Na noite da quarta-feira (24), em sessão remota, o Senado aprovou por 65 votos a 13 o PL 4.162/2019 chamado de novo marco legal do saneamento básico. A relatoria do projeto foi do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE). A matéria agora segue para sanção presidencial. A nova legislação extingue o modelo atual de contrato entre municípios e empresas estaduais de água e esgoto e estimula a participação da iniciativa privada no setor.
A estrutura atual está baseada nas companhias estaduais estatais de tratamento de água e prestação de serviços de esgotamento e nas companhias municipais que geram seus próprios serviços. O atual marco regulatório já permite a participação de empresas privadas na prestação deste serviço, mas as companhias estaduais respondem hoje por 72% do setor e as operadoras privadas detêm 6% do mercado. A nova legislação acaba com a preferência das empresas públicas nos contratos com as prefeituras.
Sem uma política pública de investimento definida para o setor de saneamento, o acesso aos serviços básicos é dramático no país e ficou ainda mais evidente diante da Covid-19, onde milhões de brasileiros não tinham sequer acesso à água para lavar as mãos. Estando entre as dez maiores economias do mundo, o Brasil ocupa 101º. lugar no ranking de saneamento básico. Dados de 2018 do Sistema Nacional de Informações de Saneamento indicam que 125,8 milhões de pessoas não têm esgotamento sanitário. Em relação à água tratada, 39,4 milhões não têm acesso a ela e a coleta de resíduo não atende a 52,1 milhões brasileiros.
A solução desta situação, com a obtenção da universalização dos serviços de água e esgoto demanda investimentos da ordem de R$ 750 bilhões. Os apoiadores do projeto acreditam que isso se dará com a privatização do setor de saneamento em todo o país, entregando o saneamento básico para grupos privados, inclusive estrangeiros, tipo GIC e Brookfield, como defende o ministro Paulo Guedes. A privatização como solução da falta de saneamento encontra em experiências anteriores a demonstração de que isso, como regra, não aconteceu.
O senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR), líder do partido, manifestou ceticismo quanto ao projeto. Em sua opinião, a privatização da empresa de energia elétrica de Roraima não deu bons resultados. Para ele, a privatização sanitária vai aumentar os valores da conta de água e da tarifa de esgotamento.
“A privatização resultou na demissão de centenas de servidores e na entrega de um patrimônio avaliado em mais de R$ 1 bilhão por míseros R$ 50 mil! Hoje, o roraimense paga a tarifa de energia mais cara do Brasil pelo pior serviço prestado pela empresa dos amigos do ex-senador Romero Jucá. O pior serviço de energia e o mais caro do Brasil são prestados no estado de Roraima. Não é difícil imaginar qual o destino que terá o setor de água e saneamento em nosso estado. A privatização vai entregar o filé para as empresas privadas, que é a capital, Boa Vista, mas o interior do estado ficará à mercê, sem água, sem saneamento básico e dependendo de investimentos públicos federais ou do estado, e sabemos que neste momento não há recursos disponíveis”, afirmou Mecias de Jesus.
“Se a privatização é para atrair recursos privados e diminuir gastos públicos, certamente, tenham certeza, vai acontecer o contrário, principalmente aqui no estado de Roraima”. “Assim, aprovar a privatização seria condenar a população do interior de Roraima a ficar sem água e sem saneamento, e ainda ver aumentar o valor da conta de água e da tarifa de esgoto e de saneamento tanto na capital quanto no interior, como aconteceu com a tarifa de energia”, declarou.
O Tocantins, por exemplo, foi outro estado onde o setor foi privatizado nos anos 2000. Depois de 14 anos a concessionária quis “devolver” para o estado a operação do sistema, mas apenas nos municípios não rentáveis. Enquanto os defensores da norma dizem que ela vai possibilitar a “universalização do saneamento”, críticos afirmam que haverá aumento nas tarifas e privatização de um direito fundamental: o acesso à água.
Com a aprovação da nova legislação, o país caminha em sentido oposto ao que vem sendo feito em capitais pelo mundo. Cidades como Paris, Berlim e Buenos Aires tiveram experiências ruins com a privatização e acabaram voltando atrás. Na contramão, o Brasil agora tenta, via mercado, corrigir um problema histórico de saneamento básico.
O senador Weverton Rocha (PDT-MA), líder do partido, na sua declaração de voto, afirmou: “Infelizmente às cidades pequenas, principalmente do Norte e do Nordeste, nós sabemos que esses investimentos não vão chegar, como foi aqui falado.” “É um projeto que vai beneficiar os grandes centros, claro, onde as grandes empresas têm interesse de investir, mas no entorno nós vamos continuar ainda à margem, ainda na dificuldade e, quem sabe, não sabemos ainda nem mensurar o prejuízo que vamos ter quanto à questão da tentativa de levar a política de saneamento de água para essas cidades menores e menos assistidas” , declarou o senador Rocha.
A líder da bancada do PCdoB na Câmara, deputada Perpétua Almeida (AC), criticou a decisão do Senado. “Saúde, educação, saneamento básico e energia elétrica são fundamentais para uma vida digna. A pandemia mostrou que o SUS é essencial para salvar vidas e que, pelo CEP, se sabe quem mais morre: os pobres. Mas a preocupação no Senado hoje é privatizar água e esgoto”, disse a parlamentar.
O atendimento aos pequenos municípios foi uma questão importante questionada nos debates no Senado. O atual plano nacional de saneamento permitiu que a política estadual de saneamento pudesse ser implementada com o auxílio do “subsídio cruzado”. Basicamente, isso significa que uma grande empresa consegue absorver os prejuízos de sistemas deficitários (municípios com pouca viabilidade econômica) com o lucro dos sistemas superavitários. Isto não está na nova legislação.
A experiência internacional também reforça a opinião dos parlamentares de que a iniciativa privada não garante nem a ampliação e nem a melhora dos serviços de saneamento básico.
De acordo com um mapeamento feito por onze organizações majoritariamente europeias, da virada do milênio para cá foram registrados 267 casos de “remunicipalização”, ou reestatização, de sistemas de água e esgoto. No ano 2000, de acordo com o estudo, só se conheciam três casos.
Satoko Kishimoto, uma das autoras da pesquisa, afirma que a reversão vem sendo impulsionada por um leque de problemas reincidentes, entre eles serviços inflacionados, ineficientes e com investimentos insuficientes. Ela é coordenadora para políticas públicas alternativas no Instituto Transnacional (TNI), centro de pesquisas com sede na Holanda.
O estudo detalha experiências de cidades que recorreram a privatizações de seus sistemas de água e saneamento nas últimas décadas, mas decidiram voltar atrás – uma longa lista que inclui lugares como Berlim, Paris, Budapeste, Bamako (Mali), Buenos Aires, Maputo (Moçambique) e La Paz.
Há o caso da Apple Valley, cidade de 70 mil habitantes na Califórnia. Desde 2014, a prefeitura vem tentando se reapropriar do sistema de fornecimento e tratamento de água por causa do aumento de preços praticado pela concessionária (Apple Valley Ranchos, a AVR), que aumentou as tarifas em 65% entre 2002 e 2015. A maioria da população declarou apoio à remunicipalização, mas a companhia de água rejeitou a oferta de compra pela prefeitura. Em 2015, a cidade de Apple Valley entrou com uma ação de desapropriação, e o processo agora pode levar alguns anos para ser concluído.
Outro exemplo é o de Berlim, onde o governo privatizou 49,99% do sistema hídrico em 1999. A medida foi extremamente impopular e, após anos de mobilização de moradores – e um referendo em 2011 -, ela foi revertida por completo em 2013. Foi uma vitória popular, diz Satoko, mas por outro lado o Estado precisou pagar 1,3 bilhão de euros para reaver o que antes já lhe pertencia.