-lo livre, mas é deles também essa vitória.
essa “vitória de pirro” de Assange, não se deve aos jornalistas que o abandonaram, e sim ás mobilizações da sociedade, que enxerga o perigo que ainda ronda os jornalistas, que denunciam as falcatruas dos governos sujos e criminosos ,tipo os eua.