Persiste, após a ditadura de 1964, uma espécie de hiato cultural, que ainda não foi, de todo, fechado.
Há livros e autores que, simplesmente, parecem – ou permanecem – desaparecidos.
O leitor mais jovem já ouviu falar, por exemplo, de “Roteiro da Agonia”, “O Deus Faminto”, “O Rosto de Papel” ou “O Sol Escuro”?
São romances de um escritor chamado Macedo Miranda. Todos merecem leitura (Macedo Miranda, falecido em 1974, escreveu muito mais que isso, mas limitamo-nos, aqui, ao que conhecemos).
Se é assim no romance (ou, como diriam alguns, na “literatura de ficção”, que inclui também o conto e o teatro), pior ainda na historiografia.
Em meio a uma tonelada de livros elevando Pedro II ao empíreo, parecem desaparecidas as obras em sentido oposto, por exemplo, “Quem foi Pedro II: golpeando, de frente, o saudosismo”, de Carlos Sussekind de Mendonça.
Ou as obras de Evaristo de Moraes sobre a escravatura e a Abolição.
O que transcrevemos abaixo é, exatamente, o primeiro capítulo de “A Escravidão Africana no Brasil (Das origens à extinção)”, publicado em 1933 na Coleção Brasiliana, da Companhia Editora Nacional.
Evaristo de Moraes (é preciso especificar que se trata do pai, já que Evaristo de Moraes Filho também se tornou notável) foi abolicionista e republicano.
Há muitas coisas impressionantes em sua vida – inclusive a sua copiosa obra.
Uma delas é ter-se tornado o maior advogado criminalista do país, sem ser advogado (ou, melhor, sem ter diploma da profissão).
No Império e na primeira República existia a figura do “rábula” – por exemplo, Luiz Gama era um rábula, um advogado que não tinha diploma.
De 1894 até 1917, portanto, durante 23 anos, Evaristo de Moraes foi o mais bem sucedido defensor no Tribunal do Júri (inclusive em causas que, hoje, parecem discutíveis – e até para ele, na época, já eram: daí a sua consulta a Rui Barbosa sobre se deveria aceitar uma causa, respondida por Rui em “O dever do advogado”).
Porém, é injusto não destacar que ele também defendeu os marinheiros da Revolta da Chibata e líderes operários, como Edgard Leuenroth.
No entanto, somente em 1917, com 45 anos, ele formou-se em advocacia, na antiga Faculdade Teixeira de Freitas (a atual Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense).
Apesar de célebre como criminalista, sua maior obra no campo do Direito foi a contribuição na feitura das leis trabalhistas do governo Getúlio Vargas, após a Revolução de 30.
Evaristo de Morais foi, também, fundador do Partido Socialista do Brasil (1917), e, depois, do Partido Socialista Brasileiro (1925).
Ele escreveu bastante sobre a escravidão. Por exemplo: “Extinção do Tráfico de Escravos no Brasil – ensaio histórico” (1916); “A Lei do Ventre Livre – ensaio de história parlamentar” (1917); “Brancos e Negros, nos Estados Unidos e no Brasil” (1922); “A Campanha Abolicionista” (1924 ); e, finalmente, “A Escravidão Africana no Brasil – Das origens à extinção” (1933).
Sobre este último, manifestou a esperança de que servisse para “meditação proveitosa de quem queira, com as lições do passado, prevenir os males do futuro”.
Nesse livro, diz ele, “condensei alguns trabalhos anteriores, tendo o intuito de oferecer a visão retrospectiva de um regime social-econômico que atravessou três séculos, findando sob os olhos da geração contemporânea do advento da República”.
“Essa geração”, continua ele, “ainda assistiu às últimas resistências daquele regímen contra os esforços dos seus demolidores. Mas, àquela época, não havia serenidade para bem julgar a lamentável instituição. Dominavam paixões e prevenções, dia a dia exacerbadas pelos atos da intensa reação com que a autoridade pública pretendia evitar o inevitável.
“Tinha a porfiosa contenda operado, repetidamente, desde 1871, várias cisões no seio dos dois partidos monárquicos, forçando a maioria de um deles a repudiar, quando no poder, o que prometera em celebrado programa.
“Na realidade, sempre que se tratava do Cativeiro, desapareciam os rótulos de liberais e conservadores, surgindo a separação entre os que eram favoráveis e os que eram contrários ao regímen escravocrático. Outrossim, de ano para ano, verificavam-se mutações à vista, que só espantavam a quem não sabia que, em política, os acontecimentos conduzem mais do que são conduzidos…
“Não há, portanto, motivo para se ficar maravilhado – por exemplo – diante da passagem de Rodrigo Silva do ministério presidido pelo barão de Cotegipe para o ministério chefiado por João Alfredo, aquele reacionariamente escravocrático, este declaradamente abolicionista. Logicamente, não causará pasmo tenha sido Rodrigo Silva quem, ministro da Agricultura, haja apresentado à Câmara o projeto da Lei Áurea.
“Foi esta uma das mais expressivas lições de coisas políticas, no meio das muitas que deparamos, ao estudar o período decorrente entre as duas datas máximas – 28 de setembro de 1871 [Lei do Ventre Livre] e 13 de maio de 1888.
(…)
“Ah, se fosse dado aos políticos prever como aos astrônomos!”
Abaixo, leitor, o início desta obra de Evaristo de Moraes (C.L.).
O tráfico
EVARISTO DE MORAES
“Nos séculos XVII e XVIII, nos séculos de Luís XIV e de Voltaire, nas vésperas da Revolução Francesa, e mesmo depois dela, toda a Europa se entrega ao tráfico dos negros”.
Estas palavras de Augustin Cochin exprimem a mais comprovada das verdades1.
Sem indagar a quem cabe a prioridade do tráfico, se aos portugueses, se aos espanhóis, certo é que, em meiado do século XVI, ele já constituía o meio regular de colonização de Portugal e de Espanha, e durante os dois séculos seguintes abasteceu, igualmente, de trabalhadores escravos as colônias inglesas, francesas e holandesas.
Nenhuma potência marítima da Europa pode escapar à observação de Cochin.
Súditos de todas foram traficantes e possuidores de escravos africanos. Costuma-se carregar sobre Portugal as maiores culpas do tráfico, talvez tendo em consideração que só muito tarde libertamos, no Brasil, os últimos produtos desse comércio, para nós originariamente português2.
Mas, há injustiça na apreciação.
Culpas maiores teve a Espanha, não menores teve a Inglaterra, idênticas cabem à Holanda e à França. Durante muitos anos, o tráfico foi a principal fonte de renda da Espanha. Por meio dos seus famosos asientos, ela concedia a determinados súditos seus e de outras nações o direito exclusivo de fornecer negros escravos às suas possessões de ultramar. O negócio era de tal monta e tantos lucros granjeava que os soberanos estrangeiros tudo faziam para obter os asientos.
Sucessivamente, desde 1517 até 1743, vemos gozando o rendoso monopólio: flamengos, portugueses, espanhóis, franceses e ingleses. Os prazos das concessões foram diferentes, mas a Inglaterra conseguiu, pelo tratado de paz de Utrecht, para seus súditos, o maior de todos, 30 anos (1713). Eram os asientos beatamente celebrados, en el nombre de la Santissima Trinidad, pela majestade mui catolica de Espanha. Em geral, os empresários, com os quais a Espanha tratava, garantiam a transação por meio de grandes empréstimos ou adiantamentos feitos a ela. Os empresários se obrigavam a fornecer certa quantidade de negros, contados por peças ou por toneladas. Em menos de dois séculos, realizou a Espanha dez contratos dessa espécie, relativos ao transporte de 500.000 escravos, ganhando 50.000.000 de libras. Eis como se prova a importância ligada a tais convenções: – em 1743, como terminasse o prazo da concessão feita à Inglaterra e a Espanha não estivesse disposta a renová-la, quase houve declaração de guerra…3
Pelo lado da França, vemos que, a 27 de agosto de 1701, o seu Rei très chrétien (sublinha Cochin) assinava com o mui catolico Rei da Espanha um tratado pelo qual o monopólio do tráfico para as colônias espanholas era assegurado à Real Companhia de Guiné, representada por Du Casse. Neste tratado se explica que a companhia francesa se encarrega do tráfico para que traga aos dois monarcas una loable, pura, mutua y reciproca utilidad…
Nem a própria Revolução Francesa influiu positivamente na supressão do tráfico; seus princípios de liberalismo não aproveitaram aos míseros africanos. Tanto assim que, nas Balances du Commerce de 1789, 1790 e 1791, figuram os negros como gêneros ou mercadorias coloniais. Em 1792, no relatório que apresentou à Convenção acerca do comércio exterior, desculpa-se Roland por não poder dar o número exato dos cultivateurs africains transportés par nos armateurs dans les iles de l’Amerique.
A mentalidade coletiva da Europa autorizava e sancionava essas negociações relativas à mercadoria humana.
Embora aparecesse um ou outro escasso protesto, não lograva impressionar as classes dirigentes.
Desde o começo se patenteia inegável cumplicidade ou mansa aquiescência por parte dos sacerdotes cristãos, que só raramente condenaram, em absoluto, o tráfico e a escravidão. São sem o menor valor as pretendidas demonstrações do contrário, pois a mostra de piedade pelos escravos e a pregação da bondade dos senhores, no tratamento deles, não exprimem a negação formal do “direito de propriedade do homem sobre o homem”.
Ao contrário, era tal a pressão dos prejuízos [preconceitos] correntes acerca dos povos não cristãos e das necessidades econômicas dos países colonizadores, que mais de um clérigo se fez arauto da escravidão dos negros africanos e houve quem sustentasse que na religião de Jesus não havia palavra decisiva contra tal instituto!4
Notável entre os mais notáveis é o exemplo de Las Casas.
Acerca da coparticipação desse ilustre dominicano nos começos do tráfico para as colônias espanholas muito se tem escrito; em seu favor conhecemos mais de uma defesa; mas, afinal, chegamos à conclusão a que chegara o insuspeito senador do Império e erudito jurista Cândido Mendes de Almeida, na desenvolvida “Introdução” de que fez preceder os Princípios de Direito Mercantil, de Silva Lisboa (Visconde de Cairú).
Las Casas, cuja ação junto ao governo central da Espanha e à administração das respectivas colônias, se fizera sentir no primeiro quartel do século XVI, combatendo com ardor a escravidão dos indígenas americanos, não trepidava em aconselhar a introdução de escravos africanos. Certo, Las Casas não foi – como alguns pretenderam – o autor do alvitre; aceitou-o, adotando-o.
Em defesa, ao mesmo tempo, dos indígenas e dos colonos europeus, acudiu, também, em 1661, o preclaro padre Antonio Vieira, dizendo que no Maranhão só haveria remédio permanente de vida quando entrassem, com força, escravos de Angola5.
A contradição se afigura, à primeira vista, colossal; mas se apreciarmos o proceder do bispo Las Casas e do padre Antonio Vieira à luz das ideias do seu tempo, e se o compararmos com outras manifestações de personalidades igualmente cristãs, veremos que nada tem de extraordinário.
Antes de tudo, cumpre reconhecer, com Cândido Mendes, que “a escravidão dos que não pertenciam à Cristandade e eram inimigos declarados, constituía o direito público da época”. Outrossim, sobrevivera o princípio do Direito Romano, que estabelecia a escravidão dos prisioneiros.
Demais, conforme se deduz das discussões havidas na célebre junta de Burgos (1511), prevalecia o falso suposto de que todos os africanos traficados já eram escravos em seus países de origem, e pois, vindo para a América, apenas mudavam de senhores…
Quanto à atitude semelhante de contemporâneos, é digna de relevo a de Cristóvão Colombo. Em cartas escritas de Lisboa, datadas de 1493, propôs ele a introdução, na Espanha, de indígenas americanos, escravizados, e nos dois anos seguintes foram feitas remessas de muitos deles, destinados a serem vendidos em Sevilha, com que se alarmaram os escrúpulos piedosos da Rainha Isabel.
Em 1498 renovou Colombo a proposta.
Não menos significativo é um trecho do testamento de Fernando Cortez, que Alexandre de Humboldt aproveitou no seu Essai politique sur le royaume de la Nouvelle-Espagne (T. 11, pag. 44):
– “Sendo duvidoso se, em boa consciência, um cristão pode se servir, como escravos, dos indígenas feitos prisioneiros de guerra e como até o presente este ponto não ficou líquido, ordeno a meu filho Martinho e aos meus descendentes, que depois dele venham a possuir meu majorado e meus feudos, tomem todas as possíveis informações sobre o direito que possam legitimamente exercer em relação a tais prisioneiros.”
***
Além da suposição errônea do estado de escravidão anterior dos africanos, outros muitos prejuízos tinha criado, na Europa, a falsa consciência em que assentava a legitimidade ou licitude aparente do tráfico. Do lado dos colonos – ávidos de trabalhadores que lhes valorizassem as terras – se deparava, mais uma vez, a verdade da ponderação de Santo Agostinho: “omne quodcumque volumus bonum est”. Aí reside, segundo um moralista moderno, o princípio de todas as falsas consciências: “achamos bom o que queremos”.
Há, por isto mesmo, alterações coletivas da consciência, comuns a todo um povo ou a toda uma época. São derivadas da raça, do meio, do tempo e não do indivíduo (V. Questions de Morale Pratique, por Francisque Bouillier, Paris, 1889, páginas 1 a 31).
Sucede, também, que o interesse econômico de um indivíduo ou de um grupo social (seja uma classe, seja um partido político, seja uma nação) se mascara, frequentemente, com o sofisma humanitário e esse sofisma, à força de ser repetido de má fé, se transforma em argumento aceito, em boa fé, pelo maior número, indo até ao ponto de viciar o juízo coletivo6. Nem escapam a essa obra de saturação e infiltração os espíritos mais eminentes.
Exemplifica este fenômeno no tocante à escravidão e ao tráfico – que lhe servia de alicerce – a opinião longamente deduzida, ainda no alvorecer do seculo XIX, pelo ilustrado Bispo de Elvas, antigo Bispo de Pernambuco, D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, de quem possuímos dois preciosíssimos opúsculos. Um traz no frontispício: “Analyse sobre a Justiça do commercio do resgate de escravos da Costa d’África”; outro se intitula: – “Concordância das leis de Portugal e das Bullas Pontifícias das quaes umas permittem a escravidão dos pretos d’ A frica e outras prohibem a escravidão dos índios do Brasil”.
Ambos datam de 1808. Em qualquer deles, esforça-se o prelado por demonstrar a legitimidade da escravidão dos Africanos, reproduzindo quase todos, senão todos, os sofismas que forravam a consciência dos escravocratas, desde meado do século XVI.
Um ano antes, no Parlamento britânico, observava Lord Eldon: “que o tráfico havia sido sancionado por parlamentos em que tinham assentos os jurisconsultos mais sábios, os teólogos mais esclarecidos e os homens de Estado mais eminentes”. Por seu turno, o nobre Conde de Westmoreland, falando perante a mesma ilustre assembleia (Câmara dos Lords), protestava contra os presbíteros, os prelados, os metodistas, os pregadores, os jacobinos, verdadeiros assassinos, que propugnavam a abolição do tráfico de escravos…
Em resumo: ao entrar do “século das luzes”, a consciência pública, na maior parte da América, se acomodava com a vigência do tráfico, embora, de longe em longe, através dos três séculos porque ele se vinha alastrando, tivesse surgido um ou outro gesto de repulsa, perdido no meio da indiferença e do egoísmo circundantes7.
NOTAS
1L’Abolition de L’Esclavage, Paris, 1851, vol. II, pag. 281.
2Acerca da introdução de escravos africanos no Brasil, desde o século XVI, vide: João Ribeiro, História do Brasil, curso superior, 5ª edição, 1914, pags. 243 a 255; Rocha Pombo, História do Brasil, vol. II , pags. 514 a 534 ; Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil, 1932, pags. 25 a 28.
3Nina Rodrigues, obra cit., pag. 13.
4V. João Ribeiro, obra citada, pag. 214.
5V. Vida do Padre Antonio Vieira, por João Francisco Lisboa, 3ª ed., 1874, pags. 454, 463, 465.
6Bentham, infelizmente, mais citado do que lido, ponderava: “A maior parte dos que, nas suas opiniões, são dominados por seus interesses, estão provavelmente de boa fé. Tal acontece quando esses interesses os dominam, sem que o percebam”. (Oeuvres, de Jèremie Bentham, ed. de Bruxelas, 1840, T. 3º, pag. 480).
7De fato, alguns papas, citados por Cochin, fulminaram a escravidão, mas os crentes fizeram ouvidos moucos…