9
O pronunciamento do deputado Oswaldo Lima Filho, no dia 3 de abril de 1964, foi, com certeza, o discurso mais corajoso e importante da resistência ao golpe de Estado no parlamento – somente muitos anos depois ouviu-se, no mesmo recinto, algo comparável ao libelo do ministro da Agricultura de Jango, ou de alguns dos aparteantes. É verdade que, entre os últimos, além dos gigantes, houve também alguns micróbios. Vejamos um dos primeiros.
Paulo Mincarone (PTB-RS): “É oportuno agora perguntar, Sr. Deputado, ao Presidente da União Democrática Nacional, deputado Bilac Pinto, e ao deputado Herbert Levy, que por diversas vezes denunciaram desta tribuna à Nação que o Presidente da República estava distribuindo armas aos camponeses, aos sindicatos, ao povo: ‘mas que armas estas?’. Foram aquelas que eles usaram contra o Poder Constitucional, contra o Presidente da República, destituindo-o? Foram as armas que garantiram rasgarem eles vergonhosamente a Constituição, como fizeram? Veja V. Ex.ª que nunca, nos últimos anos, a Nação viveu na sua plenitude dias de tanta democracia, de tanta liberdade e de tanto respeito aos cidadãos, à pessoa humana. E agora, Deputado, os homens da ‘eterna vigilância’ não têm coragem cívica de ocuparem este microfone e de condenarem o que foi feito aqui, na calada da madrugada, quando o Presidente, ainda no território nacional, como permanece até hoje, foi declarado ausente. Os sábios, os doutos da União Democrática Nacional, que nesta casa são tantos e que a qualquer avanço à Constituição ou às leis são os primeiros a se levantarem, sua voz protestando contra aquilo que nem sequer passou pela cabeça do Presidente João Goulart – infringir a lei ou a Constituição – agora eles silenciam porque convém a eles, porque está dentro do gabarito que eles desejavam. Era isso que eles desejavam, apear do poder um homem, através dos processos mais escusos, mais ilícitos, mais antidemocráticos. Aqui fica, Deputado, o registro desta parte. Nós queremos saber onde estão as armas dos sindicatos, dos camponeses, do povo, enfim, distribuídas pelo Presidente João Goulart. As armas, sim, eles as usaram para rasgar a Constituição do Brasil.”
A história de que Jango distribuía armas tinha origem na CIA e na embaixada dos EUA – como é evidente pelos documentos norte-americanos desclassificados (embora apenas parcialmente) e já divulgados, inclusive, implícita e evidentemente, o telegrama do secretário de Estado, Dean Rusk, que mencionamos na primeira parte deste texto (v. HP 16/04/2014).
Era essa a justificativa para o golpe e a intervenção no Brasil – como de costume, totalmente falsa. A “defesa da Constituição” era o motivo para se rasgar a Constituição…
A expressão “eterna vigilância” é uma referência ao lema da UDN, desde as campanhas eleitorais derrotadas (por Dutra, em 1945; por Getúlio, em 1950) de Eduardo Gomes à Presidência: “O preço da liberdade é a eterna vigilância” – uma tradução literal do inglês (é parte da natureza, se é que assim se pode chamar uma perversão, do entreguismo que seus sequazes não sejam capazes de elaborar nem mesmo um lema próprio, traduzindo-o diretamente do inglês falado pelos norte-americanos do “Rearmamento Moral” – a que logo aderiu um dos ídolos da UDN, Juarez Távora, candidato à Presidência contra Juscelino).
Lima Filho era católico e insuspeito de simpatias para com o comunismo. Antes de 1964, dentro do PTB, era considerado um moderado. Mas era também um dos homens mais decentes que já estiveram no parlamento e na vida política brasileira. Nesta parte – e na próxima – transcreveremos trechos do seu pronunciamento (e alguns apartes), de acordo com as notas taquigráficas, sem revisão dos oradores, publicadas no “Diário do Congresso Nacional” de 4 de abril de 1964, páginas 2058-2063.
Eis a essência – ou o mais importante:
OSWALDO LIMA FILHO: “Alguns companheiros mal-avisados imaginam que o golpe decorreu de posições radicais do Presidente, apoiando os insubordinados da Marinha que, diga-se de passagem, se levantavam contra um regime obsoleto, do tempo do Império, que impede, como aqui lembrou o deputado Vieira de Melo, que um inferior olhe até com maus olhos para um superior.
“Não se enganem os ingênuos, não se iludam os incautos, a conspiração não é de hoje. Eu a denunciei ao sr. Presidente João Goulart há mais de um ano. Industriais de Pernambuco há mais de seis meses me procuraram para denunciar que militares trafegavam em trajes civis pelo Recife, mês a mês, conspirando, levantando as guarnições, preparando-as para o golpe. Em novembro estava eu em Foz do Iguaçu. Ali fui procurado pelo nosso companheiro do PTB local, que me informava e se propunha a depor em juízo, que o governador Adhemar de Barros mandara ali caminhões com um oficial da Força Pública e que, durante três noites nas barrancas do Rio Paraná, recebiam metralhadoras, que atravessavam e vinham do Paraguai.
“Levei ao conhecimento do Presidente e do Ministro da Guerra. O ministro Carvalho Pinto, insuspeito para testemunhar, conhece essa minha denúncia. Foi verificá-la e dentro de uma semana procurou-me para dizer: ‘Ministro Lima, a sua denúncia é perfeita. Tenho confirmação. Esses oficiais realmente lá estiveram. Tenho os nomes. Adquiriram metralhadoras na calada da noite. Trouxeram-nas do Paraguai, transportaram-nas para São Paulo e as estão distribuindo para todo o Brasil’. Era novembro, senhores, e não houvera reunião dos sargentos com João Goulart; não houvera indisciplina na Marinha.
“Mas não sou eu quem o diz; quem o diz é o ilustre general Olímpio Mourão, comandante da intentona.
“Está aqui a página do crime. Ela não tem nada a ver com a sedição da Marinha. Nada a ver com a acusação de aproximação do Presidente com os comunistas. É aqui o corpo de delito da sedição fascista que se levantou no Brasil. Estão aqui, no jornal O Globo, insuspeitíssimo pela reação, declarações do general Mourão, verbis entre outras: ‘Em janeiro de 1963’ – medite bem a Câmara – …‘em certos momentos da campanha do plebiscito, senti que se iniciava um processo de comunização do País’.
“Vejam bem. Em janeiro. Ninguém falava nisso. A essa época, o nobre deputado Herbert Levy considerava o Presidente João Goulart um modelo de dirigente democrático e a UDN fazia parte do governo parlamentarista.
(…)
“A essa época, nenhuma das acusações e dos protestos que atualmente se levantam estava de pé. A essa época, o rosário, que é a mais cara das nossas lembranças de católico, não estava convertido em instrumento de reação e dos privilégios que se encastelam na ordem social dominante.
O deputado observou em seguida que a questão podia ser resumida na tentativa de impedir o Governo Jango de seguir a tendência de “atender o povo, de corrigir a dominação dos monopólios internacionais no Brasil. E de passagem seja dito aquilo a que já se referia o ‘Washington Post’ há poucos dias: aconselhava um golpe de Estado no Brasil, como solução, à velha maneira, para os nossos problemas”.
Porém, voltemos ao início, quando o deputado Oswaldo Lima Filho retomou a palavra, após o aparte, que transcrevemos, do deputado Paulo Mincarone:
“Penso que a essa altura nenhum dos grandes partidos nacionais sinceramente democráticos esteja acreditando e tentando imaginar-se dono desse golpe. (…) já agora aqueles que, pela sua ingenuidade, pelo seu ódio rancoroso ao ex-Presidente, pela sua entranhada inspiração retrógrada, pelo seu ódio às reformas sociais, pela sua vinculação às velhas estruturas arcaicas, serviram de instrumento e de escudo ao golpe, já agora põem de molho as barbas e temem, porque sobre eles também se levanta o espectro da ditadura, que é o que ameaça este País.
O comentário veio de uma voz no plenário: “Otários”.
Era o deputado Alberto Guerreiro Ramos, baiano que concorreu às eleições pelo PTB do Estado da Guanabara, e um dos intelectuais mais conhecidos do país – na verdade, um dos mais influentes do mundo. Ex-assessor do Presidente Getúlio Vargas, secretário do Grupo Executivo de Amparo à Pequena e Média Indústria da Presidência (grupo depois incorporado ao BNDE), autor de “O Problema Nacional do Brasil”, “A Redução Sociológica”, “Mito e verdade da revolução brasileira” e vários outros livros importantes, era um dos fundadores do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e diretor do seu Departamento de Sociologia.
OSWALDO LIMA FILHO: Na realidade, a Nação brasileira de há muito não tinha outra escolha, tinha de marchar para a solução de seus graves problemas sociais.(…).
O deputado e ministro da Agricultura de Jango passa, em seguida, à denúncia das arbitrariedades: … o governador [de Sergipe] Seixas Dória preso em Alagoas…
Vários: Na Bahia.
OSWALDO LIMA FILHO: Na Bahia. O governador Miguel Arraes, de cuja orientação tanto divergi, eleito com meu apoio, seguramente eleito pela maioria do povo pernambucano, deposto pelo golpe militar imposto à Assembleia e, desgraçadamente, à Assembleia do meu Estado, onde comecei minha vida pública, também violentada, cercada pelos tanques e pelas metralhadoras do general Justino para votar o impeachment, página indecorosa nos anais da Assembleia Legislativa no Palácio Joaquim Nabuco…
Arruda Câmara (PDC-PE): V. Ex.ª me permite um aparte?
Monsenhor Alfredo de Arruda Câmara era um sacerdote católico pernambucano – e um dos parlamentares mais reacionários do Congresso. Sua obra mais conhecida (talvez única) intitulava-se “Contra o Comunismo”. Era chamado de “padre-jagunço” – entre outras peculiaridades, por andar sempre armado.
Esse monsenhor com pouco odor de santidade – mas nomeado Protonotário Apostólico (isto é, membro da Cúria Romana) pelo Papa Pio XII – tinha, ao que se saiba, uma desgraça na vida que lhe tirava o sono: um sobrinho com o mesmo sobrenome, Diógenes de Arruda Câmara, que era, ainda naquela época, logo depois de Prestes, o comunista mais famoso do país.
Em abril de 1964, Arruda Câmara – o comunista, não o padre – estava afastado do PCB, após os acontecimentos que sucederam ao XX Congresso do PCUS. No entanto, em suas “Memórias”, conta Gregório Bezerra (que, além de suas qualidades de caráter, era insuspeito de simpatias por Arruda):
“Quando se deu o golpe, no dia 1º de abril de 1964, eu estava reunido com mais de oitenta militantes do partido e delegados sindicais de Palmares, discutindo algumas medidas práticas imediatas. (…) Para chegar à capital do estado, tive de furar a barreira das tropas do Exército, que já tinham ocupado o posto fiscal de Prazeres. Era de manhã, muito cedo. A cidade de Recife estava calma; fui para casa, a fim de trocar a chapa do jipe e tomar café. Em menos de uma hora, tendo me despedido dos meus familiares, estava pronto para procurar contato com os camaradas do Comitê Estadual. Estranhei a calmaria da cidade. Fui até a redação da Folha do Povo, mas não encontrei nenhum camarada. Perguntei ao porteiro se tinha algum recado para mim: nada. Quando vou saindo, dou de cara com o camarada Diógenes de Arruda Câmara, que diz: “– Vim apresentar-me para a luta. Cumprirei qualquer tarefa que o partido me confiar. Disponham de mim para tudo! “Eu tinha o pé atrás com relação a esse companheiro, conforme contei, mas, diante de sua atitude de homem de partido, passei a respeitá-lo como verdadeiro revolucionário comunista, embora discordando de seus métodos de trabalho”.
No dia 3 de abril, o deputado Oswaldo Lima Filho respondeu ao pedido de aparte do deputado Arruda Câmara (o padre, não o comunista).
OSWALDO LIMA FILHO: Com prazer.
Arruda Câmara: Ouço o discurso de V. Ex.ª com a consideração que sempre votei a V. Ex.ª pelo seu passado, pela sua inteligência e cultura.
OSWALDO LIMA FILHO: Agradeço a V. Ex.ª.
Arruda Câmara: Mas V. Ex.ª comete, nesta hora, uma grave injustiça contra a Assembleia do nosso Estado, legitimamente eleita, como eleito foi o Sr. Miguel Arraes, num pleito livre, dos mais livres que já se verificaram em nossa terra. A Assembleia Estadual de Pernambuco não votaria jamais sob pressão.
OSWALDO LIMA FILHO: Mas votou.
Arruda Câmara: Não votou.
OSWALDO LIMA FILHO: V. Ex.ª não pode negar os fatos.
Arruda Câmara: Votou livremente, com espírito de independência.
Sérgio Magalhães (PTB-GB): Por que não votou antes [do golpe]?
Arruda Câmara: Porque não quis votar. Votou no instante que cumpria votar, como este Congresso não votou nem votará sob pressão de ninguém.
(…)
OSWALDO LIMA FILHO: V. Exa. Sabe o respeito e a consideração que lhe tenho e a amizade que nos une, apesar das diferenças ideológicas que nos separam. Mas indago de V. Ex.ª que processo estranho foi esse de impeachment que se votou em vinte e quatro horas, sem obediência às normas legais, com a Assembleia cercada pelo Exército e ocupada pelas Forças Armadas? Sem audiências das comissões? V. Ex.ª sabe que o processo de impeachment, votado legalmente, leva pelo menos 45 dias, obedecida a tramitação.
Arruda Câmara: Não é essa a prática no Brasil. Vou refrescar a memória de V. Ex.ª. V. Ex.ª se lembra de como foi votado o impeachment do Sr. Carlos Luz e o do Sr. Café Filho? Eu nunca disse que os nobres colegas, naquela feita, votaram sob pressão, apesar de haver tanques e tropas nas ruas e às portas da Câmara.
Esse era um exemplo da dialética de monsenhor Arruda, igualando o “impeachment” – após o marechal Lott ter frustrado, em 11 de novembro de 1955, o golpe de Estado – de dois golpistas que conspiravam para impedir a posse do Presidente constitucionalmente eleito, Juscelino Kubitschek, com o seu oposto: um golpe de Estado para derrubar o Presidente eleito constitucionalmente, João Goulart.
OSWALDO LIMA FILHO: (…) àquela altura o Congresso agia por decisão sua, por maioria absoluta. Assumiu a responsabilidade de seu voto e o fazia para assegurar o mandato do Presidente eleito cuja posse se queria impedir. Agora o que se faz é estabelecer um golpe militar para retirar do poder um Presidente eleito pela maioria da nação e confirmado por 10 milhões de votos, num plebiscito histórico que honrou o País (muito bem, muito bem, aplausos demorados).
Arruda Câmara: Foi tão eleito pelo povo quanto o sr. Café Filho. Os mandatos foram igualmente legítimos.
(…)
OSWALDO LIMA FILHO: V. Ex.ª me interrompeu, agora ouça por obséquio. É preciso que V, Exª responda por todos os crimes do acusado. Sabe V. Ex.ª que o processo de impedimento, quando legal e quando obedecendo às normas legais, termina com o julgamento político? E a esta hora, no Nordeste, no velho presídio para onde se remetiam no passado, há 30 anos, os criminosos dos piores crimes – para lá não se mandou sequer [o cangaceiro] Antônio Silvino, para lá não se mandaram muitos dos criminosos mais célebres do passado, só aqueles criminosos impiedosos eram para lá remetidos -, pois é para essa prisão insalubre da ilha de Fernando de Noronha que se remeteu agora o governador Miguel Arraes e o prefeito Pelópidas Silveira… Pergunto ao nobre deputado Arruda Câmara: isto também é digno para Pernambuco? Ver o seu governador remetido ao presídio dos criminosos mais degradados do Brasil? V. Ex.ª devia corar diante do episódio, porque Pernambuco, que viveu uma vergonha, termina de ter seu governador preso e remetido a um presídio de criminosos degradados! (Palmas prolongadas.)
10
A discussão na Câmara dos Deputados, no dia 3 de abril de 1964, encaminhou-se rapidamente para abordar a repressão, que naquele momento começava a afogar em sangue vários pontos do território nacional, assim como asfixiá-lo no seu conjunto:
OSWALDO LIMA FILHO: Sr. Presidente, falava o ilustre Deputado Monsenhor Arruda Câmara nos episódios de 10 de novembro de 1955. E eu me lembrava, vinham à minha memória, as cenas daquele movimento. Isso representava e representa um opróbrio para os vencedores de hoje, porque, naquela época, o Presidente Carlos Luz, deposto, tinha toda a liberdade e comparecia, no dia seguinte, ao Congresso Nacional para dar a sua palavra; os seus ministros depostos vinham ao Congresso e tinham inteira liberdade de trânsito e de opinião. Não havia prisões e não houve prisões, e o regime se estabeleceu em sua plenitude democrática. O senhor Carlos Lacerda, com garantias asseguradas, se pôs, como sempre, em fuga para a embaixada de Cuba [sob a ditadura de Batista], mas todos os membros do governo deposto eram garantidos e tinham assegurada a sua liberdade. Pois os vencedores de hoje, ainda mal madrugavam no poder, e já recolhiam o ministro da Justiça, cuja prisão eu vi efetuada, como se se tratasse de um criminoso comum (…).
Em 1955 o povo ficou imune. Hoje, onde está o povo? Em São Paulo, 100 líderes sindicais, hoje a imprensa noticia, são presos e recolhidos às enxovias. No Recife há mais de mil presos. A juventude pernambucana – e aqui chamo a atenção de meu ilustre colega de representação [monsenhor Arruda Câmara] – é espingardeada e morta, e o sangue generoso dos estudantes de Pernambuco tinge as ruas do Recife.
Osmar Grafulha (PTB-RS): Devem ser cristãos.
OSWALDO LIMA FILHO: Não compreendo como o espírito cristão, generoso, altivo e bravo do Monsenhor Arruda Câmara possa se comprometer na defesa desse regime hediondo.
Depois de outros aparteantes, ouviu-se a resposta:
Arruda Câmara: A pimenta e a sarna na pele alheia, para V. Exª, são refresco.
OSWALDO LIMA FILHO: Isto, nobre colega, é ensinamento evangélico (risos) sobre o qual proponho que nós, do Congresso Nacional de agora, passemos a meditar. O meu caro e prezado amigo, Monsenhor Arruda Câmara, protonotário apostólico de S. Santidade, o Papa, sacerdote a quem muitas vezes ouvi comovido, no púlpito, representante de Cristo – que disse que a quem se batesse numa face se oferecesse a outra -, vem para aqui e diz que pimenta nos olhos dos outros é refresco.
Arruda Câmara: Quem diz não sou eu, quem diz é o povo, e no passado, V. Ex.ªs achariam pouco, quando se tratava do sr. Café Filho.
OSWALDO LIMA FILHO: É, senhores, o triste, o desgraçado sinal dos tempos! Onde está o espírito evangélico de V. Ex.ª? V. Ex.ª, a esta hora, devia estar nesta tribuna, pedindo, para este país, paz, tranquilidade, concórdia (muito bem, palmas). Perdoe-me, Monsenhor Arruda Câmara, mas V. Ex.ª envergonha a um católico como eu.
Arruda Câmara: Protesto!
OSWALDO LIMA FILHO: V. Ex.ª deveria estar ocupando aquela tribuna para reclamar aos poderosos do Brasil que pensassem no povo, que pensassem nas crianças de Governador Valadares, porque este é o fato mais nefando desse golpe dos banqueiros, que se aliaram hoje – os nacionais e os associados do Chase Manhattan, que se locupletam e se servem da economia da Nação -, os banqueiros e os grandes trustes, para este golpe. Quais foram as primeiras vítimas desse golpe? Quem primeiro morreu?
A resposta veio do líder do PTB.
Doutel de Andrade: Foram as crianças de Governador Valadares.
Na tarde do dia 30 de março de 1964, jagunços chefiados por latifundiários – e armados pelo governador da Guanabara, Carlos Lacerda (os latifundiários, até então, consideravam o governador de Minas, Magalhães Pinto, um vacilante) – atacaram com bombas e balas a sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Governador Valadares, que funcionava na “Sapataria Popular”, uma pequena loja de sapateiro que era o sustento do presidente do Sindicato, Francisco Raimundo da Paixão, um camponês sem terra, conhecido como Chicão.
Posteriormente, o chefe dos jagunços, orgulhando-se de atirar em pessoas desarmadas – inclusive crianças –, diria que “a revolução que estava programada para o dia 1º de abril, começou dois dias antes em Governador Valadares” (cf. Ana Carneiro e Marta Cioccari, “Retrato da Repressão Política no Campo – Brasil 1962-1985”, MDA e SDH, Brasília, 2010, p. 202).
Sucintamente: em fevereiro de 1964, o ministro da Agricultura, Oswaldo Lima Filho, estivera em Governador Valadares e comunicara aos trabalhadores que o governo concordava com a proposta do Sindicato de realizar um projeto de reforma agrária na fazenda que pertencia ao Ministério – e que se achava abandonada – naquele município.
Nenhuma propriedade privada seria, portanto, atingida. Pelo contrário, como disse e repetiu publicamente o presidente do Sindicato, Chicão – inclusive no programa da rádio oficial de Governador Valadares, que era, duas vezes por semana, feito pelos trabalhadores -, o número de proprietários iria aumentar com a reforma agrária, à custa de uma propriedade pública abandonada desde o fim do governo Getúlio. Não havia planos, ainda, para estender a reforma agrária a propriedades além dessa fazenda. Falava-se de algumas, nenhuma pertencente a brasileiros: as terras improdutivas do grupo inglês Vestey (Frigorífico Anglo), as terras, que também nada produziam, da Grã-duquesa de Luxemburgo (de onde saíram, aliás, os dois chefes dos jagunços) e as terras sem uso da empresa belga Bekaert (Belgo Mineira).
Apesar disso, os latifundiários ficaram em pé de guerra. Infelizmente, com apoios e estímulos nem um pouco cristãos, como relata um dos participantes daquela guerra, diretor do jornal “O Combate”:
“Jogando fora todo seu prestígio ao lado de fazendeiros, o Bispo da cidade e grande parte do clero, passaram a fazer pronunciamentos diários, pelos jornais e rádios e nos púlpitos, justificando com argumentos religiosos a campanha da Associação Rural, contra a reforma agrária e os sindicatos rurais. Foi lançada até a ‘Campanha Sou Cristão’, de feroz anticomunismo, conclamando todos os católicos ‘a negar todo seu apoio às organizações extremistas como o Sindicato dos lavradores, que só tem contribuído para tirar a tranquilidade da família valadarense’. Novenas, terços eram realizados nas principais igrejas ‘para esclarecer os fiéis contra a insidiosa campanha da reforma agrária’. Procissões eram convocadas com vasta publicidade, chamando os cristãos a ‘defender a família e a liberdade ameaçadas pelo comunismo ateu’. A ‘Campanha Sou Cristão’ se alastrava por todos os educandários de religiosos, com realização diária de palestras contra ‘o comunismo e sua técnica de subversão, que tira proveito do idealismo da juventude e sua inexperiência da vida’ “ (Carlos Olavo da Cunha Pereira, “Nas Terras do Rio sem Dono”, Codecri, Rio, 1980).
Depois de várias rodadas de negociação, marcou-se o dia 31 de março de 1964 para o começo da entrega aos camponeses das terras da fazenda do Ministério da Agricultura.
Na véspera, os latifundiários atacaram, com suas milícias.
Estavam bem armados. Havia 800 camponeses, incluindo as famílias, em frente à sede do Sindicato – todos desarmados, com exceção de algumas “garruchinhas”, menos de 10, pois nem mesmo os poucos que estavam dentro do Sindicato quando a turba chegou, puderam, todos, armar-se.
Mas, voltemos.
Doutel de Andrade: Foram as crianças de Governador Valadares.
OSWALDO LIMA FILHO: Foi a mulher do líder Chicão, camponês humilde de Governador Valadares, cuja senhora foi morta dentro da cadeia de Governador Valadares.
Saldanha Derzi (UDN-MT): Aliás, é sapateiro.
OSWALDO LIMA FILHO: Sapateiro…
Bocayuva Cunha (PTB-GB): Mulher de sapateiro pode ser assassinada.
OSWALDO LIMA FILHO: Esse aparte, deputado Saldanha Derzi, é uma vergonha para a Câmara. Matou-se a mulher de um humilde líder camponês de Governador Valadares, mas, para o nobre deputado Saldanha Derzi, poder-se-ia fazê-lo, era a mulher de um sapateiro…
Paulo Mincarone: Chicão não é latifundiário, não é proprietário de terras.
OSWALDO LIMA FILHO: Este é, desgraçadamente, o sinal dos tempos, da gente que venceu no Brasil. (Muito bem.)
Saldanha Derzi: V. Ex.ª me permite?
OSWALDO LIMA FILHO: Matam a mulher de um camponês em Governador Valadares. Sapateiro, sim. Que desonra há em ser sapateiro?
Saldanha Derzi: Apenas retifiquei o que V. Ex.ª disse. Não era a senhora de um camponês, mas de um sapateiro.
PRESIDENTE (Affonso Celso): Não são permitidos apartes sem licença do orador e nem os srs. Deputados podem apartear da bancada. Devem solicitar o aparte do orador e ocupar o microfone.
OSWALDO LIMA FILHO: Este homem não teve a felicidade de nascer latifundiário. (Muito bem.) O deputado Saldanha Derzi possui em Mato Grosso um milhão de hectares e ele [Chicão] é um humilde camponês. Discordo dos processos do Sr. Chicão. Há 10 dias tive com o Sr. Chicão uma discussão séria no Ministério da Agricultura, com o testemunho dos deputados Alceu de Carvalho e Milvernes Lima. Dizia eu que o processo de divisão da Fazenda Três Cruzes, que eu estava realizando, por ordem do Presidente João Goulart, deveria ser feito ordenadamente, com a divisão dos lotes, com a cessão de gado aos camponeses, com seleção dos que tivessem vocação agrícola e famílias mais numerosas. Estava escolhendo um técnico em agronomia, para que ali se realizasse um modelo de reforma agrária, que honrasse o Governo e os camponeses brasileiros. E ele, na sua impaciência, de quem representa uma massa que sofre há 100 anos, não compreendia essa espera de 30 dias. Discordei dele. Fui veemente, nos atritamos, mas este homem, ao sair, me procura e me comove, dizendo: ‘ministro, o sr. me desculpe. Eu sou homem ignorante’ – e ao lembrar suas palavras me emociono, pela sinceridade que elas representavam. E me diz: ‘ministro, desculpe o analfabeto e o ignorante. Mas o rigor da minha exigência é porque eu falo por gente que está dormindo embaixo das pontes de Governador Valadares’. Pois esse homem se reunira para distribuir o quê? Armas, como disse o deputado Herbert Levy? Armas, como disse o deputado Bilac Pinto? Não, eles se reuniram com os camponeses, no sindicato, para distribuir feijão, que lhes fora doado pela Aliança pelo Progresso, dos norte-americanos. Mandaram feijão para ser distribuído no sindicato. Ali ele é atacado, é ferido, um filho seu, de tenra idade, é recolhido à cadeia com a mulher e de lá a arrancam e fuzilam essa mulher ferida. Este, o crime que exemplifica esse golpe de banqueiros…
Depois de um rápido entrevero com o udenista Saldanha Derzi – que garantiu ter menos terras do que o Presidente João Goulart – aparteou outra vez o deputado Paulo Mincarone:
“V. Ex.ª não foi desmentido, nobre deputado Oswaldo Lima Filho. O nobre aparteante diz que tem menos de 10% do que o sr. João Goulart, em terras, mas não declarou o que tem. V. Ex.ª disse que S. Ex.ª tem um milhão de hectares, mas o nobre deputado não negou. Portanto, é verdade. E não importa que o Sr. João Goulart tenha 10 milhões ou 100 milhões de hectares, pois desejava fazer a reforma agrária e, para isso, dava as suas fazendas, entregava seus campos. Entretanto, o nobre deputado que aparteou V. Ex.ª há pouco não dá sequer boa tarde, nem cumprimenta ninguém, porque não abre a mão para fazê-lo.“
Depois de novo aparte de Saldanha Derzi, protestando que suas propriedades eram “muito pequenas”, prosseguiu o orador:
OSWALDO LIMA FILHO: Há um engano que precisa ficar aqui dissolvido e eliminado. Eu não citei o fato de o sr. deputado Saldanha Derzi ser possuidor de terras como crime, como fato desonroso. Apenas disse que era S. Ex.ª um afortunado em tê-las. Não considero que o fato de alguém ser possuidor de terras o impeça de adotar posição favorável ao progresso social do Brasil. Joaquim Nabuco, patrono da Abolição, começou a vida com os escravos que a sua tia e mãe de criação lhe deu do Engenho Massangana. A estrutura social que aí está não fomos nós que a criamos. Foram os nossos antepassados. Mas o criminoso, o errado, é pretender impor pela força essa estrutura contra os interesses nacionais, que exigem a sua reforma. O criminoso e até anticristão é não dar ao camponês humilde, faminto, o direito de reivindicar a reforma dessa estrutura, que é a responsável pela sua fome, pelo analfabetismo, pela doença, pelo baixo padrão de vida em que vegetam 40% da população brasileira.
No dia 1º de abril, em Governador Valadares, foram assassinados Otávio Soares Ferreira da Cunha e seu filho Augusto Soares da Cunha. Outro filho de Otávio, Wilson, bastante ferido, sobreviveu. Os três, principalmente o último, apoiavam a luta de Chicão.
Somente 30 anos depois os assassinos seriam apontados – pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP): três fazendeiros que haviam sido nomeados “para prestarem serviços localizando e interceptando elementos comunistas e conduzindo-os à Delegacia em virtude do ‘Estado de Guerra’ em que se encontrava o Estado de Minas Gerais, aliás expressamente declarado pelo general Olímpio Mourão Filho, comandante, da 4ª Região Militar, a cujo mando foi incorporada a PMMG”.
O relator do caso na Comissão, Nilmário Miranda, observa, muito justamente:
“A ‘convocação’ dos três fazendeiros para prestar serviços de natureza policial (…) teria ocorrido às 8h da manhã do dia 1º/04/1964, apenas uma hora antes da ocorrência criminosa, cabendo deixar em aberto, portanto, a possibilidade de essa convocação ter sido tão somente um expediente formal forjado a posteriori”.
Ao lado da “Sapataria popular”, além da sede do Sindicato, estava a residência de seu presidente: “A minha família foi correr com as crianças, recebeu tiros pelas costas” – relatou Chicão, quando reapareceu publicamente, 15 anos depois, e concedeu entrevista ao semanário “Movimento” (ed. 14 a 20 de maio de 1979).
Depois de anos na clandestinidade, fora, em 1970, preso em Porto Alegre, torturado barbaramente, e, depois de 50 dias inconsciente, com uma lesão permanente na coluna, solto pelo aparato de repressão. Conseguiu, então, sair do Brasil, voltando em fevereiro de 1979, ano da Anistia.
Na entrevista, além de esclarecer que sua mulher, ferida gravemente no ataque dos latifundiários, conseguira sobreviver – assim como sua filha de quatro anos, atingida por uma bala no rosto -, ele contou que a milícia dos latifundiários somente não havia massacrado todos os que se refugiaram dentro do Sindicato, devido à intervenção de um coronel da PM, referido por Chicão como “Simão” ou “Simões”, que impediu que a chacina fosse até ao fim.
Em 2005, a Revista Sem Terra (edição de maio/junho) fez outra entrevista com Francisco Raimundo da Paixão – aos 74 anos, ele, em Belo Horizonte, era diretor da Associação Nacional dos Perseguidos Políticos.
11
Diante da 7ª Auditoria, em Recife, a Drª Mércia de Albuquerque Ferreira fez as suas alegações finais: “Sob todos os aspectos, esse processo é uma monstruosidade jurídica. Há, nele, graves nulidades, tanto de forma como de conteúdo. Sua peça informativa – o inquérito policial-militar – tem manchas de sangue. Do sangue de espancamentos de réus e de testemunhas”.
O cliente da Drª Mércia era Gregório Bezerra, um homem branco, de olhos claros, que fora o deputado federal mais votado em Recife – e o segundo mais votado de Pernambuco – nas eleições para a Constituinte de 1946.
Mais de três décadas após o golpe de 64, quando a Câmara dos Deputados homenageou Gregório Bezerra, o orador – e proponente – da homenagem, deputado Eduardo Campos, expressaria o consenso absoluto do país ao descrever Gregório como “uma figura de primeiro plano de nossa História, que conseguiu fazer de sua existência uma síntese de todas as lutas libertárias de seu tempo, um modelo de todos os compromissos com o País e seu povo. Um homem de uma coragem pessoal que inspirou muitos e o tornou um ícone para os que hesitam e temem. Um homem de uma dedicação patriótica somente igual a todos os patriotas do passado e do presente nesta nossa sofrida terra”.
Ainda nas palavras do orador, Gregório se tornara “um dos poucos heróis populares” reconhecidos por todos, era “homem do povo, herói nacional”: “‘Triste de um povo que precisa de heróis’, dizia Brecht, em frase mais citada do que compreendida. Dizemos nós: feliz daquele que, precisando de heróis, tem um Gregório Bezerra para entronizar no panteão das grandes figuras de sua história. (…) Gregório foi precisamente a prova de quanto o povo brasileiro avançou na construção da sua identidade e da sua capacidade de luta (cf. Diário da Câmara, ano LV, nº 051, 22/03/2000, p. 11653).
Quando, na presença de seu filho, Jurandir, essa sessão da Câmara o homenageou, Gregório já falecera havia 17 anos. Como disse, na mesma ocasião, a deputada Luíza Erundina, a Câmara reconhecia “um grande brasileiro, um grande democrata, um guerreiro pela democracia e pelas liberdades em nosso País. Homens como Gregório Bezerra (…) são emblema, símbolo, referência para as gerações sucessivas às suas. (…) Gregório Bezerra está vivo, não só na nossa memória, no nosso coração, na nossa mente, mas, sobretudo, na história real do povo brasileiro” (cf. idem, p. 11654).
Gregório, libertado quando da captura do embaixador norte-americano pelo MR8 e ALN, e banido do país pela ditadura em 1969, voltaria em triunfo ao Brasil, em 1979.
Era esse o homem que, preso em abril de 1964, torturado publicamente por um psicopata, enfrentava um dos julgamentos mais injustos – mais monstruosos, na palavra precisa usada pela Drª Mércia – da história do país.
“Muitos dos denunciados”, continuou a advogada, diante da Auditoria, “sofreram os piores suplícios – que a Nação conheceu, em detalhes. Gregório quase foi morto. Suas torturas foram filmadas e rodadas nos vídeos das televisões do Recife, num espetáculo de circo romano”.
(…)
“… a denúncia dos autos é inepta. Nela conta-se uma história que não se coaduna nem se ajusta às provas do processo. Enquanto a denúncia se refere ao delito de atentado à segurança interna do País, com auxílio ou subsídio de Estado estrangeiro (Art. 2º, inciso III, da Lei de Segurança do Estado), nos autos nenhuma testemunha alude a tal crime, absolutamente. (…) nada há, em seus depoimentos, que se reporte ao delito de atentado à segurança interna do País, nem se fala, mesmo de longe, de nenhum Estado ou País estrangeiro. E, no entanto, a Promotoria Militar insiste na classificação inicial, quando das razões finais.
“A denúncia caracteriza-se pela vagueza de expressões e pelo amontoado de palavras que nada têm a ver com a situação de cada um dos denunciados. Dois terços da denúncia são gastos numa espécie de ‘prolegômenos da subversão’, no mundo e no Brasil, com citações duvidosas de Lenin, de Marx e de Fidel Castro.
(…)
“Quanto a Gregório Lourenço Bezerra, comete-se a inverdade – permita-se-me a expressão – de afirmar que ele foi incendiário do 15º Regimento de Infantaria, da Paraíba, aí pelos idos de 1947.
“Ora, Doutos Julgadores, nessa mesma Auditoria, Gregório foi absolvido por unanimidade! E quem pediu a absolvição de Gregório, por falta absoluta de provas, foi o hoje Procurador Geral da Justiça Militar, o doutor Eraldo Gueiros Leite.
“No que diz respeito ao processo ora em exame, nada existe que possa incriminar Gregório pelo delito previsto no art. 2º, inciso III, da Lei de Segurança do Estado. Seu maior crime, Doutos Julgadores, é o de pensar diferente. É o chamado delito de opinião, crime que os códigos não condenam. Crime de impunidade democrática. Crime dos homens livres e das Nações soberanas.
“Peço aos ilustrados membros do Conselho Permanente de Justiça que levem em conta a bravura moral desse homem, digno do nosso maior respeito. Hoje, injustiçado. Amanhã, quem sabe? Glorificado. A um homem desses não se deve apontar as grades da prisão. Nela, o homem poderá fisicamente tombar; mas o ideal do homem ressurgirá por cima de suas fraquezas materiais, continentes.
“Faça-se justiça a esse homem do povo, absolvendo-o, exculpando-o das penas da lei.
(…)
“Contra Gregório há, somente, a alegação de ser comunista. Ele o é, confessadamente. Mas isso é, porventura, crime? “Os Tribunais brasileiros, tanto civis como militares, consideram que o fato de ser comunista não constitui crime.
“Por isso, Doutos Julgadores, peço a absolvição de Gregório Lourenço Bezerra. E o faço como mulher, como mãe e como advogada – cônscia do meu dever perante a civilização humana.
Em suas memórias, Gregório conta como conheceu a Drª Mércia:
“Certo dia, estava conversando com minha companheira, pois era dia de visitas. Aproximou-se uma senhora grávida, já caminhando com dificuldade, e disse: ‘- Gregório, sei que está sem advogado. Venho me oferecer para fazer a sua defesa. Você me aceita como sua defensora?’. Olhei para a majestosa figura de senhora grávida, às vésperas de dar à luz e respondi emocionado e com muito respeito, pois a oferta espontânea vinha numa situação política pesada, na qual muitos advogados fugiam de mim, com receio de passarem pelos vexames a que tinha sido submetido o Dr. Juarez: ‘– Aceito, com todo o prazer, a senhora como minha defensora. Só lhe peço que não se decepcione com a minha condenação a 20 anos, pois isso é inevitável, ainda que fosse defendido pelo melhor advogado do Brasil’.
“– Voltarei amanhã com a procuração para você assinar, certo?
“E, de fato, no dia seguinte estava novamente ali. Passei a ter uma defensora e uma amiga correta e pontual durante todo o tempo que fiquei na Casa de Detenção”.
Trinta e seis anos depois, a Drª Mércia contaria por que se ofereceu para advogada de um perseguido político – uma escolha que mudaria sua vida.
“Decidi que tinha que fazer alguma coisa por Gregório Bezerra, defendê-lo, quando o vi ameaçado de ser enforcado em Casa Forte, todo ensanguentado.”
O acontecimento que fez a Drª Mércia se apresentar para defender Gregório Bezerra foi um dos mais ignominiosos da História do Brasil – e também um dos mais heroicos.
Nas palavras de Gregório:
[NOTA: utilizamos, no texto que se segue, que é uma condensação, não somente o relato que Gregório fez em suas “Memórias”, mas também aquele de sua entrevista, publicada em fevereiro de 1979, a “O Pasquim”]
“A massa camponesa estava psicologicamente preparada para a luta. Principalmente em Pernambuco, onde queriam defender o governo Arraes e o Governo da República. Não queriam perder as conquistas obtidas durante dois anos de luta titânica. O governo de Arraes foi o mais democrático e progressista que já houve em Pernambuco. E por isso mesmo era considerado comunista e acusado de cubanizar todo o estado.
“Quando cheguei dentro da Usina Pedrosa, fui preso pelo capitão Rego Barros, comandante de um grupo de policiais armados de metralhadoras. Não tive condições de reagir. [o capitão Rego Barros] me tratou como um oficial deve tratar um preso político. Mais adiante fui assaltado por um destacamento do 20º Batalhão de Caçadores e um grupo de 15 pistoleiros comandados por José Lopes de Siqueira Santos, um assassino de camponeses. Houve algumas discussões e quiseram me liquidar ali mesmo, porém desistiram, graças ao protesto do capitão que tinha me prendido, dizendo que estava a serviço do Exército, que seguia ordens do coronel Ivan Rui, o novo Chefe de Polícia, e que se me liquidassem seria um crime.
“… Fui então conduzido para o quartel de Motomecanização, no bairro da Casa Forte. Estava à minha espera o comandante, coronel Villocq. Recebeu-me a golpes de cano de ferro na cabeça, tendo eu por isso desmaiado. Enquanto esse sádico me batia com a barra de ferro, outros me desferiam pontapés e coronhadas por todo o corpo, especialmente no estômago, barriga e testículos. Fui arrastado pelas pernas e jogado num xadrez. Ali, os verdugos diziam que eu ia receber uma ‘sessão espírita’. O tarado Villocq babava pelos cantos da boca, qual um cão hidrófobo. Continuava a bater-me com o cano de ferro, a desferir pontapés. Eu estava estendido no solo, já banhado em sangue. Meu torturador tinha o rosto, as mãos e a túnica salpicados com meu sangue. Mas ainda não se satisfazia a sua sanha demente. Dizia:
“– Isto é o início, bandido! É só para esquentar! Tu vais me pagar o velho e o novo! – e desferia novos golpes.
“Vendo-me estendido no solo do xadrez, ordenou que seus lacaios me segurassem para poder continuar golpeando meu estômago, barriga e testículos. E cada vez lhe escorria mais baba pelos cantos da boca, batizando-me com termos pornográficos que nem as mulheres mais decaídas do baixo meretrício seriam capazes de pronunciar.
“Por várias vezes, tentou introduzir a barra de ferro em meu corpo, mas não o conseguiu, porque eu concentrava toda a minha força para defender-me de semelhante ignomínia. Quando já estava todo machucado na cabeça e no baixo ventre, os dentes todos arrebentados e a roupa encharcada de sangue, despiram-me, deixando-me com um calção esporte. Deitaram-me de barriga. Villocq pisou na minha nuca e mandou seu grupo de bandidos sapatearem sobre meu corpo. A seguir, puseram-me numa cadeira e três sargentos seguraram-me por trás, enquanto Villocq, com um alicate, ia arrancando meus cabelos. Logo depois, puseram-me de pé e obrigaram-me a pisar numa poça de ácido de bateria. Em poucos segundos, estava com a sola dos pés em carne viva. Toda pele tinha sido destruída. A dor que senti era tanta, que se estivesse com as mãos livres, apesar de todo amassado, seria capaz de agarrar com Villocq e morrermos juntos.
“Amarraram três cordas no meu pescoço e saíram me arrastando até a rua. Um me puxava pra direita, outro para esquerda e outro pra trás. Eu sentindo a corda penetrando cada vez mais no meu pescoço. Ainda tinha forças pra procurar retrair a musculatura do pescoço, porém vez por outra afrouxava. Diante do CPOR o coronel Villocq fez um comício, concitando alunos, soldados e oficiais a me lincharem porque eu era um bandido, um assassino, um terrorista que queria fazer a revolução comunista para entregar o Brasil a Moscou. Repetiu que eu tinha um plano terrorista para matar queimadas todas as crianças da Casa Forte.
“Como não foi atendido no seu comício, paralisou ônibus, trem, bicicleta, automóveis, caminhões, tudo, e ficou aquela massa concentrada diante daquele espetáculo medieval. Ele gritava para a massa : ‘lincha esse bandido! Mate-o! Joguem garrafas, pedaços de ferro, dê pedradas neste bandido que é monstro! Queria incendiar o bairro para queimar crianças! Está inativo, não pode atacar nem defender, mate-o!’. E a massa não atendia. Mandava a massa olhar para mim e todos só olhavam para frente.
“Enfurecido, batia no meu corpo com uma barra de ferro e dizia: ‘Eu sou ibadiano, filho da puta!’. Os sargentos faziam coro: ‘Nós somos ibadianos também, Gregório! Tu queria nos entregar, bandido! Vai nos pagar caro!’. Saíram me arrastando até o jardim da Casa Forte, onde Villocq fez outro comício, concitando a me linchar. Mais uma vez ninguém lhe atendeu, o que me encorajava, me dava ânimo, me dava uma vontade louca de resistir. Só tinha mesmo a minha moral, porque fisicamente não estava me governando. Aí um sargento propôs que Villocq me levasse ao pátio de sua casa, onde havia numerosas famílias com moças e senhoras. Mas foi uma besteira que ele fez.
“Tinha realmente muitas moças e senhoras que viram meu calção ensanguentado e meu corpo jorrando sangue. Todos ficaram horrorizados. A própria senhora do Villocq foi tomada de crise nervosa, chorando até enlouquecer. Ele batia nas fendas dos ferimentos da minha cabeça e o sangue esguichava, tingindo de vermelho toda a fisionomia. Gritava: ‘Este é o tratamento que nós damos a comunistas! Você está chorando por causa deste bandido? Venha assistir seu enforcamento agora mesmo na Praça da Casa Forte!’.
“No meio de um grupo de moças e senhoras tinha uma com um lenço encarnado na cabeça como proteção contra o sol e de repente o coronel partiu pra cima dela: ‘Você não tem vergonha não? Tá usando o símbolo de Moscou na cabeça!´. Aí, arrancou com toda brutalidade o lenço da cabeça da moça, o que chocou todas as pessoas presentes. Trouxe o lenço e amarrou no meu pescoço de modo que tampasse minha aparência de semi-degolado. A essa altura eu já não sentia mais nada. Os olhos pesavam toneladas, queria abri-los e não podia.
“Sentia frio e muita sede. As pernas pareciam que pesavam milhares de toneladas. E lá se foram me arrastando novamente.
“Aí houve vários protestos. Dom Távora, bispo de Natal, várias Madres Superioras de colégios e conventos, padres, pastores protestantes, e inclusive elementos da burguesia que não me conheciam foram ao general Alves Bastos. Dois generais da reserva assistiram àquele quadro e foram ao general dizer que se era uma questão de fuzilamento que me fuzilassem, mas não praticassem um ato medieval publicamente, em plena luz do dia, porque aquilo denegria as tradições do Exército Nacional e desmoralizavam as Forças Armadas. Houve um grande clamor. O rádio anunciava que eu estava sendo trucidado na Praça da Casa Forte e a multidão foi pra as ruas e as praças, encaminhado-se para lá. Fui inclusive filmado e esta jornada foi para a televisão de noite. Com isto o general Alves Bastos mandou o coronel Ibiapina me tirar das garras do seu comparsa. Quando Ibiapina encontrou-se com aquele desfile medieval tirou o lenço do meu pescoço e afrouxou os laços de corda porque eu quase não respirava mais.
“Quando pude respirar, fiquei alegre cá com meus botões, porque senti que tinha vida e que eu queria viver. Aí me aceitaram no Forte das Cinco Pontas. Me jogaram três baldes de água pela cabeça, um sargento me fez um curativo na cabeça – mas não nas outras partes do corpo – limparam ligeiramente o sangue do rosto.
“Minhas juntas estavam todas inchadas. Pra ir ao banheiro, saía engatinhando e quando chegava não conseguia urinar porque os testículos e a próstata estavam totalmente arrebentados. A agonia terrível de querer urinar sem poder. Suava, suava e doía. Lutei uma noite toda para conseguir urinar até que chegou um momento em que fui massageando a próstata com a mão que estava melhor e senti que algo rasgou-se no seu interior. Começou a sair sangue pisado pela via urinária. Na medida em que eu dava uma massagem violenta, aquele jato de sangue pisado ia engrossando, engrossando… às cinco horas da manhã já saía sangue e urina e meu estado começou a aliviar. A febre era altíssima, muita dor de cabeça, senti que tava ruim mesmo. Mas consegui escapar. De oito em oito dias minha filha vinha me visitar e me levava caldo de lima e água de coco, além dos remédios que os médicos amigos me mandavam. Graças a essa solidariedade, principalmente de minha filha, estou aqui batendo papo com vocês. Mas foi duro”.
12
Após sua volta ao Brasil, estive algumas vezes na casa de Gregório Bezerra – graças a dois amigos pernambucanos, Paulo Resende e Mano Teodósio, que eram próximos a ele e a Prestes. Realizei com Gregório uma entrevista, publicada no então semanário HORA DO POVO.
Minhas impressões não são diferentes das que outros, inclusive o futuro deputado e governador Eduardo Campos, registraram. Como este não é um texto de memórias, exceto quando elas auxiliam a compreensão de determinados fatos, limito-me a relatar um episódio – que não me foi contado por Gregório, um homem, aliás, de modéstia invulgar.
Um colega, médico de Gregório, era também médico da esposa de seu torturador, Villocq, que se tornara diretor de uma usina de açúcar, depois de destruir sua carreira no Exército (quem o promoveria a general, depois dos acontecimentos de Casa Forte?) e passar pela Secretaria de Segurança de Pernambuco.
Quem é médico – e tem mais que poucos anos de profissão – já passou, certamente, por situação semelhante: a atendente marcou consultas com esses dois pacientes, uma em seguida à outra, ignorando quem eram.
Quando Gregório chegou, notou que o médico estava algo mais agitado que de costume. Perguntou o que estava acontecendo e o médico disse a ele que a esposa de Villocq acabara de sair – embora não tivesse falado, era evidente a sua angústia diante da possibilidade de um encontro entre esses seus dois pacientes. Mas ficou surpreendido com o que ouviu: “Que pena que ela já foi embora”, disse Gregório. “Eu gostaria de agradecer a ela. Talvez tenha salvo a minha vida, quando não suportou ver o seu marido me torturando nas ruas de Casa Forte”.
Ao ser informado pela filha, Edna, que seu neto estava sendo torturado, o marechal Lott respondeu: “o meu Exército não faz essas coisas”. Era verdade – assim como eram verdadeiras as informações de Edna Lott.
O Exército de Caxias não se confunde com as ações criminosas de Villocq e quejandos. Os acontecimentos de Recife têm, a esse respeito, uma importância, como diriam alguns, emblemática.
Primeiro, por sua data: o dia seguinte ao golpe de Estado.
Segundo, por sua vítima, um, hoje reconhecido, herói nacional.
Terceiro, pela covardia do carrasco, não somente nos crimes do dia 2 de abril de 1964. Dezenove anos depois, entrevistado pela historiadora Eliane Moury Fernandes, ele negou o que todos viram – inclusive pela televisão. Como era impossível negar completamente a parte pública das torturas a Gregório Bezerra, disse ele: “[Gregório] saiu comigo com a cordinha no pescoço, de leve… Não apertei”.
Difícil é saber o que é mais repugnante: se a covardia ou se o deboche.
Porém, há uma quarta razão pela qual aquele dia prenunciaria os anos que se seguiram: o completo fracasso em sujeitar ou quebrar um homem do povo brasileiro.
Ao fim daquele dia, em meio aos sofrimentos, Gregório triunfou. Foi ele, massacrado, quem saiu, por assim dizer, de cabeça erguida. Por outro lado – aliás, pelo mesmo – a ditadura fora marcada para sempre como o regime da tortura, como o regime que, para servir a um poder econômico e político estrangeiro, cometeria os piores crimes contra o povo do Brasil.
Villocq era um doente. Por isso, pode parecer aos leitores que estamos nos detendo demasiado nesse elemento. Mas ele condensou, logo no primeiro momento da ditadura, e de forma especialmente monstruosa, aquilo no que o imperialismo queria transformar os militares brasileiros. Que não tenha conseguido, que mesmo um dos principais participantes de 1964, o general Antonio Carlos de Andrada Serpa, ex-ministro do Estado Maior das Forças Armadas, o tenha percebido em sua autocrítica (”em 1964 nós seguramos a vaca para os americanos mamarem”), é um mérito dos oficiais e soldados brasileiros, assim como do povo de que fazem parte.
Depois da tortura, seguiu-se a farsa judicial.
Mesmo do ponto de vista estritamente formal, demonstrou a Drª Mércia, o processo contra Gregório e outros era uma aberração tipicamente fascista: “Réus há, nesse processo – Doutos Julgadores – que, sendo funcionários públicos, nunca foram requisitados à repartição de origem. Outros que, revéis, não tiveram o direito de constituir advogados. Outros que respondem a dois e três processos pelos mesmos crimes. Ainda outros que, já condenados, estão sob ameaças de novas condenações, pelos mesmos fatos. Ainda outros que, tendo sido considerados isentos de culpa, em processos arquivados na Justiça Civil, se acham, agora, nas vésperas de um julgamento ou de uma possível condenação pelos mesmos motivos que foram tidos como insubsistentes, do ponto de vista penal, em juízos competentes.
“Um ex-Secretário de Estado do Governo Miguel Arraes foi excluído do processo pelo justo reconhecimento de foro especial. Dois outros, porém, nele permanecem, sem motivo plausível.
“Testemunhas houve que, sendo funcionários públicos, não foram requisitados à repartição competente. Outras que, residindo fora da jurisdição dessa Auditoria, não foram ouvidas por precatória, indeferindo-se, nesse sentido, requerimentos expressos e fazendo-se constar de ata tal cerceamento ao direito de defesa”.
E, referindo-se ao fato de que o suposto principal acusado, o governador Miguel Arraes – dos quais os outros, inclusive Gregório, seriam cúmplices – fora excluído do processo, ela acusou os acusadores:
“Corremos o risco de assistir a uma estranha cissiparidade: a cabeça de um lado e o resto do corpo de outro, num esquartejamento que encheria de satisfação aos sádicos espancadores dos acusados”.
Naquela época, o sr. Joaquim Barbosa ainda não entrara em cena, com sua versão da teoria do domínio do fato. Nem por isso era menos teratológica a Justiça da ditadura.
A Drª Mércia era uma pessoa religiosa – ou, mais exatamente, cristã. Começou suas alegações finais com uma citação da Bíblia, mais especificamente, do profeta Isaías (”Disse o Senhor: – Sabeis qual o jejum que eu apresento? É romper as cadeias injustas, desatar as cordas do jugo, repartir alimentos com os famintos, mandar embora, livres, os oprimidos e quebrar toda espécie de servidão”).
Mais adiante, citaria o Livro dos Salmos: ‘Ouve-me, quando eu clamo, ó Deus da minha justiça; na angústia me deste largueza. Tem misericórdia de mim e ouve a minha oração’.”
Nessa época, a Drª Mércia era muito jovem. Gregório era o seu primeiro cliente “político”. Ela fora tocada pelo horror dos primeiros momentos do golpe, exatamente pelo fato que mais condensou esse horror, a tortura pública de Gregório Bezerra. Decidira, portanto, lutar. Por isso se oferecera para defender aquele réu. Entretanto, ela não sabia ainda o que viria, a que extremos aquela erupção de bestialidade, que o general e historiador Nelson Werneck Sodré compararia à fúria de Calibã – a personificação do mal e da selvageria no Shakespeare de “A Tempestade” – poderia chegar.
Lá por 1978 ou 1979, em Timbaúba, cidade da zona da mata pernambucana na divisa com a Paraíba, um ex-preso político, que também fora cliente da Drª Mércia, relatou-me um fato ocorrido em 1973: ele chegara à residência da advogada, em Recife, e a encontrara fortemente abalada. Contou que vira, no necrotério, seis corpos barbaramente mutilados e um feto, arrancado do ventre da mãe – eram as vítimas, soube-se depois, da chacina da Granja São Bento, delatadas pelo “cabo” Anselmo: Soledad Barret Viedma, 28 anos; Pauline Philippe Reichstul, 26 anos; Jarbas Pereira Marques, 24 anos; Eudaldo Gomes da Silva, 26 anos; Evaldo Luiz Ferreira de Souza, 31 anos; José Manoel da Silva, 33 anos, além do filho ainda não nascido de Soledad.
Mércia conhecia Jarbas Pereira Marques, que, como registrou posteriormente, “três dias antes da prisão procurou-me à noite e entregou fotografias da família, uma fotografia que dizia ser o cabo Anselmo, Carteira do Trabalho, Certidão de Casamento, Certidão de Nascimento e Certificado de Reservista, [disse] que estava para ser preso e me disse que Fleury se encontrava no Recife com a sua equipe, e que o cabo Anselmo usava os nomes de Daniel, Jadiel, Américo Balduíno, era companheiro de Soledad, mas ele já havia descoberto que esta pessoa era infiltrado na organização, daí porque estava muito assustado, porque já havia conversado com Ayberé Ferreira de Sá e este fora preso, conversado com Martinho Leal Campos e este fora preso e com José de Moura e Fontes, que fora preso também, e com outras pessoas que ele não citou os nomes (…). No dia 08.01.73, a mãe dele chegou muito aflita ao anoitecer e me disse que ele teria sido retirado por dois homens da livraria” – onde Jarbas trabalhava.
A Drª Mércia tentou encontrar Jarbas – e achara o seu corpo deformado, com outros cinco, mais um feto, no necrotério.
O relato que ouvi em Timbaúba impressionou-me tanto, que acabei por colocar um ponto de interrogação, quando lembrava dele. Era difícil dormir com aquelas imagens na cabeça – embora, nem eu, nem o meu interlocutor, as tivéssemos visto. Mas eu não tinha razão em duvidar. Apenas, como no poema de Eliot, às vezes a espécie humana – ou, pelo menos, alguns de seus indivíduos – não consegue suportar tanta realidade.
Em 1996, a Drª Mércia prestou depoimento sobre o caso na Secretaria de Justiça de Pernambuco. O que me surpreendeu, ao lê-lo, foi como a pessoa que me relatara o caso conseguira reproduzir com tanta fidelidade aquela coleção de horrores (o leitor que quiser conhecer o relato completo da Drª Mércia, pode acessar www.dhnet.org.br, onde ele se encontra reproduzido).
Nós pretendíamos poupar aos leitores menção a esses fatos posteriores, considerando que a história de Gregório Bezerra era já suficiente. Porém, já que apareceu uma cepa de canalhas que tem se esmerado em embelezar a ditadura, talvez seja útil ver um exemplo da sua benignidade…
Mas, voltemos ao julgamento de Gregório Bezerra. Em suas alegações finais, a Drª Mércia fundamentou a sua escolha:
“Como mulher e mãe, sinto-me à vontade para funcionar em causas que dizem respeito à Liberdade Individual. Não funciono, aqui, como ‘inocente inútil’, mas com a consciência plena de haver assumido a defesa de um grande, embora discutido líder popular. Sei das enormes restrições que se fazem à pessoa do acusado, do ponto de vista político e ideológico. Mas sei, também, da sua grandeza moral, da sua responsabilidade, numa época em que a coerência e a firmeza de atitudes são confundidas com fanatismo e obstinação.
“Acompanhei o processo desde o início, nestes dois anos e meio de prolongadas audiências, de idas e vindas a essa Auditoria Militar, sem me descurar, um instante sequer, da grave responsabilidade histórica de defender Gregório Bezerra. Outros, de minha profissão, ficaram no caminho – intimidados ou atônitos. Eu resolvi prosseguir, embora enfrentando dissabores, comentários mesquinhos, acerbas críticas e aleivosias diversas. Fiz juramento de não transigir no exercício de minha atuação de advogada. E não transigirei, quaisquer que venham a ser as dificuldades e ameaças. Maior do que a minha resistência física, é o meu grande amor – de mulher, de mãe, de simples criatura humana – ao Homem, que é o templo de Deus, segundo os evangelhos. E o Homem é uma criatura una, indivisível – quaisquer que sejam as contingências da vida, as crenças, o modo de encará-las, a fé e a própria negação da fé. Há mil formas de acreditar na vida. Como existem mil formas de destruí-las – pelo medo, pela covardia, pelo individualismo, pela vaidade”.
Gregório Bezerra estava certo, quando disse à Drª Mércia que, independente de seu esforço, seria condenado a 20 anos de cadeia. Sem prova alguma de qualquer ato criminoso, ao contrário dos que o torturaram, foi condenado a 19 anos de cadeia. Como já mencionamos, ele foi libertado quando guerrilheiros do MR8 e ALN capturaram o embaixador dos EUA e trocaram-no por 15 presos políticos. Gregório, aliás, sempre se mostrou muito grato aos “jovens aos quais devo a minha liberdade” – como se referiu a eles no discurso que fez, logo após sua volta a Recife, no Diretório Central dos Estudantes da UFPE, naquela época localizado numa transversal da avenida Conde da Boa Vista, no centro da cidade.
O grau de ferocidade estabelecido de 1964 em diante foi inédito na história republicana do país. Resta saber por quê. A rigor, um golpe entreguista que carecia de apoio suficiente para estabilizar o regime que pariu, manteve-se, desde o início, pelo terrorismo.
Fazendo o balanço do ano, na edição de 31 de dezembro de 1964, o conservador “Correio da Manhã”, ainda o maior jornal carioca, publicaria mais um “mea culpa” (o primeiro fora no editorial de 1º de setembro, intitulado “Tortura e Insensibilidade”), ainda que bastante hipócrita, pois tentava colocar nas costas de Jango a responsabilidade pela posição do próprio jornal, ao apoiar o golpe – através dos editoriais “Basta!“, de 31 de março, e “Fora!“, de 1º de abril de 1964.
[A propósito, a autoria desses editoriais tornar-se-ia uma brasa a queimar os dedos dos editorialistas do “Correio”; a julgar por seus depoimentos posteriores, quase se poderia concluir que o texto foi escrito sem que ninguém o escrevesse – v. João Amado, “Da redação do Jornal do Brasil para as livrarias: Os idos de março e a queda em abril, a primeira narrativa do golpe de 1964”, IFCH/UERJ, Rio de Janeiro, 2008.]
Porém, apesar de fugir da sua responsabilidade, o novo editorial do Correio da Manhã, que portava o título de “Fim e Começo”, registrava:
“A Constituição, em vez de ser defendida, foi grosseiramente violada pelo Ato Institucional (…). A defesa da Democracia foi feita mediante cassação indiscriminada de mandatos e direitos políticos, desrespeito às decisões da Justiça, demissões em massa, prisões arbitrárias, tortura de presos políticos. (…) A contradição é manifesta: pretendia-se restabelecer a Democracia e ela está sendo destruída. Como? Por quê? Para quê? A resposta encontra-se na imposição da impopularíssima política externa, que na ONU vota a favor do apartheid e no Brasil permite a aerofotogrametria das nossas potencialidades por aviões de país estrangeiro; e na imposição da mais impopular política econômico-financeira.
“A nova Lei de Remessa de Lucros, a compra da AMFORP, o decreto da Hanna deram tudo aos estrangeiros. E que se deu aos brasileiros?
“Imoderada alta do custo de vida, agravada pela tola liberação dos preços e pelo impiedoso congelamento dos salários; aumento escorchante dos impostos diretos e indiretos – tudo para diminuir o poder aquisitivo do povo e fazer pagar as despesas da deflação pelos assalariados. Na mesma ordem ou desordem de ideias falsas, a paralisação das obras públicas e as restrições do crédito, que arruinam a indústria e o comércio e fomentam o desemprego. Para isso foi imposto o regime de força, pois medidas tão hostis ao povo seriam impossíveis em regime democrático. (…) O regime de força bruta instalou-se para realizar essa política brutal. Mas a força nunca é solução de problema nenhum. Nunca pode ‘normalizar-se’, pois no dia em que deixar de ser exercida, cairá como um castelo de cartas. Estes dias são escuros, mas como as últimas horas da noite antes da aurora.”
Certamente o editorialista não previa que aquelas últimas horas da noite iriam demorar mais 20 anos. No entanto, apesar disso, ele estava certo.
Ainda mais certo estava quanto ao que motivava o caráter terrorista da ditadura: ele tinha origem, diretamente, na política subserviente ao imperialismo norte-americano, que era o objetivo do golpe de Estado. A tal ponto que seriam os próprios torturadores norte-americanos que seriam os instrutores do aparato de repressão.
13
Logo após o golpe de 1º de abril, expandiu-se um odioso festival de pusilanimidade, em que deputados estaduais e vereadores cassavam colegas, e também a governadores e prefeitos, com a intenção (muitas vezes frustrada) de conservar seus mandatos à custa do mandato alheio – e de vergonhosos espetáculos de submissão.
Eis uma notícia da época:
“Depois de darem impressionante demonstração de seu desejo de integrarem-se na Revolução, trabalhando ininterruptamente durante mais de 24 horas, a fim de votarem o ‘impeachment’ do ex-governador Badger Silveira e do ex-vice-governador João Baptista da Costa, além da alteração do Regimento Interno na Assembleia e do artigo 35 da Constituição, para possibilitar a eleição do general Paulo Torres e do deputado Simão Mansur, os deputados fluminenses anunciaram que irão descontar um dia de seus salários em favor da União. Esse último fato constitui demonstração inédita da disposição de integração da Assembleia” (UH, 07-05-1964).
Seria famosa a cassação do prefeito de Recife, Pelópidas Silveira, eleito pela coligação PSB-PTB:
“Na tarde do dia 02/04/1964, após minha prisão, a Câmara Municipal, onde eu era apoiado por 20 vereadores contra 5, decretou o meu impedimento, por 20 vereadores contra um. Esse foi preso.“ (Pelópidas Silveira, depoimento ao CPDOC/FGV, 1978).
O vereador que votou contra a cassação de Pelópidas, Jarbas de Holanda, não somente saiu preso da Câmara, como foi condenado a cinco anos de cadeia “por crime contra a segurança nacional”. Somente saiu da prisão em 1968, quando a Drª Mércia Albuquerque conseguiu um habeas-corpus.
O próprio Pelópidas fora preso um dia antes da cassação, por recusar-se a renunciar. Tentaram processá-lo, mas o auditor da Justiça Militar “rejeitou a denúncia, como inepta. Porque a denúncia dizia apenas que não havia nada contra o engenheiro Pelópidas Silveira, apenas constava dos autos que tinha sido apoiado pelos comunistas em campanhas eleitorais. (…) o promotor recorreu ao Superior Tribunal Militar que, por unanimidade, manteve a decisão (…). Agora, no inquérito [policial-militar], era uma série de perguntas que não visavam esclarecer nada, ou por outra, não visavam apresentar acusação contra nada. (…) tanto que à última pergunta: ‘O senhor tem alguma coisa a alegar em sua defesa?’, eu disse: ‘Não, porque não fui acusado de nada.’ E foram 85 perguntas: conhece fulano? O que acha de fulano? O que acha da linha russa? Coisas assim” (idem).
Em seguida, a ditadura passaria a cassar os que cassaram Pelópidas – a começar pelo presidente da Câmara de Vereadores do Recife.
Os golpistas mostravam-se especialmente histéricos com o governo de Arraes e a mobilização camponesa dos anos 50 e 60.
No entanto, nenhuma lei fora transgredida. A revolução de Arraes constituiu-se, pelo contrário, em aplicar a lei, acabando com a escravidão – não é justo chamá-la de “semi-escravidão” – no campo pernambucano (v., p. ex., os depoimentos incluídos por Christine Rufino Dabat em “Moradores de Engenho – Relações de trabalho e condições de vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco segundo a literatura, a academia e os próprios atores sociais”, Ed. Universitária, Recife, 2007).
Assim, pela primeira vez o trabalhador da zona da mata passou a receber salário, o que impulsionou a indústria de bens de consumo da região. O fato mais lembrado, de impacto humano colossal, foi a substituição da “cama de varas”, feita pelo próprio camponês, por camas fabricadas pela indústria moveleira local. Um quarto de século antes, Graciliano Ramos escrevera, em “Vidas Secas”: “Sinhá Vitória desejava possuir uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira. Doidice. Não dizia nada para não contrariá-la, mas sabia que era doidice. Cambembes podiam ter luxo? (…) Sinhá Vitória dormia mal na cama de varas”.
Em apenas um ano de governo Arraes, os trabalhadores rurais podiam, finalmente, comprar uma cama – o sonho de Sinhá Vitória, que seu marido, Fabiano, um dia achara inatingível, tornara-se real.
Mas os golpistas queriam apagar a História – e à custa de sangue.
Não por coincidência, o Nordeste era a principal preocupação do governo norte-americano quanto ao Brasil. Poucos anos depois, Robert Kennedy, ao opor-se à guerra no Vietnã, falaria que, com a política norte-americana vigente, dentro em breve os EUA estariam enviando soldados para o Nordeste brasileiro.
Antes do governo Arraes, Washington tentara penetrar no Nordeste através de colaboracionistas nos governos estaduais, passando por cima do governo federal. A região tornou-se o foco da USAID no Brasil – e, claro, da “Aliança para o Progresso”. Depois, a CIA deslancharia a operação IBAD, que teve como um de seus principais objetivos, impedir a vitória de Arraes nas eleições de 1962.
Essa preocupação com o Nordeste brasileiro era pública, com artigos na primeira página do “The New York Times”, escritos por seu mais famoso correspondente, Tad Szulc (v. Ricardo Alaggio Ribeiro, “A Aliança para o Progresso e as relações Brasil-EUA”, IFCH/UNICAMP, Campinas, SP, 2006).
Arraes acabou com a política estadual de relacionar-se com os EUA diretamente, como se o governo federal não existisse. Ele percebia com clareza o interesse norte-americano no Nordeste. Como disse em seu discurso de posse, “o câncer do Nordeste está preocupando os norte-americanos, que pensam que nossas doenças podem ser politicamente contagiosas e contaminar os nossos vizinhos. Então eles nos dão leite em pó – se ingenuamente ou não, eu não sei – como se nossa fome fosse diferente da sua, como se ela não estivesse constantemente renascendo, como acontece no mundo todo. Isto é humor negro; não é engraçado, nem resolve, nem poderá resolver a situação angustiosa de uma família nordestina”.
Somente quem provou o leite em pó da “Aliança para o Progresso” (infelizmente, é o nosso caso) tem plenas condições de apreciar toda a ironia do governador Arraes: esse leite era um refugo da produção dos EUA realmente inesquecível – por seu gosto horroroso.
Em 1979, ou, mais provavelmente, 1980, tentei estabelecer um número para os assassinados no campo pernambucano durante e após o golpe de Estado. Pretendia escrever algo sobre aqueles crimes, que me pareciam esquecidos – no que, aliás, eu não tinha razão.
Desisti da ideia, depois de conversar, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com Fernando Azevedo – que, posteriormente, publicaria seu livro sobre as ligas camponesas (v. Fernando Antonio Azevedo, “As Ligas Camponesas”, Paz e Terra, 1982).
Disse-me ele que o número dos que foram, mortos ou vivos, encerrados em fornos nas usinas era impossível de saber. A mesma coisa disseram vários sobreviventes da época, na zona da mata pernambucana. Lembro-me especialmente de um relato que ouvi em Joaquim Nabuco – uma pequenina cidade que parecia plantada no meio de um canavial, na Zona da Mata Sul.
Depois de 1º de abril de 1964, o principal instrumento para infernizar a vida de líderes populares ou operários, políticos, intelectuais, artistas, pessoas que, simplesmente, não concordavam com o golpe – ou qualquer um que, por infelicidade, caísse na antipatia de algum inspetor de quarteirão da ditadura – foram os IPMs (iniciais de “inquérito policial militar”) que proliferaram, qual bactérias, de Norte a Sul.
A desordem era tanta que Castelo Branco, no dia 28 de abril, criou uma “Comissão Geral de Investigações” (CGI) para coordenar esses IPMs, que chegavam a centenas.
Para presidente dessa CGI, foi nomeado o marechal Estevão Taurino de Rezende Neto, até então responsável por uma “CGI informal”, um estranho IPM, mãe de todos os IPMs, para “apurar fatos e as devidas responsabilidades de todos aqueles que, no País, tenham desenvolvido ou ainda estejam desenvolvendo atividades capituláveis nas Leis que definem os crimes militares e os crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social” (cf. ato complementar nº 9, 14/04/1964).
O responsável pela proliferação de IPMs foi o próprio Taurino, ao declarar que “cada corporação, órgão ou entidade, por iniciativa própria deveria abrir inquéritos sobre os fatos havidos anteriormente”.
Sobre a situação, quando da criação da CGI, ele declarou:
“Deverei receber a relação de todos os presos políticos e estudar cada caso, em particular, para enviar à Justiça. Já tenho comigo a relação dos presos do Exército, na Guanabara, faltando as dos Estados e os que estão sob a responsabilidade da Marinha, Aeronáutica e Polícia Estadual da Guanabara. Em navios temos o general-de-brigada Newton Lemos, quatro coronéis, 15 tenentes-coronéis, 9 majores, 18 capitães, 18 primeiros-tenentes, 4 segundos-tenentes, um subtenente, um primeiro-sargento, 7 segundos-sargentos, 30 terceiros-sargentos, quatro civis e, entrados para a lista posteriormente, mais um primeiro-tenente, três capitães, dois terceiros-sargentos, o general-de-brigada Artur de Barros e um tenente-coronel. Nas fortalezas de Artilharia da Costa, temos o vice-almirante Cândido da Costa Aragão, os generais Euríalo Jesus Zerbini, Luís Tavares da Cunha Melo e Crisanto de Figueiredo, o contra-almirante Washington Frazão Braga, o general-de-brigada Assis Brasil, dois coronéis, um major, três capitães, os civis Antônio Celso Nogueira Monteiro, Neiva Moreira e João Pinheiro Neto, e mais três majores” (cf. Edmar Morel, “O Golpe Começou em Washington”, Civ. Bras., 1965, Rio, p. 147).
Taurino de Rezende era conhecido por um projeto para fundar o serviço agropecuário do Exército, vetado por Jango – que, aliás, conversou com o então general sobre os motivos do veto. Além disso, fora oficial de confiança do marechal Lott, quando ministro da Guerra, e chefe do inquérito que apurou a intentona de Aragarças, a tentativa golpista de Burnier – depois notório pelo plano terrorista de explodir o gasômetro do Rio, usando os oficiais do Para-Sar, e pelo bárbaro assassinato de Stuart Angel Jones. Na época de Aragarças, dezembro de 1959, seu plano era bombardear os Palácios do Catete e das Laranjeiras.
O marechal Taurino, a bem dizer, não era mau sujeito. Em 1964, tomou algumas providências para coibir os aspectos mais desumanos da repressão, tirou os presos militares dos navios e esvaziou o estádio Caio Martins, em Niterói, que se tornara um depósito de presos políticos, liberando os que, sem processo, tinham mais que 30 dias de prisão.
Taurino reuniu a imprensa para pedir que não o retratassem como “o carrasco de tudo isso aí”. Foi inútil porque, ao mesmo tempo, uma de suas primeiras medidas na CGI foi autorizar “a prisão preventiva de testemunhas dos IPMs no período compreendido até 50 dias antes de seus depoimentos” (cf. CPDOC/FGV, DHBB). Além de pregar, pelos jornais, a prorrogação do período de cassações (pelo primeiro Ato Institucional, esse período terminava em 9 de junho) e a “punição” de Tancredo Neves.
Porém, sua trajetória no cargo terminou abruptamente, quando se soube que, por ordem do chefe do IPM da SUDENE, seu filho estava preso, em Recife, como “subversivo” e “comunista”.
O filho do marechal era o economista Sérgio Cidade de Rezende, professor da Universidade Católica de Pernambuco. O IPM da SUDENE fora instalado por ordem do chefe da CGI – ou seja, pelo pai do preso.
Taurino declarou imediatamente à imprensa que seu filho era “um idealista como eu, e não é corrupto nem subversivo nem comunista. Sérgio é um homem honrado em toda a acepção da palavra. Orgulho-me extraordinariamente desse meu filho”.
Muito justo, mas… por que os filhos de outros pais, que também estavam presos, não seriam, igualmente, “idealistas”? É óbvio que isso lhe foi abertamente cobrado, inclusive pela imprensa que apoiava o golpe – esta para dizer que Sérgio Cidade de Rezende era, realmente, um “subversivo”, e que o marechal era um frouxo.
Qual era o crime do professor Rezende? Eis uma rápida síntese:
“A perseguição contra Sérgio foi desencadeada por causa de uma manifestação por escrito que ele divulgou em sala de aula, entre seus 26 alunos, no dia 26 de junho de 1964, fazendo uma análise crítica da situação política nacional. Inicialmente, o manifesto dizia que os estudantes, sendo parte da minoria de privilegiados que cursa a universidade, tinham a obrigação de pensar para tomar uma posição perante a sociedade. Em seguida, caracterizava a situação vigente pelo domínio de um ‘grupo minoritário’ com o apoio das ‘forças mais retrógradas da sociedade’ que constituiu uma ditadura que cassa mandatos, cassa direitos políticos e cassa a palavra, pois não tem condições de enfrentar um confronto de ideias, por causa da fragilidade daquilo que defende. Aos ‘revolucionários’ brasileiros, que se arvoravam à condição de donos da verdade, o professor chamou de ‘gorilas’, e contra eles e sua verdade absoluta resistiam aqueles que não queriam ver interrompida a marcha que conduzia o Brasil à independência política e econômica, nem queriam testemunhar a destruição da liberdade de pensar pelo obscurantismo. Ao final, dizia: ‘A vocês estudantes cabe uma responsabilidade, uma parcela de decisão dos destinos da sociedade e para isto têm que optar entre ‘gorilizar-se’ ou permanecerem seres humanos. A estes cabe a honra de defender a democracia e a liberdade’.” (v. Claudia Paiva Carvalho, “Intelectuais, cultura e repressão política na ditadura brasileira (1964-1967): relações entre direito e autoritarismo”, Faculdade de Direito/UNB, Brasília, 2013, p. 148).
Sérgio teve a sua prisão decretada no dia 9 de julho. Por força de habeas corpus do Superior Tribunal Militar (STM), foi solto no dia 29 – e preso outra vez no dia seguinte, na presença do pai, marechal Taurino de Rezende, por um meganha conhecido como “o fanático da rua Aurora”, cuja ambição declarada era “prender o arcebispo de Pernambuco”, Dom Hélder Câmara (v. CM, 01/08/1964).
A nova prisão de Sérgio era “por estar implicado em outras acusações em inquéritos paralelos” (cf. telegrama ao STF de Mourão Filho, CM 01/09/1964).
No dia 14 de agosto, também o STF concedeu, por unanimidade, habeas corpus a Sérgio Cidade de Rezende, mas ele foi preso pela terceira vez, “para não prejudicar averiguações para apurar a rearticulação comunista” (cf. Mourão Filho, idem).
A 22 de julho, o marechal Taurino de Rezende declarara que “a revolução não pode ser desmoralizada pelas arbitrariedades e violências cometidas em seu nome”.
Foi exonerado por Castelo Branco.
Já são muito conhecidas as respostas de Oscar Niemeyer no ridículo IPM do Partido Comunista (é impressionante como tanto papel foi desperdiçado: a íntegra desse IPM tem 29.530 páginas, onde o leitor pode chegar à conclusão de que o Partido Comunista existia – e nada mais; cf. cópia no acervo do Projeto Brasil Nunca Mais).
Ninguém estava livre de uma aporrinhação, mesmo sem IPM, se algum imbecil quisesse alentar o seu currículo fascista com o prestígio dos outros. Por exemplo:
“A atriz Cacilda Becker, intimada pelo DOPS para prestar esclarecimentos sobre atividades subversivas no meio teatral, compareceu ontem à Delegacia vestindo um modelo Dior, elegantíssima, em companhia de seu marido, o ator Walmor Chagas, e de outros integrantes do elenco que dirige. Cacilda respondeu todas as perguntas com muita calma durante 4 horas, encantando até os inquisidores. A atriz confirmou que realmente, em 1947, a convite de Jorge Amado, declamou no Teatro Municipal do Rio o poema ‘Mães de Stalingrado’, apresentação que repetiu no Vale do Anhangabaú, esclarecendo que isso aconteceu logo após a vitória das Nações Unidas contra o nazi-fascismo e que o poema, muito aplaudido pelo povo, exaltava as mães que perderam seus filhos na defesa da Liberdade.
“Cacilda Becker relatou a seguir que em 1948 foi eleita Segunda Tesoureira do Centro Paulista de Estudos do Petróleo e que é fundadora do Teatro Brasileiro de Comédia. Acredita que tenha assinado o Manifesto Apelo por um Pacto de Paz, bem como outros que foram organizados durante o II Festival da Juventude Paulista, em 1953. Disse ainda, respondendo a pergunta, que não participou do Congresso de Mulheres em Copenhague, negando que tivesse qualquer contato com mulheres comunistas. Os policiais passaram a perguntar sobre as pessoas que Cacilda Becker conhecia e ela disse que realmente conhecia o vereador Rio Branco Paranhos, que apresentou projeto à Câmara Municipal, a seu pedido, solicitando a doação de terreno para um hospital de crianças com defeito físico. Afirmou conhecer também Rossini Camargo Guarnieri apenas como maestro, Clóvis Graciano, como pintor, Flávio Rangel, como diretor de teatro, e Caio Prado Júnior, como editor de livros. Encerrou seu depoimento afirmando que seu teatro tem como objetivo único a arte pela arte e a cultura (…)” (UH, 09-05-1964).
14
Alguns anos depois, Juscelino Kubitschek contaria que, ao saber da sua decisão de votar em Castelo Branco, na “eleição” indireta para presidente de 11 de abril de 1964, o senador Victorino Freire (PSD-MA) falou: “não dou três meses para você se arrepender”.
O comentário de JK é típico da sua afável personalidade: “como o Victorino estava otimista ao falar em três meses!”.
O senador pelo Maranhão votaria em um candidato, a rigor, inexistente, o ex-presidente Eurico Dutra, que tinha fama (não muito justificada) de legalista. Mas suas desconfianças em relação a Castelo Branco mostraram-se quase proféticas.
A descrição de Edmar Morel é mais do que pertinente:
“Quando o marechal Castelo Branco assumiu o Governo, às 15h10m do dia 15 de abril, perante o Congresso Nacional, o Brasil era um apreciável campo de concentração e as Embaixadas do Uruguai, México, Peru, Bolívia, Iugoslávia e outras estavam superlotadas [com asilados políticos] (…) O Presidente declarou, em breve discurso, que seu Governo se pautaria pelo cumprimento à Constituição e que o Estado ‘não será estorvo à iniciativa privada’. Agiria como um verdadeiro escravo das leis do País e que teria procedimento de Chefe de Nação, sem tergiversações, ‘no processo para a eleição de um brasileiro, a quem entregarei o cargo a 31 de janeiro de 1966’.” (Edmar Morel, “O Golpe Começou em Washington”, Civilização Brasileira, Rio, 1965, pág. 142).
Castelo desmentiria, uma a uma, as próprias palavras.
Sua “eleição” era perfeitamente ilegal, instituída por uma “lei” (nº 4.321), posterior ao golpe de Estado, cujo projeto foi apresentado ao Senado no dia 6 de abril de 1964, no mesmo dia lido em plenário, no mesmo dia enviado à Comissão de Constituição e Justiça do Senado – e, aí, relatado, aprovado e reenviado à Mesa, que o remeteu de volta ao plenário, onde foi aprovado em dois turnos, enviado à comissão de redação e aprovado, em redação final, tudo no mesmo dia, e remetido à Câmara – onde, no dia seguinte, foi lido em plenário, depois apreciado, relatado e aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, reenviado à Mesa, que o remeteu ao plenário, onde foi aprovado e enviado à Comissão de Redação da Câmara para a versão definitiva – e, na mesma noite desse glorioso dia 7 de abril, foi sancionado pelo presidente da República de fachada, Ranieri Mazzilli (cf. Anais do Senado, Livro 4/1964, DCN 07/04/1964, p. 745 e Atos do Poder Legislativo, 1964, vol. 3, p. 20).
Se o leitor achou este parágrafo anterior algo vertiginoso, a culpa não é nossa, estimado amigo.
Mas, dois dias depois, o Ato Institucional, assinado pela junta – que era quem mandava realmente no país – mudaria os procedimentos da lei tão velozmente aprovada, depois de discussão tão profunda…
Prenunciando o que viria, a perseguição política estendeu-se à Igreja. Até o então bispo de Natal, Dom Eugênio Sales – futuramente, Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro – foi acusado de comunista e ameaçado, por se declarar a favor da reforma agrária. Chantageado para celebrar um “Te Deum” pela vitória do golpe, Dom Eugênio “recusou-se. Afirmou que rezaria missa apenas pelo fato de não ter havido derramamento de sangue” (Morel, p. 148).
Sacerdotes e leigos católicos eram presos em todo o país. Personalidades católicas eminentes, como Sobral Pinto e Tristão de Ataíde (Alceu de Amoroso Lima), protestavam. Mas aquela figurinha insignificante, Jaime de Barros Câmara – na época, cardeal do Rio, onde impedira o bispo-auxiliar, Dom Hélder Câmara, de continuar a exercer o seu apostolado (por intervenção do próprio papa Paulo VI, Dom Hélder fora transferido, no início de março de 1964, para o Arcebispado de Olinda e Recife) – pregava o ódio sem limites: “A tolerância que acoberta os facínoras favorece a ousadia para o mal, incentiva outros a seguirem os mesmos caminhos e gera a insegurança pública. (…) quando os criminosos permanecem impunes, não há paz nem ordem, desaparecem as garantias de vida e de bens, de honra e dignidade”, disse Barros Câmara, na mesma noite em que a rádio da Arquidiocese de Olinda e Recife foi fechada, para impedir D. Hélder de falar ao povo de Pernambuco (o Arcebispo iria dar uma aula no curso de “educação de base” que instituíra ao assumir a nova missão – cf. Morel, pág. 147).
Era essa a garantia “de bens” apoiada pelo cardeal Câmara.
JK, então senador por Goiás, foi cassado pela ditadura no dia 14 de junho de 1964, por ato assinado pelo homem em quem votara para presidente – e que, para cabalar o seu voto, decisivo na bancada do PSD, jurara fidelidade eterna à democracia.
Juscelino não foi o único democrata que votou em Castelo. Por exemplo, a bancada do PTB no Senado, com exceção de um senador – exatamente o líder da bancada, Arthur Virgílio Filho, do Amazonas, que declarou-se “líder sem liderados”, se absteve, e, após o AI-5, foi cassado – votou em Castelo (cf. Diário do Congresso Nacional, 12/04/1964, p. 98/99).
Da mesma forma, a bancada do PSD na Câmara, com votação por Castelo encaminhada pelo líder – o jurista e ex-ministro da Justiça Martins Rodrigues, do Ceará, também cassado após o AI-5.
Na argumentação dos que foram contra o golpe, mas votaram em Castelo, este era o menos pior – ou era a garantia de que as eleições presidenciais do ano seguinte não seriam canceladas.
Há, inclusive, uma história – não pudemos comprovar a veracidade – de que JK tentou convencer Tancredo Neves a votar em Castelo com o argumento de que “… ele é um intelectual do Exército, já leu muitos livros”, recebendo como resposta: “O problema é que ele leu os livros errados”.
[NOTA: a resposta parece típica de Tancredo, mas o argumento não parece típico de Juscelino, sobretudo considerando que tanto ele quanto seu interlocutor eram bons leitores – e ambos sabiam dessa característica do outro, portanto, nenhum deles ficaria impressionado porque alguém “leu muitos livros”. Em sua obra “Castello, a marcha para a ditadura”, página 263, Lira Neto dá a entender que a fonte dessa história seria uma coluna publicada na época por Carlos Castello Branco. Mas não a encontramos em nenhuma das colunas desse jornalista.]
Infelizmente, a demagogia pseudo-democrática de Castelo somente servia como fachada a um regime mais do que impopular – e como terraplenagem para o estabelecimento de uma ditadura abertamente terrorista.
A maioria da bancada do PTB na Câmara decidiu-se pela abstenção. Ao todo, 72 parlamentares, inclusive Tancredo – e, não seria justo esquecer, José Sarney, apesar de udenista – se abstiveram. Cinco votaram em candidatos inexistentes (cf. lista completa dos que se abstiveram na primeira página do Correio da Manhã de 12/04/1964).
O discurso mais significativo da sessão foi o do líder do Partido de Representação Popular, deputado Plínio Salgado:
“Meu partido se orgulha de jamais ter dado legenda a comunistas ou a linhas auxiliares do Comunismo; meu partido se orgulha de ter vindo de raízes, desde quanto levantamos, pela primeira vez no Brasil, a bandeira anticomunista; meu partido se orgulha de ter sido a primeira agremiação, anteriormente denominada Ação Integralista Brasileira, que alertou a Nação para o perigo que, então, se aflorava e que viera gradativamente a crescer até ameaçar o fundamento das nossas instituições; meu partido se orgulha de, num momento em que combatia o Comunismo internacional (…) ter também [combatido] uma Carta Constitucional outorgada por uma ditadura que implantava às avessas o mesmo totalitarismo que combatíamos ao combater o Comunismo internacional. (…) Nessas condições, meu partido, nesse momento histórico da Nação, continua no mesmo lugar: nenhum de nós mudou, estivemos sempre firmes nesta batalha. Por isso é que, quando as forças políticas e militares da Nação se conglomeram em torno de uma candidatura, que, certamente trará ao Brasil, vitoriosa, a restauração da Constituição e o respeito ao Congresso Nacional, candidatura essa que não esteve nos cartazes das ruas, nos comícios populares, meu partido declara que votará no General Castelo Branco!“ (Muito bem! Muito bem! Palmas) – cf. DCN, 12/04/1964, p. 98).
Juscelino foi cassado porque, se candidato em 1965, ganharia as eleições. Depois da cassação e de um breve período no exterior, começaria o seu calvário: as sessões intermináveis de interrogatório em que um dos presidentes mais populares da História da República não tinha direito, sequer, a uma cadeira, obrigado a sentar num banquinho sem encosto para ouvir, durante horas e horas, os seus próprios discursos na campanha eleitoral de 1955, entre insultos – sob a forma de perguntas – sobre fantasiosos desvios de dinheiro ou ligações com os comunistas.
Tão cedo quanto 21 de abril de 1964 – portanto, 20 dias após o golpe de Estado e 10 dias depois da “eleição” indireta – o colunista Carlos Castello Branco escrevia, no “Jornal do Brasil”:
“O Governador Carlos Lacerda já escolheu o seu novo alvo preferencial. Todo o seu poder de fogo está dirigido no momento contra o Sr. Juscelino Kubitschek, para uma evidente operação de limpeza com vistas à sucessão presidencial. Sua campanha baseava-se, até a Revolução, no fato de ser êle o contraste mais nítido ao Sr. João Goulart e ao que este representava. Daqui por diante, ele volta a um tema antigo em circunstâncias renovadas: o Sr. Juscelino Kubitschek. O Sr. Ademar de Barros não o interessa, pois está evidentemente marginalizado no processo político. O novo Governo da República, ainda que dele venha a divergir e ainda que venha a colocar-se em atitude hostil à política oficial, não lhe oferecerá como tema de batalha as mesmas vantagens que lhe oferece o ex-Presidente da República. Nem o atual Governo, por mais que marche em sentido oposto ao do lacerdismo, oferecerá riscos à marcha do Governador da Guanabara para a Presidência da República” (Carlos Castello Branco, “Juscelino agora é o alvo de Lacerda”, JB, 21/04/1964).
O colunista não adquiriu sua fama – que cresceu nos anos posteriores – devido ao brilhantismo de estilo ou à acurácia de análise. A compreensão do momento político jamais foi o seu forte. Mas, somos obrigados a reconhecer, Carlos Castello Branco era muito bom em escrever o que todos sabiam. Em algumas circunstâncias, pode ser uma qualidade.
O mais sintético retrato de Lacerda, naqueles dias, foi esboçado, pouco depois, por Carlos Heitor Cony:
“… temos um notório exemplo do intelectual frustrado que já pode ser conceituado como um criminoso político. O Sr. Carlos Lacerda, depois de um estágio na subliteratura – com a agravante de reincidir nas horas vagas -, enveredou pelo crime: já prega o fechamento do Congresso e a abolição da liberdade de imprensa” (entrevista a “O Cruzeiro”, ed. 03/10/1964).
Candidato da UDN à Presidência, Lacerda não seria beneficiado com a cassação de Juscelino. As eleições presidenciais foram canceladas um mês após a cassação de JK, com a “prorrogação” do mandato de Castelo, na madrugada de 17 de julho, por apenas um voto – de um deputado udenista bêbado, que foi introduzido no plenário quando o presidente da Mesa do Congresso, Auro de Moura Andrade, já encerrara a sessão, declarando derrotada a “prorrogação do mandato” de Castelo Branco.
Durante 90 minutos, no Congresso, travou-se uma luta, que por pouco não chegou ao desforço físico, sobre a aceitação ou não daquele voto, mais etílico que udenista, fora do tempo regimental.
Ao final, o voto foi aceito – e, no dia seguinte, mesmo na imprensa reacionária, o comentário mais suave é que se tratara de “um gol de Valido”.
A origem da expressão, hoje em desuso, é a partida final do campeonato carioca de 1944, entre Flamengo e Vasco. No fim do segundo tempo, Augustín Valido, jogador argentino que era ponta-direita do Flamengo, apoiou-se no zagueiro vascaíno Rafanelli, outro argentino, para dar uma cabeçada e marcar o gol que, apesar de irregular, deu o tricampeonato ao seu time. Alguns flamenguistas levantam até hoje que o gol de Valido teria sido regular, porém, o mais famoso (e estridente) deles – Ary Barroso, que irradiava o jogo – declarou que melhor ainda seria se o gol tivesse sido com a mão…
Infelizmente, a “prorrogação” de um mandato, que nem existia, não era tão divertida quanto a final do campeonato carioca. Era apenas coerente com o sr. Plínio Salgado defendendo as instituições, ou falando de suas “raízes”, para saudar um presidente cuja principal virtude era não ter passado “pelos comícios populares ou cartazes da rua”…
Mesmo assim, não deixou de ser engraçado, até na época, o discurso de Castelo Branco (o ocupante do Planalto, não o colunista) na Voz do Brasil do dia 24 de julho, sobre a “prorrogação” do seu mandato:
“Apesar da minha repetida rejeição à ideia, muitos políticos trabalharam para a sua consecução, formando-se mesmo uma corrente favorável e ponderável no meio revolucionário e político. Agora, é uma situação de fato. Pessoal e politicamente, preferia terminar o meu mandato a 31 de janeiro de 1966. Procurarei, então, cumprir o mandato até 15 de março de 1967”.
Para quem não tinha mandato algum, pois era apenas o resultado de um golpe de Estado – e de suas relações com Vernon Walters, depois diretor da CIA – Castelo era um artista. Parece até que os autores da submissa emenda da “prorrogação” (os udenistas Afonso Arinos e João Agripino) poderiam apresentá-la sem contar com a sua aprovação.
Somente aí, Lacerda descobriu algumas coisas surpreendentes: primeiro, que era contra a maioria absoluta nas eleições para presidente e vice-presidente da República (com a prorrogação do mandato de Castelo, fora aprovada uma emenda, de autoria do líder da ala jovem do PSD, deputado Ulysses Guimarães, instituindo a maioria absoluta: com Juscelino cassado, a proposta dificultava a eleição do candidato da UDN).
A falta de maioria absoluta na votação para presidente fora o argumento de Lacerda – e da UDN – durante 20 anos, para tentar impedir, sucessivamente, a posse de Getúlio, Juscelino e Jango, apesar da Constituição de 1946 não estabelecer essa condição para declarar os eleitos.
Agora, Lacerda descobrira que “votando a maioria absoluta e a prorrogação, o Congresso está votando pela ditadura militar que fatalmente se estabelecerá no país (…). Votada a prorrogação, não haverá eleição em 66 nem tão cedo”.
Era verdade, mas ninguém fizera mais por essa ditadura, inclusive intrigando alguns militares contra presidentes legalmente eleitos, do que Carlos Lacerda. Nas duas décadas anteriores, ele recorrera a tudo – e a qualquer coisa – para chegar a esse resultado, desde a falsificação conhecida como “carta Brandi” (atribuindo a Jango uma conspiração com Perón para instalar no Brasil uma “república sindicalista”) até a difamação da vida pessoal de nacionalistas, à agressão pura e simples de gente honrada que lhe parecesse um obstáculo a seus objetivos e à participação com destaque em todas as tentativas de golpe anteriores.
Por alguma razão, Lacerda acreditava que o papel dos militares brasileiros era instalar uma ditadura para levá-lo ao poder. Talvez, em um sujeito doentio, fosse apenas porque não conseguia chegar à Presidência pelas eleições. Talvez até a sua subserviência em relação à casta financeira dos EUA, lhe parecesse apenas um meio para chegar ao poder. No campo das ilusões doentias, tudo é possível. O fato é que, como mostraram os seus últimos e deprimentes anos de vida, sua única razão de existir era a fixação na Presidência da República – ou, mais precisamente, como disse alguém, em ser o ditador de uma ditadura fascista.
Ao apoiar o cancelamento das eleições, a direção da UDN tornou-se, de súbito, “anti-lacerdista”.
Mas não adiantou muito: depois do estrondoso fracasso nas eleições para governador em 1965, a ditadura acabou com a própria UDN, dissolvendo os partidos pelo AI-2. Restou, aos seus próceres, algumas conversas depressivas:
“Os Srs. Aliomar Baleeiro e Ernâni Sátiro [presidente da UDN] falaram-se, ontem, depois de alguns meses de mal-estar entre ambos. ‘Presidente, o que será feito do patrimônio da UDN?’, perguntou o Sr. Baleeiro. ‘Vou pedir a você e ao Oscar Correia que estudem o caso de liquidação da sociedade civil União Democrática Nacional’. (…) É ideia do Sr. Baleeiro sugerir a doação dos arquivos do Partido ao Instituto Histórico e Geográfico” (Carlos Castello Branco, JB, 28/10/1965).
15
Nosso objetivo nesta série é, principalmente, expor para os mais jovens alguns materiais históricos que lhes permitam formar um juízo próprio sobre o passado do país de que fazem parte, ao invés de absorverem passivamente o que, em geral, é apenas tendenciosidade ideológica – em geral esmagada ou, neo-ditatorial. O que não quer dizer que não coloquemos também nossa análise, interpretação, opinião ou mesmo, impressões. Mas é preciso que aqueles que nasceram depois conheçam o que fizeram os homens e mulheres daquele tempo difícil.
Um mês após a “eleição” indireta de Castelo Branco, a cassação de Juscelino era dada como certa por todos os jornais – e em todos os meios políticos. Em 2010, o udenista Rondon Pacheco, que foi chefe da Casa Civil no breve governo Costa e Silva, diria, sobre a cassação de JK, que “eles achavam que a eleição do Juscelino revogaria a Revolução. E ele era invencível naquela hora” (cf. Ronaldo Costa Couto, “Juscelino Kubitschek”, Câmara/Senado, 2011, p. 169).
Esse “eles” é bem característico: como se toda a responsabilidade estivesse nos militares – e os lacerdistas, a começar pelo próprio Lacerda, nada tivessem a ver com essa canalhice…
Em sua entrevista ao CPDOC/FGV, Ernesto Geisel, que foi chefe do Gabinete Militar no governo Castelo Branco, é mais específico: “Sua atuação [de Juscelino] em 1961, aconselhando o Jango a vir tomar posse do governo, fazia dele um adversário da revolução” (grifo nosso).
Geisel estava credenciado para fazer esse relato, pois foi, também, chefe do gabinete de Odílio Denys, quando este, e demais membros da junta de 1961, tentaram impedir a posse de Jango, após a renúncia de Jânio Quadros.
Além disso, Juscelino foi um dos seis senadores (houve também 55 deputados) que se opuseram ao ato adicional de 1961 (a emenda parlamentarista). Para ele, e com razão, essa emenda equivalia a um golpe de Estado, depois que o golpe já fora derrotado pela “campanha da legalidade” – liderada por Brizola e pelo general (depois marechal) Machado Lopes, comandante do III Exército.
Nas palavras de JK, em sua declaração de voto no Senado, a 2 de setembro de 1961:
“… se tivesse dependido de minha vontade, a Constituição teria sido respeitada, assumindo o poder presidencialista o cidadão João Belchior Marques Goulart, eleito em pleito livre exatamente para o fim de substituir o presidente da República nos seus impedimentos, ou assumir o governo em sua falta definitiva. Antes, lutei com todo o ardor pelo respeito à legalidade quando eu próprio representava essa legalidade. Não posso omitir-me ou renegar agora minhas convicções. Não passaria eu de um legalista em causa própria se mudasse de ponto de vista ao sabor de circunstâncias e caprichos de uma conjuntura.
“O mesmo raciocínio, a mesma coerência, a mesma consciência da sinceridade que devo ao meu país no respeito a mim mesmo levam-me a não votar pela extinção do regime presidencialista. (…) “Nada me parece mais melancólico em nossa futura paisagem política do que privar-se o povo de escolher de modo direto o seu presidente. As últimas campanhas presidenciais haviam adquirido um aspecto educativo e altamente cívico. Os candidatos e o povo travavam diálogo em praça pública, debatiam os mais graves problemas nacionais. O povo brasileiro – mesmo naquela parte constituída de criaturas esquecidas e sem voz nas decisões, marcadas e amortecidas pelas dificuldades de vida – passou a indagar o que dele queriam e a formular, depois de longo silêncio, as suas queixas, as suas reclamações e as suas aspirações.
“(…) Só o povo pode decidir sobre o seu próprio destino. Mudar o regime, adotar instituições novas sem consulta ao povo, é um erro. Ele é o único, no regime democrático, capaz de fixar as normas de nossa vida política. O povo não foi ouvido. O povo não sabe o que foi decidido no atropelo dessas votações realizadas em 24 horas. A mudança é fruto de uma pressão inaceitável no regime que praticamos. Esta a razão fundamental por que voto contra. Fico fiel ao povo – aos seus mandamentos, ao seu voto, que foi dado pelo presidencialismo” (cf. DCN, Seção II, 03/09/1964).
Três anos depois, na noite de 3 de junho de 1964, após o toque da campainha, ouviu-se, no plenário do Senado, a voz de seu presidente, o medíocre Auro de Moura Andrade (PSD/SP):
PRESIDENTE: Acha-se inscrito o Senhor Senador Juscelino Kubitschek. Sua Excelência ocupará a hora do Expediente, a fim de falar em explicação pessoal. Assim sendo, nos termos do Regimento Interno, Sua Excelência não poderá ser aparteado. Tem a palavra o Senhor Senador Juscelino Kubitschek.
A cassação de Juscelino fora decidida alguns dias após o seu voto favorável a Castelo Branco. No dia seis de maio – portanto, menos de um mês depois – o “Correio da Manhã” registrava, na primeira página:
“O general Mourão Filho, comandante da 4ª Região, concedeu ontem entrevista em que, negando-se a responder sobre a situação do sr. Juscelino Kubitschek, afirmou de si mesmo: ‘Em matéria de política, não entendo nem falo nada. Sou uma vaca fardada’.”
O “Correio da Manhã”, logo abaixo dessa declaração, inseriu a seguinte nota:
“A definição que o general deu de si mesmo causou estranheza na redação. Procuramos confirmá-la, na suposição de algum empastelamento no telex. A confirmação foi categórica.”
Como sabemos por suas memórias, Mourão Filho estava muito longe – mas muito longe mesmo – de ser uma pessoa modesta. Entretanto, ele nascera na mesma cidade de JK. Seria difícil pisar outra vez em Diamantina, se aparecesse publicamente como cassador do filho mais ilustre e mais popular da terra.
Logo em seguida, outro egresso do integralismo, o deputado Raimundo Padilha (UDN-RJ) – ex-membro do Conselho Nacional Integralista, ex-führer da Ação Integralista no Rio e um dos assaltantes do Palácio Guanabara no putsch de 1938 – iniciou, na Comissão de Relações Exteriores da Câmara, uma estúpida investigação sobre supostos favorecimentos financeiros aos países socialistas, durante a Presidência Kubitschek.
No dia 12 de maio, nos corredores do Ministério da Justiça, o secretário da Segurança de Lacerda, Gustavo Borges – um dos participantes da lastimável “república do Galeão”, na tentativa de golpe contra o presidente Getúlio, em 1954 – forneceu aos jornalistas um espetáculo ao estilo das entrevistas de Ribbentrop ou Goebbels, declarando que o governo já estava apetrechado para “liquidar o sr. Juscelino Kubitschek” (sic). Segundo Borges, havia um dossier que faria JK “dar com os costados na cadeia” e ele, Borges, “apenas aguardava ordens para cumprir a missão de prender o ex-presidente da República, fato que lhe ensejaria muita alegria” (CM 13/05/1964).
No dia 25 de maio de 1964, a cassação de JK era praticamente o único assunto político importante. Juscelino, então, divulga um manifesto à Nação:
“Venho suportando em silêncio, com o pensamento voltado para a consolidação das instituições democráticas, a atoarda crescente de um esquema de calúnias e difamações montado contra mim (…). Repito o que já disse em outro momento difícil de minha vida: Deus poupou-me o sentimento do medo.
“(…) tenho um limite, que me é traçado pela obrigação de proteger e defender o meu conceito de homem público e a minha honra pessoal. (…) chegou a hora de fazer face aos que, mais do que a mim, querem amesquinhar na minha pessoa as tradições democráticas do povo brasileiro e o próprio renome do Brasil.
“Chegou a hora de dizer que não recuarei em hipótese alguma. Não me intimidarei. Não deixarei de lutar, como um homem cuja força repousa apenas na identificação com os ideais de ponderável parte da opinião nacional. O processo terrorista que escolheram os meus adversários políticos não é indicado para obter de mim qualquer renúncia. Pelo terror não me levarão a uma desistência, renegação ou covardia. Quem exerceu a Presidência da República governando seu país com justiça exemplar, trabalho e perseverança sabe que o dever lhe impõe continuar a conduzir a sua vida sem capitulações e hesitações vergonhosas.
“Sempre respeitei sem discrepância todos os que me fizeram oposição. Governei com aguçado sentido de que o Brasil não me pertencia. Presidi as eleições como um juiz e passei por fim o cargo ao meu sucessor, que era também o candidato oposicionista e meu adversário. Se há algo que definiu, do ponto de vista político, a minha presidência, foi a fidelidade ao regime, a lealdade com que defendi as instituições e resguardei a paz da família brasileira.
“Lutei sem descanso, sem interrupção, pela independência econômica desta nação. (…) Meu julgamento, o povo já o fez e estou certo de que está desejoso de fazê-lo novamente ao primeiro ensejo. É só por isso que se movem contra mim os meus detratores. Não procuram eles atingir apenas um candidato, mas golpear o próprio regime democrático.
“Fique certa, entretanto, a Nação, de que não deixarei acusações sem resposta. E de que saberei, de uma ou de outra maneira, cumprir o meu dever.
“Rio de Janeiro, 25 de maio de 1964,
“Juscelino Kubitschek de Oliveira.”
No dia seguinte – segundo o depoimento de Geisel – na presença de Adhemar de Barros, governador de São Paulo, Costa e Silva, aos berros, exigiu de Castelo Branco a cassação imediata de Juscelino. No dia 3 de junho, Costa e Silva formalizou (era apenas uma formalidade, até porque já havia anunciado o resultado para a imprensa) o pedido de cassação do mandato – e dos direitos políticos, por 10 anos – de JK ao Conselho de Segurança Nacional.
À noite, Juscelino foi à tribuna do Senado:
O SR. JUSCELINO KUBITSCHEK (para explicação pessoal) (Lê o seguinte discurso):
“Senhor Presidente, na previsão de que se confirme a cassação dos meus direitos políticos, que implicaria na cassação do meu direito de cidadão, julgo do meu dever dirigir, desta tribuna, algumas palavras à nação brasileira. Faço-o agora, para que – se o ato de violência vier a consumar-se – não me veja eu privado do dever de denunciar o atentado que na minha pessoa vão sofrer as instituições livres. Não me é licito perder uma oportunidade que não me pertence, mas pertence a tudo que represento nesta hora.
“Julgo, sem jactância, ser este um dos mais altos momentos da minha vida pública. Comparo-o ao instante em que recebi a faixa presidencial, depois de uma luta sem tréguas contra forças de toda ordem, inclusive as da calúnia, que em vão tentaram deter a vontade do povo brasileiro. Naquela ocasião, assumi, perante a minha própria consciência, a determinação de não me deixar guiar por ressentimentos, por mágoas, por mais justas que fossem. Perante Deus, perante o povo, diante desta Casa, posso afirmar que, presidente da República durante 5 anos, zelei pela paz do Brasil, não autorizando, não permitindo, não pactuando com qualquer atentado à liberdade de quem quer que fosse e agindo sempre com dignidade administrativa. Neste momento, sinto uma perfeita correlação entre a minha ação presidencial e a iníqua perseguição que me estão movendo. É que a mesma causa continua viva, a mesma causa da defesa das instituições livres pela qual lutei.
“(…) Sou ainda o mesmo cidadão, ontem detentor do governo, Chefe Constitucional das Forças Armadas, aquele que amparou e promoveu os seus mais ferrenhos adversários. Hoje, sou um homem desarmado, sem possibilidade de reação material, mas disposto a reagir com a energia, a determinação e a coragem dos que combatem para cair de pé. Não tenho de que me defender. Pela própria mecânica do Ato Institucional, aos fulminados não é dado acesso às peças acusatórias. Voltam-se, assim, os revolucionários do Brasil contra as mais sagradas conquistas do Direito.
“Não sei exatamente do que me acusam. Só recolhi boatos e murmúrios de velhas histórias já desfeitas e desmoralizadas por contestações irretorquíveis. Já a Nação vive sob os efeitos do terror. E aqui expresso a minha solidariedade aos que estão sofrendo processos de inquirição que lembram os momentos mais dramáticos por que passou a humanidade. Se me forem retirados os direitos políticos, como se anuncia em toda parte, não me intimidarei, não deixarei de lutar. Do ponto de vista de minha biografia, só terei do que me orgulhar desse ato.
(…)
“Por que, então, Sr. Presidente, é o caso de perguntar-me, se me deveria envaidecer de tão grande privilégio – o de ser o alvo principal da luta antidemocrática – por que me invade neste instante uma tristeza das mais terríveis por que já passei em toda a minha acidentada vida pública? Essa tristeza nasce, sem dúvida, de que, se por um lado me oferecem uma oportunidade de glória, por outro lado ferem o nosso país, humilhando na minha pessoa a nossa civilização, degradando-nos no conceito das demais nações livres e fazendo da revolução algo que merecerá o repúdio de todos os democratas do mundo.
“É com esse terrível sentimento de pesar que espero a consumação da iniquidade que anunciam para breve. Meu voto, aqui, já serviu para eleger o atual Presidente da República, em cujo espírito democrático confiei, mas meu sacrifício, exigido pelo ódio e pela incompreensão, servirá para ajudar, numa nova luta, em favor da paz e da dignidade do povo brasileiro. Mais uma vez, tenho nas mãos a bandeira da democracia que me oferecem, neste momento em que, com ou sem direitos políticos, prosseguirei na luta, em favor do Brasil.
“(…) Homem do povo, levado ao poder sempre pela vontade do povo, adianto-me apenas ao sofrimento que o povo vai enfrentar, nestas horas de trevas que já estão caindo sobre nós. Mas delas sairemos para a ressurreição de um novo dia, dia em que se restabelecerão a justiça e o respeito à pessoa humana.
“… querendo-o eu ou não, a semente da injustiça, do arbítrio, da maldade, da crueldade, da violação da pessoa humana, do desrespeito, medrará, crescerá, dará frutos, e, depois, como tem acontecido invariavelmente, o castigo chegará, levando tudo de vencida.
(…)
“… o golpe, que na minha pessoa de ex-chefe de Estado querem desfechar, atingirá a vida democrática, a vontade livre do povo. Não me estão ferindo pessoalmente, mas a todos que se julgam no direito de escolher a quem desejam escolher para presidir o seu destino.
“Este ato é um ato de usurpação, e não ato de punição. (…) Muito mais do que a mim, cassam os direitos políticos do Brasil.
(…)
“Não somos nós, brasileiros, esses decapitadores, ávidos de mergulharem nas vidas alheias, no que elas têm de mais inviolável, para oferecer à degradação pública os seus homens de Estado, os que lutaram pelo engrandecimento do seu País. (…)
“Diante do povo brasileiro, quero declarar que me reinvisto de novos e excepcionais poderes neste momento, para a grande caminhada da liberdade e do engrandecimento nacional.” (Muito bem! Muito bem.! Palmas prolongadas. O orador é vivamente cumprimentado).
No dia 8 de junho, após a sua cassação, JK escreveria:
“O vendaval de insânias arrastará na sua violenta arrancada mesmo os meus mais rancorosos desafetos. Um por um, eles sentirão os efeitos da tirania que ajudaram a instalar no poder.”
Ele estava certo.
16
Em novembro de 1963, a situação que se desenvolvia – e, sobretudo, os seus perigos – estava, pelo menos em traços gerais, clara para muitos setores das forças nacionais, inclusive para o presidente da República. Nesse mês, alguns dias após o assassinato de Kennedy, o presidente João Goulart afirmou, em entrevista à revista “Manchete”:
“Estamos vivendo, neste momento, a mais grave crise por que já passou o Brasil em toda a sua história republicana. Caminhamos, aceleradamente, para um desfecho que, se não for evitado a tempo, virá abalar, em termos definitivos e imprevisíveis, a própria estrutura da nação, comprometendo todas as suas atuais conquistas e arruinando as suas imensas potencialidades futuras”.
Essa declaração fez com que a UDN promovesse uma barulhada no Congresso, acusando Jango de “golpista”. Da mesma forma, a mídia pró-ianque. Entretanto, Lacerda e Ademar de Barros, sentindo-se denunciados – ou seja, em posição de fraqueza – preferiram redobrar as ameaças golpistas contra o presidente. Em Miami, onde participava de uma reunião da famigerada SIP, o sr. Júlio de Mesquita, dono do “Estadão”, declarou que Jango seria derrubado em breve. Comentando o discurso do líder da UDN, Adauto Lúcio Cardoso, assinalava Oswaldo Costa, diretor do jornal “O Semanário”:
“Nas ameaças de Lacerda, de Ademar e do Julinho Mentira, o dr. Adauto (…) nada viu que lhe eriçassem os cabelinhos dos pruridos legalistas. Viu, porém, bichos de sete cabeças nos apelos à reflexão e ao bom-senso feitos pelo Presidente da República, no sentido de que se evitassem desfechos caóticos e subversivos para a crise” (O Semanário, 28/11 a 04/12/1963).
Às vezes, perde-se uma batalha não por falta de clareza, mas por falta de força – embora, o mais comum é não ter força por falta de clareza. No final de 1963, e início de 1964, talvez o que não estivesse claro fosse o caminho para conseguir a unidade das forças nacionais.
Já abordamos, em outro artigo, o papel da penetração do capital estrangeiro, durante o governo Juscelino, na origem e na sustentação do golpe de Estado de 1964 (cf. “Lembranças de 1964: o Brasil, o golpe de Estado e a verdade 3”, HP 30/05/2012).
Resta dizer que foi essa penetração, inédita na História do país, que levou a luta política a um acirramento também inédito após 1930, inclusive quando comparado aos acontecimentos de agosto de 1954. Era basicamente por essa razão que Jango definia a situação como “a mais grave crise por que já passou o Brasil em toda a sua história republicana”.
Porém, a respeito de Juscelino, sua trajetória foi no sentido de melhor assumir a questão nacional. Pode não ter sido suficiente para as necessidades do país, e pode-se até mesmo considerar que era tarde demais – entretanto, assim foi.
Hoje, algumas coisas estão quase totalmente esquecidas. Exatamente por isso, merecem ser lembradas, para que a grandeza de alguns homens – e a pequenez de outros – fique plenamente nítida.
Logo no início de seu mandato, ao lado de seus grandes planos (sua visão sempre foi mais longe que a de seus auxiliares, com uma exceção: o vice-presidente João Goulart, com quem dialogou em pé de igualdade e que foi, com o marechal Lott, um dos sustentáculos do seu governo), havia uma quase obsessão na política de Juscelino: encontrar um caminho que evitasse traumas semelhantes aos que, apenas dois anos antes, conduziram ao martírio do presidente Getúlio.
Quinze anos após a conclusão de seu governo, já cassado pela ditadura, esse problema permanecia na mente de Juscelino:
“Ao contrário do que acontecera a Getúlio Vargas, que chegara ao Governo fortíssimo e fora se enfraquecendo com o passar dos anos, eu conquistava terreno à medida que me aproximava do fim do quinquênio” (cf. Juscelino Kubitschek, “Por que construí Brasília”, SF, Brasília, p. 221).
Ou, no mesmo livro, ao referir-se à anistia concedida aos golpistas de Jacareacanga e à demissão de dois chefes de polícia que eram seus amigos pessoais, JK explica que as medidas “expressavam um sincero desejo de pacificar o país, traumatizado pelos acontecimentos que se seguiram ao suicídio do Presidente Getúlio Vargas” (p. 267/268).
Não resta muita dúvida sobre quem, antes de todos, estava “traumatizado” com aqueles acontecimentos: o próprio Juscelino (tão traumatizado que, no texto, significativamente, ele remete não à morte de Getúlio, mas ao que se seguiu, apesar de que, esses acontecimentos que se seguiram, foram aqueles que lhe garantiram a posse na Presidência).
Entretanto, ao mesmo tempo, Juscelino também se considerava um continuador de Getúlio – inclusive em seu mais famoso projeto, a construção de Brasília (JK relata: “Coube a Getúlio Vargas, que voltara à Presidência da República, trazido pelo voto popular, assinar o Decreto nº 32.976, de 8 de junho de 1953, que criava a Comissão de Localização da Nova Capital”).
No primeiro momento, porém, prevaleceu o primeiro aspecto. Daí, por exemplo, o seu discurso de 19 de junho de 1956, na comemoração do centenário de Ribeirão Preto:
“O nacionalismo discriminador, obsessivo, áspero, agressivo, que vê no estrangeiro um inimigo, um espião, uma força negativa; o nacionalismo exclusivista que pretende recusar a colaboração alienígena é uma aberração, uma contradição com tudo o que formou o Brasil, país que soube vencer e conquistar a todos os que aqui vieram pela sua força íntima, pela fraternidade de seu povo, pelas possibilidades de uma vida útil, pelos horizontes que apresenta a todos. (…) Não podemos deixar-nos envenenar pelo jacobinismo estreito que pretende isolar o nosso povo dos outros povos.”
Como observaram muitos nacionalistas, JK não estava falando de um problema real – nenhum nacionalista jamais opusera o Brasil ao “estrangeiro” em geral, isto é, a todos e quaisquer outros países. Esse nunca foi o nosso problema. O que ele estava fazendo era, ilusoriamente, diluir o imperialismo, sobretudo norte-americano, numa bacia fantasiosa que denominava “colaboração alienígena”. Aliás, o adjetivo escolhido para essa “colaboração” acabava por demonstrar a tentativa inconsciente de considerar que os gatos eram lebres. Já naquela época, “alienígena” era uma palavra estranha para designar uma “colaboração” amistosa. Da mesma foma que as duas palavras juntas (“colaboração alienígena”) mostravam a divisão de quem emitia semelhante expressão.
Enfim, com esse discurso, JK estava colocando uma pecha sobre o nacionalismo – o que é mais claro no trecho final, ao evocar os fantasmas que certos setores sociais enxergavam (e ainda enxergam) na Revolução Francesa, especialmente em seu período jacobino.
Evidentemente, o nosso problema não era isolacionismo – ou uma política excessivamente nacionalista – nem foi isso que conduziu à crise de agosto de 1954. O nosso problema era, e continua sendo, o oposto.
No entanto, ao contrário da atual presidente, o percurso de JK foi, em meio à vicissitudes e solavancos, para a esquerda. Compare-se o trecho acima com este outro, sobre as relações de seu governo, três anos após, com o FMI:
“As exigências feitas pelo Fundo eram as seguintes: execução de um Plano de Estabilização Monetária, cujos itens principais eram a fixação de preços, não muito altos, para o café, e o lançamento, no câmbio livre, de todas as importações.
(…)
“Em face da minha resistência, o Fundo alargou sua intransigência e desse choque de pontos de vista resultou o rompimento do meu governo com o Fundo Monetário Internacional. Assim agi porque os itens, que consubstanciavam aquelas exigências, constituíam, sem a menor dúvida, a súmula de um programa, tendo como objetivo a aniquilação do Brasil. Pretendia-se paralisar o país — cuja extensão territorial é imensa – tornando proibitivo o uso da gasolina. E quanto ao trigo e aos fertilizantes? As consequências seriam, igualmente, desastrosas. O povo, já subalimentado, veria o pão desaparecer de sua mesa; e a nossa ronceira agricultura mais ronceira iria tornar-se por falta de fertilizantes que lhe aumentassem a produtividade e, em consequência, condenar-se-ia à estagnação a população rural, que representava dois terços do volume demográfico brasileiro.
“Na época, o Fundo era presidido pelo Sr. Jacobson, representante da Suécia e intransigente defensor das ideias monetaristas. Ele me visitou certa vez. Na palestra que mantivemos, condenou tudo quanto eu vinha realizando em favor do desenvolvimento do país, insinuando que a diretriz, que deveria seguir, deveria ser a de procurar reduzir a inflação a 6%, nem que, para isso, tivesse de paralisar todas as obras programadas, inclusive a construção de Brasília. De nada valeram os meus argumentos, o que me obrigou a romper com o Fundo Monetário Internacional.
“Assim, assumi a responsabilidade pelo rompimento com absoluta tranquilidade. O passo que dei era, de fato, grave, pois ele implicaria o fechamento automático, para o Brasil, das portas de todas as agências financeiras internacionais. Mesmo assim, prossegui na rota traçada e concluí, nos prazos prefixados, não só todas as obras programadas, mas, igualmente, construí Brasília e fiz a transferência da sede do governo” (cf. Juscelino Kubitschek, “Por que construí Brasília”, SF, Brasília, 2000, p. 457/458).
[Celso Furtado – em “A Fantasia Desfeita” – fornece um relato extremamente interessante do rompimento do governo JK com o FMI. Mas deixaremos esse relato para um artigo posterior.]
É agora mais fácil, a partir das posições de Juscelino ao final de seu governo, perceber porque os entreguistas lhe votavam tão grande ódio. Ele fizera o país crescer – o que também correspondia à sua sensibilidade em relação ao povo. Ao contrário de certas interpretações, o crescimento desses anos se deu em função, sobretudo, do investimento público – e não das concessões ao capital estrangeiro.
É, aliás, o que JK defende implicitamente ao final de seu livro “Por Que Construí Brasília”, em capítulo intitulado “A questão do subdesenvolvimento”:
“… o grosso do Programa de Metas se concentrou em energia e transportes. Neles se incluíram obras como Furnas, Três Marias e toda a série de importantes estradas pavimentadas que revolucionaram o sistema de transporte do Brasil. Acredito que muitos brasileiros não se dão conta até hoje do real alcance dessas obras e do extraordinário esforço despendido pelo meu governo, para que elas fossem realizadas. Alguns dos projetos significaram, na realidade, uma mudança de escala para a técnica e a engenharia brasileiras, pois integraram definitivamente o nosso país na era das grandes barragens e dos sistemas elétricos interligados. Outro exemplo pode ser encontrado nas usinas siderúrgicas que foram erguidas. Só a Cosipa e a Usiminas, produzindo hoje [1975] quase dois milhões de toneladas de aço, adicionaram à economia nacional o dobro da quantidade que produzíamos de aço, quando assumi as rédeas do governo. Isto quer dizer que, se não fosse essa iniciativa do meu quinquênio, o Brasil teria entrado em colapso, no que diz respeito a esse setor vital da atividade industrial.
“O mínimo que posso afirmar, portanto, é que ao período de investimentos do pós-guerra foram acrescentados mais cinco anos, nos quais imensa massa de recursos foi plantada, sob cuidadosa orientação e vigilância, nos pontos estruturalmente fracos da nossa economia. (…) tão pronto quanto possível, reorientou-se parte desse esforço, disciplinando-o na direção do objetivo de se atender a menor ganho econômico imediato e se procurar maior justiça social na distribuição de recursos. Criou-se, para isso, a Sudene, cujo impacto benéfico se tem feito sentir plenamente, nos últimos anos, ao ponto de ter proporcionado ao Nordeste uma taxa de desenvolvimento compensatório de seu atraso, isto é, mais rápida do que a registrada nos demais setores da economia nacional”.
Entretanto, as concessões ao capital estrangeiro foram suficientes para açular – e sustentar – as múmias do entreguismo, que desde 1930-32 eram sistematicamente derrotadas. Uma interessante matéria da época é bastante esclarecedora:
“Em artigo na edição em língua portuguesa do ‘New York Times’, o inefável ‘professor’ Eugênio Gudin atacou a indústria nacional em dois de seus maiores empresários, Matarazzo e José Ermírio de Morais, a ambos acusando de esgotarem seus esforços e recursos ‘nas campanhas com que tratam de afastar a concorrência para manutenção de suas posições monopolísticas’. Não sabemos que campanhas são essas, mas o gato velho da ‘Bond and Share’ pôs logo adiante o rabo de fora, ao basear as suas elucubrações entreguistas num conceito de seu patrão, Nelson Rockefeller, segundo o qual (o governador do Estado de Nova York devaneava sobre a ‘Aliança para o Progresso’) cumpre remover (na América Latina) ‘os controles e regulamentos que restringem o empreendimento e mantêm a posição monopolística de indústrias de alto custo de produção’. Indústrias de alto custo de produção são, para os gringos, as indústrias de capital nacional de nossas repúblicas, que eles tudo fazem para arruinar, derrubando, onde podem, as barreiras alfandegárias que as protegem.
“O antimonopolismo e o antiprotecionismo do sr. Rockefeller atingem as raias do cinismo, sabido como ele e seus irmãos detêm as rédeas do controle de um dos dois ou três maiores trustes do mundo e são cidadãos de um país, cuja indústria deitou raízes e prosperou à sombra da mais alta proteção aduaneira. É da gente morrer de tanto rir, vendo a ‘Standard Oil’ – logo a ‘Standard Oil’! – investir, como Dom Quixote contra os moinhos de ventos, sobre monopólios existentes em nações exploradas e dominadas por ela e outros trustes ianques, cada qual mais rapace, exigindo de seus governos, em nome da ‘livre empresa’, a ‘liberdade de concorrência’, isto é, a abolição dos controles cambiais, o que já conseguiram na totalidade de nossos países, a redução ao mínimo das tarifas e outras garantias para a ‘livre competição’, livre contanto que os países socialistas sejam postos fora da lei desse ‘mercado livre’ e, com eles, os industriais ‘nativos’…
“Na defesa do vergonhoso e revoltante processo espoliativo da pátria onde nasceu por engano, o decrépito ‘professor’ Gudin não se peja de fazer a apologia da famigerada Instrução 113 da SUMOC, de sua autoria, ou melhor, da autoria do Secretário-Adjunto do Departamento de Estado, Herbert May, que a ditou para o sr. Otávio Gouvêa de Bulhões, quando por aqui andou, com a missão de ajudar os ‘patriotas’ da UDN a derrubar Getúlio e, depois, de ‘orientar’ o governo do nauseabundo Café Filho. A Instrução destinava-se, escreve Gudin, ‘a remover os obstáculos à entrada dos empreendimentos, da técnica e do capital estrangeiros’, isto é, a facilitar a dominação imperialista sobre o nosso país. Esse resultado foi plenamente conseguido. Nossa indústria foi desnacionalizada. Das 66 maiores empresas industriais que funcionam entre nós, 32 são controladas pelos gringos, 19 pelo Estado e 15 apenas pela iniciativa privada brasileira. E o pouco que ainda resta em nossas mãos vai rapidamente sendo transferido para as munhecas ávidas dos gringos. Ainda recentemente, o ex-ministro do Trabalho, sr. João Pinheiro Neto, citava os casos da ‘Vulcan’, indústria de plásticos nacional, comprada pela ‘Imperial Chemical’, e da ‘Pulvolac’, indústria nacional de leite em pó, comprada pela ‘Nestlé’. Até a ‘Gessy’ (sabonetes), a ‘Caracu’ (cerveja) e a ‘Cica’ (doces) já se foram, juntamente com o Banco Hipotecário Lar Brasileiro, adquirido pelo Chase Bank de David Rockefeller, maninho de Nelson e, como este e o velho Gudin, partidário acérrimo das ‘economias abertas’… para eles.
“Mas, convenhamos, a culpa não é só dos gringos. A culpa é maior dos industriais brasileiros, que, com raras exceções, têm medo de agarrar pelos chifres o touro, que calmamente se vai servindo deles com molho do ‘anticomunismo’ preparado expressamente pelo IBAD para facilitar o ‘mastigo’ imperialista (“Rockefeller contra nossa indústria”, O Semanário, 23 a 19 de maio de 1963).
(continua)