O fascista José Antonio Kast, com 58,1% dos votos, tornou-se presidente eleito do Chile após derrotar no segundo turno das eleições deste domingo (14) a comunista Jeannette Jara, ex-ministra do Trabalho e candidata do atual governo de Gabriel Boric, que obteve 41,8%. Ele assumirá o cargo em 11 de março de 2026 para um mandato de quatro anos.
Kast obteve 7,2 milhões de votos, dois milhões a mais que Jara, vencendo em todas as regiões do país, em uma campanha em que a extrema-direita conseguiu emplacar que o principal problema do Chile é a falta de segurança pública e a imigração – e não o desenvolvimento econômico, o rompimento com o neoliberalismo e a especulação, a redução da desigualdade e o resgate de direitos. Sob o recém instituído voto obrigatório, o comparecimento às urnas foi de 85%.
Filho de um imigrante alemão filiado ao Partido Nazista, irmão de um ex-ministro de Pinochet, católico fundamentalista e ex-deputado, Kast já disputara a presidência duas vezes antes, tendo perdido no segundo turno da eleição passada para o então candidato da Frente Ampla, Boric.
O resultado deste domingo confirma o que ficara patente no primeiro turno, quando Jara não conseguira alcançar o teto de aprovação de Boric de 30%, enquanto os três candidatos de direita somados obtinham mais de 50% dos votos e Kast ficava atrás dela por estreita margem.
Kast recebeu imediatamente a adesão dos dois outros candidatos de raíz no pinochetismo, enquanto o “centrista antissistema” Franco Parisi, que ficou em terceiro, optou por recomendar o voto em branco, depois de fazer campanha “nem fascistas nem comunistas”.
Além disso, desde 2006, a coalizão no poder não consegue fazer seu sucessor, com o governo alternando entre a centro-esquerda e a direita tradicional, o que por si só evidencia o impasse em que o Chile se encontra.
Já Kast asseverou em sua campanha que “o país está desmoronando”. Na descrição do El País, “por trás de um vidro à prova de balas, o agora eleito prometeu ‘deportar centenas de milhares de migrantes irregulares, selar a fronteira norte e declarar estado de emergência’”.
Até aqui, a civilidade ainda reina no Chile. O presidente Boric telefonou a Kast e combinaram um encontro nesta segunda-feira no Palácio de La Moneda. Jara também reconheceu a derrota e telefonou a Kast. Em discurso aos seus apoiadores, ela prometeu uma oposição “proativa” em defesa dos direitos e da democracia.
Também o presidente brasileiro Lula cumprimentou o eleito.
RESTAURAR “A LEI E A ORDEM“
Em seu discurso para uma multidão em Santiago, Kast atribuiu sua vitória “a Deus” e prometeu “restaurar a lei, o respeito à lei em todas as regiões, sem exceções, sem privilégios”.
“O Chile precisa de ordem, ordem nas ruas, ordem no Estado. (…) Ordem significa que quem violar a lei sofrerá todo o peso da lei. Já falamos de um cadastro único de vândalos. Se alguém quebrar ou destruir o que não lhe pertence, não receberá nenhum benefício.”
Ele fez questão de ameaçar diretamente a juventude. “Se um jovem destruir uma escola, se um jovem ameaçar um professor, se um jovem incendiar um ônibus, isso não ficará impune. Ele será repreendido, como convém, mas pode esquecer qualquer benefício do Estado. E se o jovem não assumir a responsabilidade, seus pais terão que responder pelos danos causados pelos filhos”, afirmou.
Em 2019, o Chile vivera a maior mobilização desde o fim da ditadura Pinochet, o que levou à eleição de Boric pela Frente Ampla, cujo governo não teve a capacidade de cumprir seus compromissos e atender às expectativas de mudança. O primeiro deles, coesionar o país em torno de uma constituição que derrogasse a deixada pelo ditador e colocasse o país sob novas bases, tendo se perdido sob a prevalência do sectarismo e identitarismo.
O que levou à derrota no plebiscito da nova constituição por 62% a 38%, a que se seguiu o fracasso da extrema-direita de aprovar uma carta pinochetista repaginada, também rechaçada nas urnas por 56%.
Depois de fazer do combate ao crime e a imigração o trampolim para sua eleição, no discurso de vitória Kast buscou diminuir as expectativas, na análise do La Jornada, observando que, embora pretenda cumprir suas promessas, não será fácil deter o crime organizado nem a imigração ilegal, que abarca 330 mil indocumentados.
MODESTO CRESCIMENTO DE 1,8% NO GOVERNO BORIC
Durante o governo Boric, houve um crescimento do PIB modesto, de 1,8% em média e de 2,4% em 2025; o desemprego está em 8,4% (26,2% de emprego informal); a taxa de pobreza é de 6,2%, segundo dados oficiais de 2022; e a inflação anual é de 3,4% e apresenta tendência de queda.
Quanto à taxa de homicídios – apesar da percepção majoritária na sociedade chilena – é de 6 por 100.000 habitantes, uma das mais baixas da América Latina, após um pico de 6,7 em 2022 e 6,3 em 2023.
O El País descreveu como a ansiedade gerada no Chile pela imigração – principalmente venezuelanos – e pelos crimes violentos levou Kast “até as portas do palácio presidencial”.
Segundo a publicação, “dados e depoimentos entram em choque com a ideia de que o país está em uma crise profunda” na segurança. “Quem trabalha na polícia e em outros serviços de segurança diz que, embora o crime tenha aumentado e se tornado mais violento, isso ocorreu a partir de uma base muito baixa”.
FIGURA CARIMBADA EM MIAMI E MADRI
Na eleição que perdeu para Boric, Kast – já sob a recém fundada legenda do Partido Republicano, que se apresentava como uma “nova direita” – defendeu, entre outras coisas, a redução do tamanho do Estado, a eliminação do Ministério da Mulher e a revogação da lei sobre o aborto em três circunstâncias específicas (gravidez resultante de estupro, risco de vida para a gestante e diagnóstico de anencefalia fetal – ausência de cérebro)
Nos anos seguintes, foi uma figurinha carimbada em todos os convescotes da extrema-direita mundo afora, como a Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC) nos EUA e a convenção do Vox em Madri. Também desenvolveu relações com a primeira-ministra fascista italiana, Giorgia Meloni, o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, e com o presidente da motosserra, o argentino Javier Milei.
Quanto ao nazismo desde o berço, documentos descobertos no Arquivo Federal da Alemanha comprovaram que o pai de Kast foi filiado ao Partido Nazista a partir de 1942, como revelou o jornalista teuto-chileno Mauricio Weibel. História que, convenientemente, o presidente eleito costuma tentar driblar.
Segundo analistas, no segundo turno Kast literalmente escondeu suas opiniões sobre qualquer tema polêmico, buscando evitar o desastre da eleição anterior, em que o voto dos jovens e das mulheres decidiu, contra ele, a parada.
Agora, de acordo com o Reitor da Universidade do Humanismo Cristão, Álvaro Ramis, Kast “optou por uma estratégia simples, eficaz e desonesta: falar o mínimo possível sobre o que realmente pensa. Sua evasão calculada nos debates, suas respostas ambíguas e seus silêncios orquestrados não refletem improvisação, mas sim uma agenda oculta.”
Não se tratam – ele acrescentou – de palavras vazias, mas de uma mensagem cuidadosamente elaborada: tudo o que possa provocar rejeição entre os eleitores moderados é escondido por trás de uma retórica de “ordem”, “gestão” e “emergência”.
Em sua primeira campanha presidencial de 2017, Kast asseverava que “se Pinochet fosse vivo, teria o voto dele”.
NEOPINOCHETISMO
Para Carlos Ruiz Encina, sociólogo e doutor em Estudos Latino-Americanos pela Universidade do Chile, a direita se aproveitou do vácuo político causado pela incapacidade do governo Boric de atender às demandas dos protestos de 2019, o que explicaria a “transição do pós-pinochetismo para uma espécie de neopinochetismo”.
“A sociedade chilena nunca deixou de desejar transformações; mas este governo foi incapaz de oferecer um caminho para realizar as mudanças que prometeu e enfrentar as dificuldades que encontrou”, afirma.
Manuel Antonio Garretón, sociólogo e laureado com o Prêmio Nacional de Ciências Humanas e Sociais, afirma que “todos sabem que o que Kast tem em mente é algo mais próximo de como era a sociedade chilena durante a era Pinochet; no momento, não o vejo ignorando a democracia, mas ele vem gerando críticas às instituições que lhe permitiriam fazer algo assim em algum momento”.
Ele também alertou que uma parcela significativa da população — os 5 milhões que são obrigados a votar e que só se envolveram recentemente na política — também rejeita as instituições. Kast, apontou, ganhou força ao invocar “uma linguagem e um projeto que são fundamentalmente revanchistas e focados em punir traficantes de drogas, migrantes e pessoas em situação de trabalho precário; punir todos os setores que enfrentam dificuldades significativas nesta sociedade que foi criada”.
São setores que “não possuem uma ideologia de direita, mas sim uma enorme despolitização e rejeição, aos quais ele dirige um discurso: ‘nós trazemos a paz para vocês e vocês podem fazer o que quiserem pacificamente’”.
OPOSIÇÃO PROATIVA, PROMETE JARA
Em seu discurso aos seus apoiadores após a derrota eleitoral, Jeannette Jara anunciou que a centro-esquerda fará uma oposição proativa, mas firme, em defesa dos direitos sociais e da democracia.
“O caminho da unidade é o único que vale a pena. Temos uma força política, social e cultural que devemos nutrir, consolidar e desenvolver. Esses são os nossos desafios. Precisamos saber como continuar trabalhando, como nos reerguer”, ela conclamou.
Ela prosseguiu: “Não há espaço para desânimo. Aos milhões que votaram em mim, peço que transformem esta noite em um desafio. Que o trabalho, a justiça social, as instituições democráticas e o respeito aos direitos humanos continuem sendo os princípios que guiam nosso progresso como país, e não nosso retrocesso.”
Insistiu que “as conquistas alcançadas, o aumento das pensões, o ensino superior gratuito, a semana de trabalho de 40 horas (…) os direitos das mulheres, a liberdade de amar e de decidir, não podem ser postos em risco. Tudo isso deve ser protegido; custou-nos muito caro.”
Prometeu “uma oposição proativa e exigente” e “firmeza na proteção do que foi conquistado” e chamou a agora oposição a “refletir profundamente sobre os fatores que levaram a este significado”.
“Nos próximos dias, nosso dever é manter vivo o projeto que representamos, continuar a alimentá-lo com ideias, trabalho e dedicação, e abri-lo a setores que não se sentem representados por nós.”
Na campanha ela também abordou os temas da imigração e do combate à criminalidade.
FAZER AS PERGUNTAS DIFÍCEIS
“Devemos fazer as perguntas difíceis, mesmo que dolorosas, para que possamos ser novamente uma alternativa viável para o Chile. Para que o Chile possa, mais uma vez, escolher liderar seu próprio desenvolvimento”.
Como ministra do Trabalho, foi Jara a responsável pelas principais conquistas no atribulado governo Boric, como o aumento histórico do salário mínimo, a lei da semana de trabalho de 40 horas que reduz gradualmente a jornada semanal e a reforma da Previdência , que obteve apoio da tradicional direita no Congresso e prevê um aumento nas aposentadorias.
Antes havia sido Subsecretária da Previdência Social por dois anos no segundo governo da socialista Michelle Bachelet (2014-2018).
Em sua campanha, Jara chamou a fazer o crescimento econômico “chegar à mesa de todos os chilenos”. Também propôs aumentar o salário mínimo para 750.000 pesos (R$ 4425), implementar um sistema de Consumo Vital de Energia Elétrica (CEV) para reduzir as contas de luz e zerar o IVA sobre remédios.
Ela cresceu em El Cortijo , um bairro do município de Conchalí, ao norte de Santiago. “Não venho da elite, mas de um Chile onde as pessoas acordam cedo para trabalhar”, tornou-se seu lema. É filiada ao PC chileno desde os 14 anos de idade.
Sob a rejeição de mais de 60% a Boric, Jara buscou se distanciar do atual governo, embora buscando capitalizar suas realizações à frente do Ministério do Trabalho, reiterando “não representar a continuidade”. A que Kast respondeu dizendo que “Jeannette Jara é Gabriel Boric. Com um tom de voz diferente, mas é o mesmo projeto político”.
Nesse quadro complexo e, diante do alarido anticomunista, Jara buscou tranquilizar o eleitorado mais moderado, assinalando sua disposição de se licenciar do PC chileno em caso de vitória.
UNIDADE, EM VEZ DE ÓDIO
Ela percorreu o Chile de norte a sul e angariou o apoio da ex-presidente Bachelet, que a descreveu como “uma mulher responsável e dedicada às políticas públicas”, e de Luisa Durán, esposa do ex-presidente socialista Ricardo Lagos (2000-2006), que se aposentou da vida pública em meados de 2014. Também contou com o apoio de vários prefeitos populares, incluindo Tomás Vodanovic e Matías Toledo, que representam Maipú e Puente Alto, os municípios com maior número de eleitores no país.
Sua campanha incluía ex-ministros da Concertación, a coalizão de centro-esquerda que governou o Chile entre 1990 e 2010. Ela também procurou falar aos eleitores de Franco Parisi, líder do Partido Popular (PDG), que ficou em terceiro lugar com 19% dos votos. Ela enfatizou que a eleição deste domingo, 14 de dezembro, apresenta duas visões muito diferentes para o país: “Eu acredito em uma nação onde nós, em vez de nos odiarmos, nos unimos.”











