Premiê Boris Johnson admite que a vitória russa é “uma possibilidade realista” e pede a formulação “de uma visão para o futuro da Ucrânia na arquitetura de segurança da Europa”
M. K. BHADRAKUMAR*
Uma coisa extraordinária sobre a diplomacia britânica é que ela procura continuamente maneiras de ficar à frente da curva e fornecer valor agregado ao seu cliente do outro lado do Atlântico, os Estados Unidos. Isso torna as observações sobre o conflito na Ucrânia feitas pelo primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, em sua entrevista coletiva em Nova Délhi na sexta-feira (22) altamente significativas.
Johnson trouxe à mente os versos evocativos do poema Dover Beach, de Matthew Arnold, sobre o “rugido melancólico, longo e retraído” quando a fé está recuando. Ele estava completamente em desacordo com o foco dos comentários do presidente dos EUA, Joe Biden, na Casa Branca no dia anterior, onde este prometeu:
“responsabilizar Putin por sua guerra brutal e sangrenta”;
“aumentar ainda mais a capacidade da Ucrânia de lutar no leste – na região do Donbas”;
“repelir a agressão da Rússia na Ucrânia, para derrotar a selvageria de Putin”;
“enviando uma mensagem inconfundível a Putin: ele nunca conseguirá dominar e ocupar toda a Ucrânia. Ele não vai – isso não vai acontecer”;
“aumentar a pressão sobre Putin e isolar ainda mais a Rússia no cenário mundial”;
“além de negar à Rússia os benefícios do sistema econômico internacional de que tanto gozou no passado”;
“continuar ao lado do corajoso e orgulhoso povo da Ucrânia”.
Biden conseguiu reunir toda essa retórica cáustica em um único discurso! Na verdade, ele até completou exalando otimismo de que “ainda não há evidências de que Mariupol tenha caído completamente”.
POSSIBILIDADE “REALISTA”
Mas Johnson, em nítido contraste, tendia a concordar com a previsão da Inteligência Militar Britânica de que os russos poderiam vencer na Ucrânia. Sem nenhuma acrobacia verbal, ele foi direto ao ponto:
“Acho que o triste é que essa (vitória russa) é uma possibilidade realista. Sim, claro. Putin tem um exército enorme, ele tem uma posição política muito difícil… a única opção que ele tem agora é continuar tentando usar sua abordagem terrível, esmagadora, dirigida, liderada pela artilharia, tentando triturar os ucranianos. Ele está muito perto de garantir uma ponte terrestre em Mariupol agora. A situação é, receio, imprevisível. Nós apenas temos que ser realistas sobre isso.”
Durante sua recente visita à Ucrânia, Johnson teria aconselhado o presidente Vladimir Zelensky a recuar e formar uma nova linha de defesa, mas Zelensky não teve outra opção a não ser seguir o conselho americano.
BIDEN E A ‘GUERRA PARA SEMPRE’
Para o presidente Biden, é claro, há motivos suficientes para que a guerra continue como uma guerra para sempre. A guerra une a Europa por trás da liderança transatlântica enfraquecida dos EUA. Além disso, Biden agora tem um álibi para explicar a alta inflação na economia americana.
Ele está aplacando o complexo militar-industrial em ano eleitoral. Biden anunciou na quinta-feira um novo pacote de US$ 800 milhões em ajuda militar para artilharia pesada, 144.000 cartuchos de munição e drones, que serão enviados “diretamente para as linhas de frente da liberdade” no Donbass.
No entanto, a grande questão permanece: quanto tempo durará a unidade ocidental por trás da liderança americana se Biden buscar um conflito prolongado com a Rússia? As sucessivas derrotas em Mariupol e Donbass não apenas quebrariam a espinha do exército ucraniano e prejudicariam seriamente a credibilidade dos EUA, mas desacreditariam toda a narrativa triunfalista ocidental.
Embora as sanções ocidentais tenham prejudicado a economia russa, de acordo com as indicações atuais, Moscou está se ajustando a um “novo normal”.
Ao contrário das expectativas ocidentais, as sanções não mudaram a opinião pública russa contra o governo. O teste bem-sucedido na quarta-feira passada do míssil balístico intercontinental de próxima geração da Rússia Sarmat – que “não tem análogos no mundo e não terá por muito tempo” (palavras de Putin) – é sem dúvida uma afirmação desafiadora.
TENTATIVA DE ISOLAR A RÚSSIA FRACASSA
Enquanto isso, as tentativas ocidentais de “isolar” a Rússia não têm histórias de sucesso para contar. Na reunião dos ministros das Finanças do G20 em Washington, a prancha do “boicote à Rússia” não teve outros adeptos além do bloco ocidental. Os EUA não conseguiram persuadir a Arábia Saudita a se desvincular de seu cartel da OPEP+ com a Rússia. Acima de tudo, na área-chave onde mais importa – petróleo e gás – a Europa não consegue concordar com um embargo. Vários países da UE ameaçam vetar qualquer medida da Comissão.
As economias europeias estão em vários estágios de colapso, à medida que a reação das sanções começa a atingi-las.
O banco central da Alemanha alertou na sexta-feira que um embargo total às compras de energia da Rússia pode custar 180 bilhões de euros, reduzir em 5% o PIB esperado da Alemanha este ano e levar a economia de volta a uma grave recessão. Ele alertou que mesmo a necessidade de encontrar fontes substitutas de energia colocaria um foguete sob a inflação, adicionando mais de 1,5% ao índice de preços ao consumidor deste ano e mais de 2% ao do próximo ano.
O chanceler Olaf Scholz disse à Spiegel na sexta-feira que um embargo de gás causaria, em última análise, “uma crise econômica dramática, a perda de milhões de empregos e de fábricas que nunca mais abririam”. Ele disse que, dadas as “grandes consequências para o nosso país, para toda a Europa, é minha responsabilidade dizer: ‘Não podemos permitir isso (o embargo)’”.
EUROPEUS, OS GRANDES PERDEDORES
Os europeus estão percebendo mais cedo ou mais tarde que são os grandes perdedores. Além das interrupções nas cadeias de abastecimento que dificultam a produção industrial, com o fardo de 5 milhões de refugiados (até agora) e o grande impacto na segurança alimentar devido à guerra no “celeiro da Europa” combinada com a escassez de fertilizantes usados para aumentar o rendimento das colheitas, a Europa está sentindo o peso dos aumentos de preços.
Mesmo antes da guerra na Ucrânia, os preços dos fertilizantes estavam subindo rapidamente devido ao aumento do custo do gás, com o fertilizante de nitrogênio custando quase cinco vezes mais do que no ano passado. Especialistas alertam que tudo isso pode levar a uma crise alimentar. Agricultores agitados lideraram protestos pedindo concessões.
As pesquisas do Gallup International mostraram que as maiores preocupações dos cidadãos da UE no momento são o aumento dos preços, o medo de uma guerra cada vez maior na Ucrânia e uma possível escassez no fornecimento de energia. Mais da metade dos cidadãos da UE acredita que a Europa já forneceu apoio suficiente à Ucrânia.
CRESCE OPOSIÇÃO À GUERRA
É aqui que a derrota no Donbass se transforma em um evento climático que questiona toda a narrativa dos EUA sobre a Ucrânia – expansão da OTAN, segurança europeia e diálogo com a Rússia – e, é claro, a fixação sobre a liderança de Vladimir Putin na Rússia.
Uma pesquisa publicada na quinta-feira pela Associated Press-NORC Center for Public Affairs Research mostra que o desejo dos americanos de se envolver diminuiu um pouco. Apenas 32% dizem que os EUA devem ter um papel importante no conflito, abaixo dos 40% do mês passado. Outros 49% dizem que os EUA deveriam ter um papel menor.
ONDE A UCRÂNIA SE ENCAIXA AGORA?
Enquanto falava em Delhi, Johnson praticamente descartou a narrativa de Biden. Em vez disso, ele pediu “a formulação de uma concepção para o futuro da Ucrânia na arquitetura de segurança da Europa. Onde a Ucrânia se encaixa agora?”
Johnson disse que a Ucrânia precisa ser capaz de responder a essa pergunta – “o que os ucranianos querem afinal”. Curiosamente, ele não usou a palavra “governo ucraniano”.
Johnson se estendeu sobre “uma coleção de garantias de segurança de países com ideias semelhantes – compromissos de segurança sobre o que podemos fazer para apoiá-los com armamento, treinamento e compartilhamento de inteligência”. Mas ele rapidamente acrescentou que isso não pode ser “como uma garantia do Artigo 5 (OTAN)”. Em vez disso, ele disse, a Ucrânia deveria ter “dissuasão pela negação”.
De acordo com a visão de Johnson, a adesão da Ucrânia à OTAN é inconcebível. A Grã-Bretanha antecipa novos fatos no terreno. Johnson parecia reconhecer as realidades políticas emergentes enquanto o rolo compressor russo implacavelmente “tritura” a máquina de guerra de Kiev até virar pó.
* Último embaixador indiano na União Soviética e atual analista da cena internacional desde Nova Délhi. Originalmente publicado em seu portal indianpunchline.org, sob o título ‘Narrativa dos EUA não sobriverá à derrota no Donbass’. Tradução, destaques em negrito e subtítulos Hora do Povo.