O ex-guerrilheiro e general sandinista Hugo Torres Jiménez faleceu neste sábado (12) na Nicarágua, aos 73 anos, como preso político desde junho de 2021 do governo de Daniel Ortega e de sua esposa Rosario Murillo.
Antecipando-se às eleições daquele ano, o regime enviou ao cárcere todos os que ousassem questionar as fraudulentas eleições presidenciais. Assim foram parar na cela os sete candidatos oposicionistas, bem como dezenas de lideranças estudantis, camponesas e jornalistas.
O heroico combatente, que chegou a libertar o próprio Ortega – seu atual carrasco – das mãos da ditadura de Somoza, encontrava-se detido sem sequer ser julgado e nem haver data de audiência. Para piorar, foi jogado em El Chipote, considerado um centro de tortura por organizações de direitos humanos, de onde foi retirado em estado grave há cerca de dois meses.
“A Nicarágua vive hoje um estado policial e repressivo, um estado de sítio de fato, onde não há segurança para ninguém. O estado de terror em que vivemos é o estado que Ortega quer que prevaleça”, denunciou Hugo Torres, pouco antes de ser detido.
O banho de sangue promovido pela ação de policiais e paramilitares contra os protestos sociais de 2018 já deixou 328 mortos, mais de mil feridos, 1.600 detidos e fez com que mais de 100 mil pessoas migrassem ou se exilassem, conforme o último levantamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Atualizados, os números podem ser ainda maiores.
“ONDE ESTÁ HUGO TORRES?”
Ativistas de direitos humanos vinham alertando para o agravamento das condições de saúde do combatente, do qual se desconhecia o real paradeiro. “Onde está Hugo Torres? O levaram doente de El Chipote”, havia denunciado Vilma Núñez, presidenta do Centro Nicaraguense de Direitos Humanos (Cenidh).
Para o defensor de direitos humanos, Gonzalo Carrión, “toda a morte de uma pessoa sob custódia dos carcereiros pertence àqueles que a mantêm na prisão”. “Há uma responsabilidade da Direção de Assistência Judiciária de El Chipote, há uma responsabilidade do Estado, da Polícia Nacional e daqueles que ordenaram a repressão. É uma responsabilidade direta do Estado e de Daniel Ortega”, sublinhou.
Carrión assinalou que foram violados os direitos de Hugo Torres à vida, à saúde, à liberdade e à integridade pessoal. “Esta é uma privação de forma arbitrária, inconstitucional e em violação de todos os seus direitos. A responsabilidade do Estado é enorme porque quem a guarda tem a responsabilidade de garantir a saúde e a segurança pessoal”, argumentou o defensor de direitos humanos.
A sua detenção completamente ilegal e arbitrária foi feita com um enorme aparato policial no qual inclusive se utilizaram drones. “Arrisquei a vida para tirar Ortega da cadeia, mas são assim as voltas da vida: quem um dia abraçou os princípios hoje os traiu”, resumiu, com tom firme, o líder guerrilheiro, após receber a acusação de “traidor da pátria”, a mesma pela qual lutou toda a sua vida.
“O fato é que Hugo Torres chegou bem na prisão e começou a apresentar problemas de saúde no final do ano. A partir de então, o regime ficou durante todo o tempo calado, não comunicando sequer para onde tinha enviado o prisioneiro”, recordou Maria Mercedes Salgado, ex-diplomata do governo da Revolução Popular Sandinista no Brasil e doutoranda em Sociologia da Universidade de São Paulo (USP). Mercedes lembrou que o comandante foi um destacado líder do antigo Movimento de Renovação Sandinista (MRS), atual militante da União Democrática Renovadora (Unamos) e que seu exemplo de bravura e coragem permanecerão vivos, estampando a falta de limites de Ortega.
A comandante guerrilheira Mónica Baltodano, histórica liderança da FSLN, ex-deputada da Assembleia Nacional e dirigente do Movimento Resgate do Sandinismo ressaltou que a saúde de Torres se agravou com o encarceramento e que seus familiares denunciaram que desde dezembro desconheciam seu paradeiro e não haviam podido visitá-lo. “Ele passou mais de dez dias em estado grave e, sem que pudesse receber a condição adequada, já saiu da cela quase em estado de inatividade. Não houve uma única palavra de informação da Polícia, de seus carcereiros”, relatou.
Em artigo no jornal nicaraguense O Confidencial, Baltodano escreveu que “Hugo Torres foi retirado da cela que dividia com outros prisioneiros em El Chipote; que nas últimas semanas ele havia adoecido rapidamente e que seus companheiros tiveram que ajudá-lo várias vezes, pois, devido ao grau de inchaço nas pernas, mal conseguia se mover sozinho”. “Ele foi tratado por médicos da prisão, mas eles não conseguiram aliviar sua situação. Naquele dia, Hugo sofreu um longo desmaio. Então foi levado de sua cela para um destino desconhecido”, denunciou.
TRAJETÓRIA EXEMPLAR
Hugo Torres se somou à Frente Sandinista de Libertação Nacional nos anos 70 e comandou a operação político-militar “Dezembro Vitorioso” que, em 1974, estampou as atrocidades do governo pró-EUA da família Somoza, projetou a FSLN para o mundo e conseguiu a libertação de vários presos políticos da ditadura, entre eles Daniel Ortega. Posteriormente, teve participação destacada na segunda operação político-militar da FSLN, a “Operação Chanchera”, em agosto de 1978, libertando inúmeros presos políticos, como o já falecido dirigente Tomás Borge.
Acima de tudo, Torres deixou intacta a sua figura humilde de combatente. Recorda que viveu em León, a cinco casas do poeta Rigoberto López Pérez, que justiçou em 1956 o ditador Anastasio Somoza Garcia. Marchou ao lado do lendário comandante Carlos Fonseca, sobreviveu à brutalidade da repressão que matou mais de três mil camponeses – deixando a guerrilha praticamente sem colaboradores -, passou inúmeros dias sem comer, recorrendo à escassez de tubérculos, cascas de banana e carne de macaco, e ao padecimento de leishmaniose, a temível lepra das montanhas.
“Nunca imaginei que na minha idade iria estar lutando de maneira cívica e pacífica contra uma nova ditadura. A ditadura de Somoza não logrou encarcerar-me, lutamos duro, morreram muitos companheiros. Era outro espaço, outros tempos e outro contexto, hoje a luta é pacífica e isso nos dá uma grande fortaleza”, recordou Hugo Torres, conclamando os nicaraguenses a persistir.
Sua trajetória é repleta de dignidade e heroísmo, enfatizou Mónica Baltodano. “Hugo Torres nunca se submeteu ao poder e quando Ortega assumiu o governo não aceitou cargos, benefícios ou privilégios. Foi o único ex-general do Exército Nacional atuante na continuidade da luta pela democracia na Nicarágua e, com seu exemplo, desde as masmorras do regime, o ex-chefe da Direção Política do Exército Popular Sandinista (EPS), apontou o rumo a ser seguido por seus ex-companheiros de armas e por todos aqueles que resistem a se render e viver como escravos”.
Para o Comitê de Solidariedade à Nicarágua #LibertadALosPresosPolíticos, as condições da morte de Torres devem servir para potencializar as ações pela democracia e isolar o governo de Ortega e Murillo. “Hoje mais do que nunca é urgente nos mobilizarmos para salvar a vida das pessoas presas políticas na Nicarágua”, conclui a nota.
LEONARDO WEXELL SEVERO