Macron pede desescalada da retórica e Scholz diz que Otan “não busca mudança de regime”
Do presidente francês Emmanuel Macron ao secretário de Estado Anthony Blinken, passando pelo primeiro-ministro alemão, Olaf Scholz, a declaração do presidente norte-americano Joe Biden, no sábado (26), na Polônia, de que “pelo amor de Deus, esse homem [Putin] não pode continuar no poder” – sutil como um elefante em uma cristaleira -, provocou uma debandada em busca de distância do sôfrego desejo de derrubar o presidente de uma superpotência nuclear.
A primeira reação do Kremlin veio do porta-voz Dmitry Peskov: “Não cabe ao presidente dos EUA e nem aos americanos decidir quem permanecerá no poder na Rússia. Somente o povo da Federação Russa pode decidir isso”.
Peskov disse ainda que Biden é “vítima de muitas ilusões” e atribuiu as declarações à influência dos assessores dele.
Antes, Biden já voltara a insultar o presidente russo de “carniceiro” e de “criminoso de guerra”, como parte de seu roteirizado encontro com “refugiados da Ucrânia”, onde também asseverou que a desnazificação é “mentira”.
PANOS QUENTES
O primeiro-ministro alemão Scholz apressou-se em dizer que a Otan “não está buscando a mudança de regime na Rússia”.
O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, achou por bem pedir “uma desescalada”, seja “militar” ou de “retórica”, após as provocações do presidente dos EUA.
Um funcionário anônimo da Casa Branca correu a remendar, asseverando que Biden não havia pedido a remoção de Putin, só teria querido dizer é que “Putin não deve ter permissão para exercer poder sobre seus vizinhos ou a região”.
E, como se só houvesse tontos nas redondezas, desconversou: “ele não discutiu o governo Putin ou a mudança de regime na Rússia”.
Já Macron havia contestado o insulto pessoal de Biden a Putin, afirmando que “não usaria esse tipo de comentário porque continuo discutindo com o presidente Putin”, em entrevista ao canal France 3.
“Queremos parar a guerra sem adicionar conflitos e subir o tom. Esse é o objetivo”, disse Macron.
Segundo ele, a meta é obter um cessar-fogo e a retirada total das tropas, de maneira diplomática. “Se queremos fazer isso, não devemos subir o tom com palavras e ações”, reiterou o presidente francês.
“EMOTIVIDADE”
A enviada dos EUA à Otan, Julianne Smith, achou uma justificativa para a provocação de Biden:“emotividade”. “Ele ouviu suas histórias sobre como fugiram da Ucrânia. Naquele momento, acho que foi uma reação humana fundamental às histórias que ele ouviu aquele dia. Os EUA não estão perseguindo uma política de mudança de regime na Rússia, ponto final”, disse ela.
Em Jerusalém, no domingo, coube ao secretário de Estado Blinken fazer de conta que o que Biden disse não foi o que todos ouviram e sim que “como vocês repórteres sabem e nos ouviram dizer repetidamente, não temos uma estratégia de mudança de regime na Rússia – ou em qualquer outro lugar”.
DURMA-SE COM O BARULHO
A declaração de Biden sugerindo derrubar o presidente de uma superpotência nuclear continua causando desassossego, mesmo nos círculos imperais, enquanto analistas polemizam sobre se isso se deu por senilidade, demência ou ato frustro.
O jornal inglês The Times classificou a declaração de Biden de “o erro mais grave de toda a sua carreira política”.
Richard Hass, o chefe do Conselho de Relações Exteriores dos EUA (CFR), um dos mais notórios think tanks do ‘excepcionalismo’ ianque, registrou que os comentários de Biden “tornaram uma situação já difícil ainda mais complexa e perigosa”.
Ele aconselhou os “principais assessores” de Biden a entrarem em contato com seus colegas [russos] e deixarem claro que “os EUA estão prontos para lidar com esse governo russo”.
O conselheiro sênior para a Europa do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), François Heisburgh, aconselhou os líderes norte-americanos a ficarem de boca fechada, acrescentando que “Biden encaixotou a si mesmo e seus aliados” e chamando de “escalada” a referência à remoção de Putin.
No porta-voz oficioso de Pequim, o jornal Global Times, o analista Yang Sheng chamou a diplomacia norte-americana a entender “o quão perigoso pode ser se o líder dos EUA pede abertamente a mudança de regime de outra grande potência nuclear e membro permanente do Conselho de Segurança da ONU” e instou a Casa Branca a minimizar a incerteza provocada pelas palavras de Biden.
O The Atlantic advertiu que a declaração de Biden em Varsóvia poderia levar a uma “escalada” na crise na Ucrânia e considerou os remendos feitos pelo Departamento de Estado de “tentativas desajeitadas” de explicação.
CALA BOCA, MAGDA
O Washington Post registrou que “esta declaração [de Biden] foi uma surpresa para os assessores que sabiam que não estava no texto preparado”.
Imediatamente após o discurso de Varsóvia, acrescentou o Post, “funcionários do governo, que há muito se concentram em não pedir uma mudança de regime na Rússia, correram para esclarecer as observações de Biden”.
No The Wall Street Journal, o jornalista James Freeman advertiu que “algumas questões são importantes demais para serem deixadas para Joe Biden sem um pedaço de papel”.
“Enquanto avaliamos as possíveis consequências, no contexto da crise internacional, o senhor Biden deve falar o mínimo possível em público”, aconselhou.
Em episódio anterior, também durante a visita à Polônia, quando Biden se reuniu com paraquedistas americanos em uma base dos EUA em Rzeszow, ele surpreendeu a tropa sinalizando que em breve estariam lutando na Ucrânia.
“‘Vocês verão quando chegarem lá (e alguns de vocês já estiveram lá) … mulheres, jovens, em pé na frente de um tanque maldito.’ O serviço de imprensa da Casa Branca, forçado a consertar o desastre, explicou que militares americanos não são enviados para lutar. Não dê atenção ao velho, ele é apenas o presidente”, ironizou The New York Post na semana passada.
FIXAÇÃO EM INSULTOS
A fixação de Biden em insultar o presidente de outra nação, por não se dobrar aos desígnios de Washingon, aparenta estar se agravando.
“Um chefe de Estado deve permanecer civilizado. E, claro, todas as vezes, esses insultos pessoais estreitam a janela de oportunidade para nosso relacionamento bilateral sob o atual governo [dos EUA]”, disse Peskov, assinalando que o próprio histórico de traficante de guerra de Biden não lhe dá o direito de criticar ninguém.
“Esta retórica do chefe de um país cujas bombas mataram centenas de milhares de pessoas parece inaceitável e imperdoável. Afinal, ele (Joe Biden) é o homem que exigiu, ao falar na televisão do seu país, que a Iugoslávia fosse bombardeada. Exatamente, bombardeios à Iugoslávia. Exigiu que se matassem pessoas”, acrescentou Peskov.
Por sua vez, o chefe do Comitê de Assuntos Internacionais da Duma Russa, Leonid Slutsky , disse que “a retórica de Biden é inaceitável para um líder mundial. Nenhum dos presidentes dos Estados Unidos se permitiu tais ataques. Realmente beira à clínica”.
FULANIZAÇÃO, NÃO
A debandada que se seguiu ao comentário de Biden em Varsóvia é revelador de que, sob a fachada de ‘unidade contra os russos malvados’, são muitas as contradições.
“Como as medidas de seu governo, como sanções e isolamento contra a Rússia, não são tão eficazes quanto ele esperava, e ao expressar extrema hostilidade em relação a Putin em uma ocasião pública internacional, Biden está tornando as tensões EUA-Rússia pessoais, e isso também aumentou as dificuldades em consertar laços com a Rússia”, afirmou Lü Xiang, pesquisador da Academia Chinesa de Ciências Sociais.
“Os EUA continuam chamando a exigência da Rússia de desnazificar a Ucrânia de mentira, mas não podem explicar por que o povo russo apoia fortemente seu presidente e governo. Eles viram russos étnicos no leste da Ucrânia serem mortos por forças militares ucranianas como o Batalhão Azov por anos, e o Ocidente fez vista grossa para isso e ignora a indignação dos russos. Isso pode explicar por que a maioria dos russos apoia Putin, mesmo que esteja sofrendo sanções iniciadas pelo Ocidente”, assinalou Lü.
PESQUISAS FALAM
Enquanto as pesquisas na Rússia dão 79% de aprovação ao presidente Putin, do outro lado do Pacífico, Biden está em recorde de baixa – 40% -, segundo pesquisa da NBC News, uma das muitas que vêm registrando o fenômeno. As eleições parlamentares intermediárias nos EUA serão em novembro.
Para 71% dos entrevistados, a nação está indo no caminho errado. 62% disseram que a renda familiar está ficando defasada do custo de vida. Na economia, só 33% aprovam.
83% disseram estar preocupados que a guerra esteja aumentando o custo de bens e serviços como gasolina; 82 % disseram estar preocupados que a guerra envolva armas nucleares; e 74% disseram estar preocupados que os EUA enviem tropas de combate para lutar na Ucrânia.
A enquete da NBC News foi realizada de 18 a 22 de março com 1.000 adultos, com uma margem de erro de mais ou menos 3,5 pontos percentuais.