“O que nós estamos assistindo agora é uma tentativa de se apropriar do gasto público. Isso é um verdadeiro despropósito, uma falta de sensibilidade completa em relação à situação das pessoas”, denunciou o economista Luiz Gonzaga Belluzzo
O economista Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário do Ministério da Fazenda e professor da Unicamp, fez duras críticas à gestão econômica do governo Bolsonaro, ao avaliar o momento atual da economia brasileira. “É uma falta de sensibilidade completa em relação à situação das pessoas”, criticou o economista, afirmando que o ministro da Economia, Paulo Guedes, “propõe regras que são inadequadas para gerir a economia. Ele vive na completa fantasia”.
“O que nós estamos assistindo agora é uma tentativa de se apropriar do gasto público, como o caso das emendas de relator. Nunca vi uma coisa tão absurda, num momento em que nós temos 20% das famílias submetidas à fome”, disse Beluzzo, citando reportagens “com depoimentos de famílias, de crianças que desmaiam de fome na classe”. “Na verdade, num momento como este, nós estamos discutindo como é que nós vamos pagar as emendas de relator em cima de teto de gastos”, ressaltou, em entrevista à Globo News, na quinta-feira (18).
GUEDES ESTÁ NO MUNDO DA FANTASIA
“Isso é um verdadeiro despropósito, de uma falta de sensibilidade completa em relação à situação das pessoas. Quando eu ouço o ministro Paulo Guedes falando, eu tenho impressão de que nós estamos no mundo da completa fantasia. Não só as regras que ele propõe são inadequadas para gerir a economia, para administrar, e para administrar em nome das pessoas. Não é gastar à toa, é focalizar o gasto, é na verdade dirigir o gasto para quem precisa, o Estado tem esse poder. Nas relações com o setor privado, o intermediário disso é o sistema bancário, e a política monetária na verdade é que impulsiona essa disposição dos bancos ou não de emprestar, de gerar dinheiro, etc”, considerou.
Durante a entrevista, Belluzzo defendeu que a prioridade do Brasil é o combate à fome. Segundo o professor da Unicamp, a regra constitucional do teto de gastos (EC 95 de 2016) está aprisionando esse debate. Em sua opinião, existem esses “mistérios quase religiosos da economia, entre os quais está o teto de gastos”.
“O teto de gastos supõe que o dinheiro está numa caixinha, ou está num cofre, e que as pessoas vão lá, os pagadores de impostos colocam dinheiro e os beneficiários do gasto público recebem dinheiro. Isto é uma visão, eu diria, tosca, primitiva, inconsequente de como funciona a criação monetária, a relação entre política monetária e política fiscal numa economia capitalista. Aliás o capitalismo, tão criticado, criou instituições e formas de gestão monetária que escapam completamente a essa visão, digamos, um pouco incompleta, para ser gentil, a respeito de como funciona a economia”, disse Belluzzo.
SÃO OS GASTOS QUE CRIAM A RENDA, NÃO O INVERSO
O economista destacou que “antes do gasto não há pagamento de imposto, porque para você ter o pagamento de imposto é preciso que você tenha renda, e a renda nasce do gasto, do gasto das pessoas. Se eu fizesse um acordo com os meus vizinhos, por exemplo, de não comprar nada dos estabelecimentos em volta da minha casa, esses estabelecimentos não iam pedir às indústrias que lhe fornecem os bens, e essas indústrias sem a demanda desses estabelecimentos comerciais também não demandariam trabalhadores, não demandariam insumos, não demandariam equipamentos, etc., e a economia feneceria”.
“Isto é uma coisa simples. Isto é como funciona a relação gasto/renda numa economia de mercado monetária capitalista. Eu quando ouço os economistas mais conservadores, eu fico pasmo de ver que eles estão presos a visões que são absolutamente inadequadas para o funcionamento de uma economia capitalista”, denunciou.
“No debate público o teto de gastos virou um dogma, as pessoas não conseguem se livrar dele, porque isso corresponde no fundo à economia doméstica”, afirmou Beluzzo. “Ou seja, alguém tem uma determinada renda que está depositada no banco, usa seu pix para pagar suas dívidas, seus compromissos. Ele usa o que tem no banco. Não é verdade para o conjunto da economia, porque o Estado tem essa liberdade, essa capacidade [de emissão], em uma situação de necessidade”, comparou Beluzzo.
“Quando se define um Orçamento, define a prioridade dos gastos, você não está definindo uma caixinha, um pote. O Orçamento antecipa o gasto, nessa antecipação do gasto ele está antecipando também a formação da renda. Isso tudo é ex ante, você não está dizendo que você tem aqueles recursos. Eles vão ser criados ao longo do tempo. Na medida em que eles vão sendo criados eles vão se incorporando ao Orçamento, e vão realizando o que o Orçamento está prevendo”, explicou o economista.
ROOSEVELT MUDOU DE OPINIÃO QUANDO VIU A GRAVIDADE DA CRISE
“Agora, para que o Orçamento tenha validade, capacidade de realizar aquilo que foi antecipado, de acordo com o que a sociedade supostamente definiu, é preciso que você tenha a formação da renda”, afirmou o economista. “No geral as pessoas acham primeiro que você tem a renda depois você gasta. Não! Do ponto de vista macroeconômico, do conjunto da economia, primeiro você gasta para depois você formar a renda”, assinalou Beluzzo.
Ao reforçar que o Estado tem capacidade de gerar recursos no combate à fome, Belluzzo citou o New Deal de Franklin Roosevelt – presidente dos Estados Unidos na década de 30. “Foi uma reviravolta extraordinária na concepção dele. Quando Roosevelt assumiu tinha uma visão, digamos, semelhante a esta do teto de gasto, e quando ele se deparou com a situação de penúria, de fome, do povo americano, ele recorreu aos ensinamentos do Harry Hopkins, que era um assessor dele muito preocupado com a questão social, e ele desencadeou um programa de regras e prioridades para combater o desespero de 25% de desemprego nos Estados Unidos”, descreveu.
Beluzzo citou que essa situação de penúria no pós-depressão, que ocorreu em vários países, levou ao poder Hitler. “Na Alemanha, o Hitler assumiu por conta do desespero, eram 40% de desempregados, as pessoas estavam comendo cachorro, imperava a fome. Isso acaba destravando as resistências das pessoas e pode conduzir a situações desagradáveis”. Para o economista, a situação no Brasil é grave e “o teto de gastos aqui é um mito, é inacreditável, e as pessoas repetem, tem muita semelhança com a crença, com a religião, não está fundamentado na análise, na história”.