A euforia lulista com o relatório de Gilmar Mendes e com a decisão, tomada pela maioria do Supremo Tribunal Federal (STF), de considerar inconstitucional a “condução coercitiva” – ou seja, a possibilidade de um juiz de Direito autorizar a polícia a conduzir um investigado, que resiste a depor, para testemunhar – é algo meio bobo.
Pois nada pode, no momento, deixar tão claro o caráter da cúpula e dos porta-vozes lulistas, quanto sua alegria com essa decisão. Sobretudo, quando está servindo de claque para o notório ministro Gilmar Mendes.
O relatório deste último foi, aliás, centrado em atacar a Operação Lava Jato. Por exemplo: “[as conduções coercitivas] são o novo capítulo da espetacularização das investigações. O investigado conduzido coercitivamente é claramente tratado como culpado e o número de conduções realizadas no âmbito da Operação Lava Jato já supera a quantidade de prisões – preventivas, temporárias e em flagrante – decorrentes da investigação”.
O grande problema das conduções coercitivas, portanto, são que elas expõem investigações que o ilustre relator preferia que não viessem à tona. Por isso ele fala em “espetacularização”.
A Operação Lava Jato, por falar nisso, não investiga propinas passadas para o guarda da esquina. Investiga um roubo de R$ 42 bilhões somente na Petrobrás – e um roubo que avacalhou com o que havia de democracia no país, em especial em seu sistema eleitoral.
Não são as investigações, portanto, que são “espetacularizadas”. São os crimes investigados que são espetaculares, infelizmente para o país.
SOFISMAS
O resultado do julgamento já estava consumado desde quarta-feira, quando a ministra Rosa Weber votou com o relator. Na quinta, também o ministro Celso de Mello votou com os inimigos da Operação Lava Jato – Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski.
O problema não está em que a proibição da condução coercitiva produza um grande dano nas investigações da Operação Lava Jato. A questão é, mais, outra: por que, justamente agora, resolveu-se proibi-la, como se fizesse parte das torturas da ditadura – que, a propósito, nunca foram permitidas por lei alguma.
A “condução coercitiva” existe no Direito brasileiro desde as Ordenações Filipinas, em 1603, quando éramos uma colônia – as Ordenações não foram abolidas pelo Império, que sucedeu à Independência, exceto parcialmente, e depois. Por isso, pode-se falar que elas faziam parte do “Direito brasileiro”.
Portanto, a “condução coercitiva” passou por mais de 400 anos de História do Brasil – e por 30 anos de vigência da Constituição de 1988 – sem que ninguém tivesse levantado, em nenhum momento, que ela era inconstitucional ou que atropelava a presunção de inocência, ou que feria o direito ao silêncio, ou que favoreciam a autoincriminação, ou etc., etc. & etc.
Somente quando ela foi utilizada na investigação de corruptos, de ladrões do dinheiro público, de bandidos que assaltaram a Petrobrás, de políticos sem escrúpulos que queriam ficar no poder usando o resultado de seu roubo do dinheiro do povo, é que se descobriu que a condução coercitiva era um absurdo.
Não por acaso, o convertido Gilmar Mendes – aquele que soltou duas vezes em 24 h o escroque Daniel Dantas, duas ou três vezes o mafioso Barata, duas vezes o operador e ladrão Paulo Vieira de Souza (também conhecido por “Paulo Preto”), uma vez o estuprador serial Roger Abdelmassih, e, nas últimas semanas, soltou 19 membros da quadrilha de Sérgio Cabral – foi, no Supremo Tribunal Federal, o paladino dessa causa.
Uma causa, aliás, levantada pelo PT, após a condução coercitiva de Lula.
Acima, dissemos que a condução coercitiva existe, no Direito brasileiro, desde as Ordenações Filipinas.
Algum Gilmar Mendes da vida poderia dizer que, por isso mesmo, já era hora de acabar com a condução coercitiva.
Seria um argumento oportunista e sem escrúpulos. Não é a antiguidade de um estatuto que faz com que haja obrigação de aboli-lo.
Se fosse assim, o artigo 5º da Constituição (“Todos são iguais perante a lei”, etc.) teria que ser apagado, pois ele tem 229 anos, desde que foi elaborado pela Assembleia Nacional que sucedeu aos Estados Gerais, durante a Revolução Francesa.
Mais importante, portanto, é saber por que a condução coercitiva resistiu a mais de 400 anos de História.
A razão pode ser encontrada no Direito comparado: qual é o país do mundo em que a “condução coercitiva” – ou equivalente – foi proibida em qualquer hipótese?
Em nenhum outro.
Comentando a decisão do STF, o ex-procurador geral da República, Rodrigo Janot, escreveu: “Pois é. A prisão preventiva deve ser melhor. Tempos estranhos”.
Porque é óbvio que a proibição da condução coercitiva redundará em maior número de prisões cautelares – temporárias ou preventivas.
Sobre a douta argumentação de Gilmar Mendes de que “se validarmos aqui regras autoritárias, o que o guarda da esquina fará?”, disse Janot:
“Guarda da esquina não faz condução coercitiva. Isso é ato judicial. Vamos falar sério.”
Com efeito.
MORAES
O ministro Alexandre de Moraes tem toda razão, quando, na quarta-feira, afirmou:
“O direito de defesa não engloba somente o direito ao silêncio, mas o de falar no momento adequado, de escolher o momento de apresentar provas ou de falar. Ou seja, trata da impossibilidade de alguém ser obrigado a produzir provas sobre si mesmo.”
Exatamente por isso, continuou o ministro, o acusado ou investigado pode exercer seu direito de falar ou de silenciar em qualquer ato jurídico. Apenas, não pode escolher de quais atos participa – por exemplo, se comparece para depor ou deixa de comparecer. Pelo menos, não existe esse direito na Constituição, frisou Moraes.
FACHIN
“Entendo que o Brasil”, afirmou o ministro Luís Edson Fachin, “tem sido marcado por um sistema de Justiça criminal notadamente injusto, vinculador de um tratamento desigual entre os cidadãos abastados e aqueles desprovidos de poder econômico e político”.
A tentativa de proibir a condução coercitiva no momento em que ela atinge os mais ricos – empreiteiros corruptos e outros privilegiados – se inscreve, disse Fachin, nesse contexto, em que “há rigor excessivo contra a parcela menos abastada da população e injustificada leniência quando poderosos estão a volta com práticas criminosas”.
BARROSO
O ministro Luís Roberto Barroso também ressaltou que comparecer, ao ser convocado para um depoimento, é um dever legal. Daí a legalidade da coerção coercitiva, quando o convocado resiste a comparecer.
Para ele, só “um exacerbado ativismo por parte do Supremo para sobrepor posição diferente nesta matéria” daquela que tiveram a Câmara dos Deputados, o Senado, a Presidência da República, a Procuradoria-Geral da República e a Advocacia-Geral da União.
Barroso referia-se ao fato de que a condução coercitiva está presente em seis dispositivos legais, que fazem parte do Código de Processo Penal, da Lei 9.099/1995 e até do Estatuto da Criança e do Adolescente, todos com aprovação ou sancionamento dos órgãos que citou.
“O Estado que pune o agente que pagou propina, que pune o dirigente de instituição financeira que quer vantagem indevida, não é um Estado policial, é Estado de justiça. O choro e o ranger de dentes são contra um direito mais igualitário, não contra o punitivismo. Não podemos participar do pacto oligárquico que defende essa gente.
“O Direito Penal está chegando ao andar de cima agora que juízes corajosos rompem esse pacto. Há então um surto de garantismo mal travestido de bem”, disse Barroso.
FUX
“O artigo 260 [do Código de Processo Penal], quer pela interpretação histórica, quer pela própria dicção, é constitucional”, disse o ministro Luiz Fux.
“As conduções coercitivas vêm sendo usadas por ordem judicial no curso de investigações criminais em delitos de última geração, praticados contra a administração pública, em que os meios tradicionais não estavam preparados para enfrentar.
“O direito ao silêncio foi instituído para impedir a mentira, as falsas versões. O Estado tem o direito de evitar que determinado investigado combine versões que possam frustrar a atividade estatal. Quando se pretende violar a instrução penal, combinar versões que trazem malogro para a prova dos autos, estamos diante de um periculum in mora para o processo. Neste momento, entram em cena as medidas cautelares, que são medidas de preservação do resultado útil do processo civil ou do processo penal.
“Parece-me anômalo se embasar em tragédias históricas como a ditadura e o holocausto para se impedir a investigação de crimes contra a administração pública. Essas barbáries não podem servir de base para impedir a condução coercitiva, que é levada a efeito contra crimes de colarinho branco.”
INDO E VINDO
Até onde se pode entender o que disse o ministro Dias Toffoli, o problema da condução coercitiva é que atinge o “direito de ir e vir”.
É verdade. Mas a cadeia também atinge – e muito mais – esse direito. Irá o ministro agora, prosseguindo nesse raciocínio, chegar à conclusão de que a cadeia, como pena ou como medida cautelar, deve ser abolida no Brasil?
O problema, evidentemente, é qual o direito que é mais importante a cada momento – e o de quem: por exemplo, entre o direito de toda a sociedade de ter uma vida pública minimamente honrada e o direito de ir e vir de um meliante, nos parece claro qual é a alternativa melhor.
O ministro Lewandowski, respondendo ao ministro Barroso, disse que o “garantismo” foi “sempre construído a partir de casos de pessoas pobres, desempregadas, subempregadas e de pequeno poder aquisitivo”, não do “andar de cima”, como dissera Barroso.
Não explicou, no entanto, porque a condução coercitiva jamais provocou tal epidemia de “garantismo” – inclusive de sua parte – antes que a Operação Lava Jato começasse a usá-la na investigação de corruptos repletos de dinheiro roubado.
Disse o ministro Marco Aurélio de Mello que “não podemos partir para o justiçamento, de não ter-se mais segurança jurídica, colocando a sociedade em sobressaltos”.
O ministro não parece achar que a corrupção por atacado abala a segurança jurídica ou coloca a sociedade em sobressaltos.
Já a condução coercitiva de alguns ladrões, supõe-se, é um “justiçamento”.
Ao votar pela proibição da condução coercitiva, o ministro Celso de Mello disse que o investigado “não tem a obrigação jurídica de cooperar com órgãos e agentes da persecução penal”.
É verdade, mas os órgãos responsáveis pela “persecução penal” têm obrigação de efetuá-la – supõe-se que o papel do STF não seja o de colocar obstáculos no meio da pista pela qual ocorre a investigação.
C.L.