Com a entrada em vigor no dia 2 da reativação plena da famigerada Lei Helms-Burton pelo governo Trump, a União Europeia voltou a advertir Washington de que vai defender suas empresas que operam em Cuba através de “todas as medidas apropriadas” – incluindo o recurso à Organização Mundial do Comércio (OMC) e ao Estatuto de Bloqueio.
“A UE considera que a aplicação extraterritorial de medidas restritivas unilaterais é contrária ao direito internacional”, afirmou em comunicado Federica Mogherini, Alta Comissária de Relações Exteriores da União Europeia.
De acordo com os títulos III e IV da Helms-Burton, empresas europeias que operam em Cuba propriedades nacionalizadas e que tenham propriedades nos EUA podem ser processadas em qualquer tribunal norte-americano para ressarcimento, e gerentes e familiares dessas empresas podem ter vistos de entrada nos EUA negados.
Mogherini ressaltou que essa decisão do governo Trump vai causar “atrito desnecessário” entre Washington e a UE, podendo surgir “milhares de processos judiciais”, minando a “confiança e previsibilidade” da parceria transatlântica.
A Helms-Burton foi aprovada em 1996, quando Cuba estava sob o “período especial”, com a pretensão de ser o golpe final para a queda do socialismo, mas acabou tendo seus títulos III e IV suspensos após negociações entre europeus e Washington entre 1997 e 1998, o que foi mantido por sucessivos governos democratas e republicanos, até a ascensão de Trump.
A Helms-Burton permite que cidadãos norte-americanos ou cubano-americanos possam processar em tribunais norte-americanos, conforme uma lei norte-americana, as empresas europeias que mantêm negócios com Cuba, sendo que um dos principais setores afetados é o de turismo, em que cadeias internacionais operam hotéis nacionalizados.
“NÃO DETERÁ”
Como registrou o presidente cubano Miguel Díaz-Canel Bermúdez, o propósito da Helms-Burton é “asfixiar economicamente e impossibilitar o desenvolvimento econômico de Cuba, atacar a soberania de terceiros países, e destruir a Revolução Cubana”. Sua aplicação, afirmou, “não deterá a marcha dos cubanos”.
Segundo o embaixador da UE em Cuba, Alberto Navarro, “os EUA podem fazer a legislação que quiserem e aplicá-la em seu território, mas o que não podem fazer é fingir aplicá-la a outros países”.
Cuba negociou com outros países indenização das propriedades nacionalizadas pela Revolução, e apenas os EUA se recusaram terminantemente a qualquer acordo, para manter um pretexto a mais para o bloqueio.
A própria nacionalização de empresas foi a resposta, por parte do governo revolucionário cubano, à medida tomada pelo governo Kennedy em julho de 1960 para asfixiar economicamente Cuba, suprimindo a cota de importação de açúcar cubano [praticamente a única fonte de divisas da Ilha] e decretando o embargo do petróleo.
Há 27 anos consecutivos, por quase unanimidade, o bloqueio econômico dos EUA a Cuba tem sido condenado pela Assembleia Geral da ONU.
CHUMBO TROCADO
A Comissão Europeia já tinha enviado no mês passado carta ao secretário de Estado, Mike Pompeo, advertindo que a questão seria levada à OMC e que a mesma torrente de processos que pode ocorrer nos EUA em relação a empresas europeias poderia se repetir, do outro lado do Atlântico, em relação a empresas norte-americanas com bens em solo europeu, como parte do mecanismo existente de defesa das empresas europeias.
Para o chanceler espanhol, Josep Borrell, os tribunais da OMC se verão perante “uma fase de extrema atividade litigiosa”. Um dos alvos centrais da Helms-Burton no momento atual são os hotéis geridos por redes espanholas.
O estatuto europeu de bloqueio de sanções – recentemente atualizado em decorrência das sanções de Trump ao Irã – proíbe que residentes e empresas da UE cumpram legislação extraterritorial, a menos que sejam autorizados pela Comissão Europeia.
Determina, ainda, que as empresas europeias possam, de forma recíproca, reivindicar indenização por danos resultantes dessas regulamentações de terceiros países.
A UE anunciou, ainda, que continuará a trabalhar com outros parceiros internacionais que também “expressaram sua preocupação” com a aplicação extraterritorial de uma lei norte-americana, como é o caso do Canadá.
EUFORIA EM LITTLE HAVANA
Em Little Havana, há euforia na máfia anticubana, com o chefe do Diretório Democrático Cubano, Nick Gutiérrez, anunciando ao El País “processos contra empresas espanholas nos próximos meses”, começando pela Meliá, que gerencia hotéis em Cuba.
A ideia dos gusanos é extorquir os empresários europeus.
“Nem Gabriel Escarrer [presidente da Meliá] nem qualquer empresário espanhol quer estar em uma lista com traficantes de drogas, terroristas. Tecnicamente, o que fariam é obter o consentimento do proprietário para operar lá. Os queixosos não podem devolver ou recuperar as propriedades em Cuba, como esperamos fazer um dia”, explicou Nick.
“Em essência, seria que eles nos pagam pelo uso da propriedade, enquanto nós não podemos usá-la, e assim evitar o risco de ações judiciais ou a revogação de vistos”. “Uma quantia de dinheiro em troca de uma autorização”, sintetizou candidamente o gusano.
Porta-voz da rede Meliá emitiu declaração afirmando que não possui propriedades em Cuba que “poderiam estar sujeitas a potencial reivindicação” e que seu papel é de “meros gerentes de hotel”. O El País também relata como outros gusanos querem nada menos que reaver o porto de Havana.
A investida de Trump contra Cuba não se deve exclusivamente à bronca contra a solidariedade de Havana à Venezuela, tendo também como componente alistar a máfia cubano-americana na campanha de reeleição do bilionário no próximo ano, em que um dos estados em disputa será a Flórida.
SIMPÓSIO REFUTA
Simpósio em Havana sobre a Helms-Burton na sexta-feira (3) reuniu juristas cubanos, o ex-presidente da Assembleia Nacional, Ricardo Alarcón, e a diplomata Johana Tablada. O professor Rodolfo Dávalos deixou claro que as nacionalizações se realizaram sob amparo da lei cubana. “O que é ilegal”, destacou, “é uma lei extraterritorial como a Helms-Burton”.
Alarcón afirmou que Cuba “é um país livre e soberano e nenhuma nação estrangeira tem direito de ditar leis contra Cuba”. Como assinalou, na realidade o bloqueio começou no dia de vitória, 1º de janeiro de 1959. Ele também se referiu aos ladrões que levaram o dinheiro da república em 1959. “São os mesmos que agora reclamam supostas compensações por suas propriedades perdidas em Cuba”.
Como salientou Tablada, o governo Trump “busca causar o maior dano possível no menor tempo possível em Cuba”, mas não tem logrado “quebrar o nível de apoio a Cuba nem mesmo dentro dos EUA”.
As ações intentadas recentemente perante os tribunais de Miami podem “demorar meses a se resolverem, talvez anos”, acrescentou Dávalos, referindo-se ainda às medidas de defesa que começam a ser tomadas pelos advogados das empresas afetadas.
Mesmo nesse terreno legal há muitas questões sem resposta. “Esses tribunais são competentes? Poderá haver um júri imparcial em Miami?”, questionou o jurista. “Gerardo Hernández, Herói da República de Cuba, presente nesta sala, sabe do que estou falando”, sublinhou, dando como exemplo os julgamentos dos cinco antiterroristas cubanos nessa cidade.
Na OMC, o embaixador Pedro Pedroso reafirmou que Cuba “honrará todos os seus compromissos em matéria econômica com seus sócios internacionais”. Ele salientou que os empresários estrangeiros em Cuba têm o respaldo das leis cubanas, do direito internacional e das legislações de seus próprios países.
O diplomata conclamou a que a seja freada “a escalada irracional e a política de hostilidade e agressão” dos EUA e chamou, ainda, a barrar que Washington “continue pisoteando impunemente o multilateralismo” e pretenda “regressar à lei da selva”.
A.P.