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Alguns leitores manifestaram estranheza por nossa afirmação de que, no dia 2 de abril, quando o general Ladário Telles “disse ao presidente que ainda havia condições para resistir”, Jango estava “provavelmente certo” quando respondeu “não estar disposto a garantir seu mandato às custas de uma guerra sangrenta” (HP 09/05/2014).
Não pretendíamos, com esse trecho, proferir um julgamento geral sobre as decisões, desde o início do golpe, do presidente Goulart. Como está claro (embora não tanto que não provocasse a estranheza mencionada), referíamo-nos a um momento específico: ao dia 2 de abril, com o Rio, São Paulo, Recife, Brasília – e praticamente todo o território nacional, com exceção de parte do Rio Grande do Sul – já tomados pelos golpistas, e, ao contrário de 1961, com a coesão no Sul claramente prejudicada. Ladário sabia que não se tratava de um problema militar – a decisão somente cabia ao presidente. Apresentar a alternativa, equivalia, para o general, a dizer que, fosse qual fosse a decisão, estaria pronto a cumpri-la.
Quando à decisão do dia anterior, após a visita de San Tiago Dantas ao Palácio Laranjeiras (v. HP 07/05/2014), em uma declaração posterior – mencionada por Jorge Ferreira em sua biografia de Jango, e, também, por Raul Ryff, em sua entrevista ao CPDOC/FGV – o presidente teria dito que, se soubesse o que viria, teria resistido.
Mas esse é o problema, expresso por tantos verbos no condicional (aliás, futuro do pretérito): ninguém sabia o que viria. Por isso são, no mínimo, excêntricos aqueles depoimentos que atribuem à supostas falhas de Jango a responsabilidade pelo golpe de 1964. Os responsáveis pelo golpe foram os golpistas – e seus mandantes. Não contarão com nossa ajuda para se livrar dessa carga.
Não é possível condenar os homens por agir de acordo com a consciência que tinham em determinado momento. O que se pode fazer é analisar as insuficiências passadas, para que não se repitam no futuro.
Ninguém, no primeiro momento, encarou o golpe de 1964 como diferente de algumas rupturas anteriores, onde logo se encontrava um caminho para voltar à “normalidade”.
Aqui, tocamos em outro elemento que desmoraliza as versões neo-ditatoriais, de que o golpe teria sido uma resposta a outro golpe, vindo de Jango ou da “esquerda”: todas as tentativas de romper com a ordem legal, de outubro de 1945 até abril de 1964, partiram de um único lado.
A legalidade, apesar de todas as limitações da Constituição de 1946, era a legalidade nacional, uma decorrência, ao longo de anos de História, do Estado nacional construído a partir da Revolução de 30. Terminado o Estado Novo, período mais agudo de conflito com as forças antinacionais que tentavam restaurar o statu quo, a Constituição de 1946 dotara o país de instituições que, bem ou mal, correspondiam ao Estado nacional edificado nos 15 anos do primeiro governo Getúlio.
Hoje, devido às críticas que se fizeram à Constituição de 1946, frequentemente é esquecida essa sua essência e origem. No entanto, sua marca aparecia, por exemplo, no seguinte dispositivo dessa Constituição:
“Art. 148: A lei reprimirá toda e qualquer forma de abuso do poder econômico, inclusive as uniões ou agrupamentos de empresas individuais ou sociais, seja qual for a sua natureza, que tenham por fim dominar os mercados nacionais, eliminar a concorrência e aumentar arbitrariamente os lucros”.
No período que se seguiu, sempre a tentativa de romper com a legalidade partiu do lado pró-imperialista – e a defesa da legalidade sempre foi a bandeira das forças nacionais. A urgência, na primeira metade da década de 60, de avançar o quadro institucional – aumentar a democracia formal, com uma reforma da Constituição, adaptando-a às necessidades concretas do país, após 18 anos de mudanças econômicas e desenvolvimento político – apenas reforça esse fato, pois a reforma sempre foi concebida como um aperfeiçoamento da legalidade existente e (exceto um ou outro exaltado sem condições de determinar a tendência principal) estritamente por via congressual, inclusive no discurso de Jango no comício da Central do Brasil (v. HP 23/03/2012 e 28/03/2012).
Não foi de João Goulart que partiram os atos de banditismo institucional.
Na introdução de 1895 para “Lutas de Classe em França de 1848 a 1850”, Friedrich Engels escreveu algo muito pertinente:
“A ironia da história mundial coloca tudo de cabeça para baixo. (…) Os partidos da ordem, como eles chamam a si mesmos, perecem na legalidade que eles mesmos estabeleceram. Gritam, desesperados, com Odilon Barrot: ‘la legalité nous tue’, a legalidade é a nossa morte, enquanto nós, com essa legalidade, tornamos mais volumosos os nossos músculos e mais coradas as nossas bochechas, com a aparência de vida eterna. E, se nós não somos loucos de lhes fazer o favor de permitir que nos arrastem para a luta de rua, serão eles que romperão essa legalidade” (Karl Marx und Friedrich Engels, Werke, Band 7, Dietz Verlag, Berlin, 1960, p. 525).
A posição dos nacionalistas mais consequentes é bastante bem expressa por Osny Duarte Pereira, em livro de 1962:
“… [a falsificação da democracia pelo poder econômico] não significa que devamos abolir a democracia e recorrer a uma ditadura. Ao contrário, deveremos apegar-nos à defesa das liberdades, para que, esclarecendo um número cada vez maior de brasileiros, um dia, os esclarecidos sejam maioria e os monopólios não mais possam fazer as leis no Brasil” (cf. Osny Duarte Pereira, “Quem Faz as Leis no Brasil?“, Cadernos do Povo Brasileiro, Vol. 3, Civilização Brasileira, Rio, 1962).
Assim, o golpe de outubro 1945, açulado publicamente pelo embaixador dos EUA, Adolf Berle Júnior (v. o comportamento abana-rabo dos entreguistas no livro de Stanley Hilton, “O Ditador e o Embaixador”, Rio, Record, 1987), é sucedido pela derrota do candidato da UDN, Eduardo Gomes. O vira-vira antinacional do governo Dutra tem como resultado a eleição de Getúlio em 1950 (outra vez com a derrota da UDN e de Eduardo Gomes). A tentativa de golpe em 1954 é exorcizada pelo contragolpe de 11 de novembro de 1955, que garantiu a posse do presidente eleito, Juscelino Kubitschek.
Além do fracasso de intentonas menores, como a tentativa de usar o STF para impedir Getúlio – e, depois, Juscelino – de tomar posse (com base numa suposta necessidade de “maioria absoluta”, totalmente ilegal) ou os melancólicos putsch de Jacareacanga e Aragarças (o primeiro ocorreu 10 dias após a posse de JK, que desabafou: “Eu ainda nem tive tempo de errar”. Mas era pelos acertos passados – a vitória sobre Juarez Távora e o golpismo de Café Filho, Carlos Luz e Lacerda – e pelos possíveis acertos futuros, que tentavam derrubá-lo).
Nas eleições de 1960, a UDN – inclusive Lacerda – foram obrigados a apoiar um candidato pouco identificado com o parco ideário (se é que isso existe) entreguista. Um dos próceres da UDN – aliás, um dos principais –, o ministro das Relações Exteriores do governo Quadros, Afonso Arinos, conhecido pela abissal chatice de seus discursos, disse, ao menos, uma frase notável: “Jânio foi a UDN de porre”.
Mas a frase não é exata: Jânio não era a UDN. O que Arinos estava descrevendo, dessa forma, era a inviabilidade do governo de que fazia parte – e, de maneira mais inconsciente ainda, a inviabilidade da própria UDN, no único momento em que esteve próxima do poder por via eleitoral.
Como já mencionamos, o nacionalismo avançava dentro da própria UDN. Entre os fundadores da Frente Parlamentar Nacionalista, estavam Seixas Dória (UDN-SE), José Sarney (UDN-MA), Gabriel Passos (UDN-MG), Adail Barreto (UDN-CE), Djalma Maranhão (UDN-RN). Até o deputado Dix-Huit Rosado (UDN-RN) filiou-se, também, à Frente Parlamentar Nacionalista.
Não eram udenistas de pouca importância, sobretudo em suas regiões – e o que seria da UDN sem as suas seções regionais? É verdade que houve deles – por exemplo, o deputado cearense Adail Barreto – quem rompesse definitivamente com a UDN, por conflito aberto com sua cúpula, e se filiasse ao PTB e outros partidos. Porém, a maioria, inclusive o ministro das Minas e Energia de Jango, Gabriel Passos, tenaz defensor da Eletrobrás e da Petrobrás, permaneceu na UDN.
No entanto, o Brasil modificara-se – ou, melhor, foi modificado pela política econômica de concessões aos monopólios externos, a partir, no governo Café Filho, da gestão de Gudin no Ministério da Fazenda e Bulhões, na Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), antecessora, em vários sentidos, do atual Banco Central.
Embora o governo Juscelino tenha encerrado o aspecto que, na época, parecia central na política de Gudin e Bulhões – o bloqueio aos investimentos públicos -, em outro aspecto importante, aquele condensado na Instrução 113, da SUMOC, essa política não foi alterada. Pelo contrário, foi no governo JK, sob as condições políticas que já abordamos (v. HP 06/06/2014), que ela foi, infelizmente, levada à prática. A importância desse problema não pode ser subestimada. Como escrevem duas economistas em interessante artigo, “pode-se afirmar que o ABC paulista surgiu no bojo desses investimentos” (cf. Ana Cláudia Caputo e Hildete Pereira de Melo, “A Industrialização Brasileira nos Anos de 1950: Uma Análise da Instrução 113 da SUMOC”, Est. Econ., São Paulo, 39(3): 513-538, jul-set 2009).
A questão é que a maior parte deles nem ao menos – e com toda razão – seriam considerados “investimentos” antes da Instrução 113.
Geralmente, e por sólidos motivos, dá-se atenção à primeira parte dessa Instrução, aquela que permite “que a importação de máquinas e equipamentos fosse registrada como investimento direto estrangeiro, na base de câmbio livre” pelas multinacionais, com sua mais escandalosa consequência: a entrada no país de máquinas usadas, já obsoletas nos países centrais, como se fossem “investimento estrangeiro”. Em resumo, uma vampiresca transação de um capital não somente “morto”, mas já destinado ao sepultamento, que encontrava sobrevida ao sugar as artérias de nossa economia.
Porém, a Instrução 113 continha outra “permissão”, coerente com a anterior, e não menos escandalosa: permitia que “as remessas de lucros fossem feitas a uma taxa de câmbio preferencial mais baixa”. Esse sistema de duplo câmbio (um para as importações das máquinas usadas e outro para as remessas de lucros ao exterior, as duas taxas favorecendo as multinacionais) “elevou substancialmente a taxa de retorno do investimento estrangeiro” (op. cit., p. 534).
As principais multinacionais beneficiadas foram: GM, Ford, Volkswagen, Bosch, Krupp, Caterpillar, Pirelli, Goodyear, Firestone, General Electric, Union Carbide, Solvay, Bayer, Pfizer, Kurashiki e Alcan (cf. Ana Cláudia Caputo e Hildete Pereira de Melo, art. cit., p. 534).
Nada menos que 43,5% do que, acoitado pela Instrução 113, entrou no país entre 1955 e 1963 – quando o dispositivo foi revogado – tem origem nos EUA, com a Alemanha em longínquo segundo lugar (18,7%). A maior parte, entrou entre 1957 e 1960 (art. cit. p. 524 e 521).
A conclusão das autoras, depois de analisar as licenças de importação da Carteira de Comércio Exterior (CACEX) do Banco do Brasil (a antecessora da Secex atual), é bastante interessante:
“Mesmo não sendo quantitativamente expressivos se comparados com os investimentos globais realizados na economia brasileira entre 1955 e 1963, esses investimentos diretos sem cobertura cambial desenharam a pata estrangeira do tripé industrial nacional. Estabeleceram-se grandes empresas multinacionais, diversas empresas nacionais fizeram aliança com o capital estrangeiro e isso mudou o perfil da indústria brasileira. O capital privado nacional perdeu parcela de sua participação na vida econômica brasileira, enquanto o capital estrangeiro aumentava sua voz, tanto econômica como politicamente. Isto não significa afirmar que o capital privado nacional tenha sido prejudicado em termos absolutos por tal política, mas este declínio relativo deveu-se tanto ao crescimento do setor público como aos benefícios ao setor estrangeiro oriundos, naqueles anos, das políticas governamentais. Provavelmente, esta política elevou o tamanho relativo da pata estrangeira do tripé industrial em detrimento do capital privado nacional e inspira a interpretação da internacionalização da economia brasileira”. (art. cit., p. 535).
O livro já mencionado de Osny Duarte Pereira apresenta um interesse que vai além de seu tema específico: aparecem nele, com total clareza, o papel de antros como a Consultec e o Ipes, numa obra publicada dois anos antes do golpe de Estado.
Em especial a Consultec, que se tornaria notória vinte anos depois, com a publicação, em 1981, por René Dreifuss, de “1964: A Conquista do Estado”, merece menção. Era, dizia Osny, uma “firma de advocacia administrativa”:
“A Consultec emite pareceres sobre solicitação de empréstimos de empresas estrangeiras ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, elabora discursos, projetos de leis, decretos, regulamentos, convênios (…). Seus membros, além de cargos em postos chaves da administração pública, são muitos deles diretores de refinarias, empresas automobilísticas, enfim, de grandes entidades com enormes interesses na administração pública” (Osny, op. cit.).
A ata de transformação da Consultec em sociedade anônima foi lida na Câmara, a 23 de fevereiro de 1962, pelo deputado paraense Clóvis Ferro Costa (por sinal, da UDN; depois de cassado e após longos anos de perseguição, Ferro Costa seria, no governo Sarney, Consultor-Geral da República).
Quem eram os acionistas da Consultec?
“Em 1956, das 1.000 ações, 200 estavam com o norte-americano Earle Maury Elrich e as restantes com seis conhecidos representantes de empresas americanas” (Osny, op. cit.).
Porém, como disse o deputado Ferro Costa, “os negócios dessa organização civil ampliaram-se tanto, essa empresa se irradiou de tal forma, passou a ser tão dominante na vida pública, e na administração brasileira, que há pouco tempo, pouco mais de um mês, a sociedade civil se transformou em sociedade anônima” (cf., Diário do Congresso Nacional, 27/02/1962, Seção I, p. 634).
Em seguida, Ferro Costa leu os nomes dos “acionistas” da Consultec S.A., começando pelo “sr. Lucas Lopes, ex-presidente do BNDE e ex-ministro da Fazenda, atualmente presidente da HANNA”.
O segundo nome era o do “Embaixador do Brasil nos Estados Unidos da América, o sr. Roberto de Oliveira Campos”, também ex-presidente do BNDE.
Entre os outros nomes que constavam da ata constitutiva da sociedade anônima Consultec – publicada, como era obrigatório na época, no Diário Oficial, ed. 12/01/1962 – estavam “Otávio Gouveia de Bulhões, diretor da SUMOC” e “Mário Henrique Simonsen, do Conselho Nacional de Economia”.
Temos, só até aqui, uma lista de futuros ministros econômicos da ditadura.
Mas o rol também incluía “Alexandre Kafka, do Conselho Nacional de Economia e da Fundação Getúlio Vargas” – na verdade, Kafka era um funcionário do FMI (seria seu diretor-executivo por 32 anos) que foi assessor de Gudin no Ministério da Fazenda.
Outro nome era “Glycon de Paiva Teixeira”, outro ex-presidente do BNDE, “assessor da Companhia Vale do Rio Doce, diretor da Refinaria de Capuava e do grupo econômico que está pesquisando petróleo na Bolívia” – e defensor, durante décadas, do capital estrangeiro na exploração de nossas jazidas minerais (inclusive, evidentemente, das petrolíferas).
Eram, também, da Consultec, o colunista econômico João Alberto de Leite Barbosa , de “O Globo”, e o editor de economia do “Estadão”, Frederico Heller.
Além disso, estavam na ata da Consultec, lida pelo deputado Ferro Costa:
“John Cotrim, presidente de Furnas; Mário Tibau, diretor da CEMIG; Antônio de Abreu Coutinho, chefe da Divisão da SUMOC encarregada do Balanço de Pagamento; Aniceto Cruz Santos, da Comissão de Marinha Mercante; Dênio Nogueira, chefe do gabinete do sr. Gouveia Bulhões na SUMOC [depois, sob a ditadura, primeiro presidente do Banco Central]; Gabriel Ferreira Filho, advogado do BNDE; Vítor da Silva Alves Filho, diretor do BNDE; Edmar de Sousa, chefe do setor de administração do BNDE; Jacinto Xavier Martins Júnior, da Rede Ferroviária Federal; Teodoro Onega, do Instituto de Tecnologia; João Batista Pinheiro, diplomata, diretor do BNDE; Mário da Silva Pinto, da CACEX; José Garrido Torres, representante do governo brasileiro na alta direção do BID e figura de proa do IPES, do departamento econômico da Fundação Getúlio Vargas e do Conselho Nacional de Economia; Hélio Schitler Silva, assessor da diretoria do BNDE”.
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O avanço da consciência nacional na primeira metade dos anos 60, a que nos referimos, correspondia a uma situação objetiva, provocada pela intensa penetração do capital estrangeiro, sobretudo norte-americano, a partir de 1955. Dois exemplos de suas consequências:
“Entre 1957 e 1959, ‘pereceram ou cessaram a operação 102 empresas industriais farmacêuticas’. (Publicações do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos do Estado de S. Paulo em ‘Última Hora’ de 25-1-1960)“ (cf. Osny Duarte Pereira, “Quem Faz as Leis no Brasil?“, CPB, V. 3, Civ. Bras., 1962).
Entrevistado por “Última Hora”, edição de 05/02/1960, o deputado Unírio Machado (PTB-RS), posteriormente autor de “A indústria farmacêutica no Brasil: desnacionalização, preço, similares, fraudes” (1963) e de “20 anos da Indústria da Doença” (1982), relatava:
“Só em 1958 (…) o Laboratório Moura Brasil-Orlando Rangel foi absorvido pelo grupo Siech; o Laboratório Sanitas foi dominado pela LEO; a Endoquímica pela Mead-Johnson; o Vicente Amato pela Usofarma e assim sucessivamente”.
Dos 30 laboratórios mais importantes em vendas, mostrava o deputado, somente dois eram agora “genuinamente nacionais”, contra 28 que eram filiais de multinacionais. Mesmo incluindo as empresas menores, o capital nacional passara a ser minoritário: 43% contra 57% de empresas externas.
O deputado Unírio Machado seria cassado pela ditadura em 1969.
O outro exemplo, também extraído do livro de Osny Duarte Pereira, é interessante pelo pioneirismo:
“Parece que ocorre pela primeira vez na História esse episódio. Em vez dos monopólios estrangeiros trazerem capitais para inverter no Brasil, um país subdesenvolvido, acontece exatamente o contrário. O Brasil empresta dinheiro aos monopólios, através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, entidade estatal brasileira, para os monopólios inverterem no Brasil, em vez de emprestar a brasileiros cujos lucros permaneceriam no país” (Osny, idem).
A concessão de empréstimos públicos às empresas estrangeiras foi proibida pelo artigo 39 da Lei de Remessa de Lucros (Lei nº 4.131), assinada pelo presidente Goulart em setembro de 1962, à exceção de empresas externas “em setores de atividades e regiões econômicas de alto interesse nacional, definidos e enumerados em decreto do Poder Executivo, mediante audiência do Conselho Nacional de Economia”.
Essa compreensível exceção foi suficiente para que a ditadura e depois o governo Fernando Henrique incluíssem, por decreto, como “de alto interesse nacional” praticamente todos os setores em que as multinacionais estão presentes no Brasil.
Porém, considerando o avanço da consciência nacional na primeira metade da década de 60, como, então, o golpe foi possível? Obviamente, ele não seria necessário para o imperialismo, se o entreguismo fosse apoiado pela população – e se a consciência nacional estivesse regredindo, e não avançando. A violência com que foi desencadeado é a própria medida da impopularidade, a tal ponto que a ditadura decretou, com a dissolução dos partidos, a própria morte da UDN. Agora, ela deixara de ter utilidade e passara a ser um estorvo. Sua sucessora, a infeliz ARENA, jamais deixou de ser um partido de fancaria, um pseudo-partido – meramente homologatório, como diria o eloquente senador gaúcho Paulo Brossard.
Além disso, a resistência dos militares ao golpe de Estado (e, portanto, a repressão sobre eles após o golpe) é ainda bastante subestimada. A atribuição à ditadura de uma qualidade principalmente militar – e não principalmente pró-imperialista – somente serviu para ofuscar ou esconder o que realmente importa: o objetivo do golpe, e da ditadura instalada com ele, era “adaptar” o Estado nacional à dependência econômica do imperialismo, intensificada a partir da última metade da década de 50. Ou, em outras palavras, tratava-se de “diminuir”, conter ou domar, o caráter “nacional” do Estado – que era, sobretudo, uma construção da Revolução de 30 – para moldá-lo, em alguma medida, ao crescente predomínio dos monopólios financeiro-industriais, sobretudo norte-americanos, na economia.
Mas isso só era possível pela violência. Por consequência, houve uma “gigantesca repressão aplicada aos militares desde o primeiro momento da ditadura” (cf. Cláudio Beserra de Vasconcelos, “A política repressiva aplicada a militares após o golpe de 1964”, IFCS/UFRJ, 2010, p. 90).
Era a tentativa de expurgar o Estado do que havia nele de mais nacional – desde as lideranças militares até as equipes de cientistas do Instituto Oswaldo Cruz e do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), que tornavam o Brasil especialmente respeitado em ciência, e os artistas da Rádio Nacional, o mais popular e bem sucedido empreendimento da cultura nacional.
Assim, logo na primeira leva de cassações, foram atingidos o marechal Osvino Ferreira Alves e os generais Luiz Gonzaga de Oliveira Leite, Sampson da Nóbrega Sampaio e Henrique Cordeiro Oest. Nenhum deles estava mais na ativa das Forças Armadas, mas a ditadura não se contentou com isso: cassou seus direitos políticos por 10 anos, juntamente com o sargento – e deputado federal pelo PTB da Guanabara – Antônio Garcia Filho.
Como já mencionamos, o ato complementar nº 3 afastou outros 122 militares – e o nº 4 cassou os direitos políticos de 37. A começar pelos generais Ladário Pereira Telles, Oromar Osório, Arnaldo Augusto da Matta, Euryale de Jesus Zerbini, Nelson Werneck Sodré, Albino Silva, Anfrísio da Rocha Lima, Luiz Tavares da Cunha Mello, Chrysantho de Miranda Figueiredo, Napoleão Nobre, Alfredo Pinheiro Soares Filho, Argemiro de Assis Brasil, Nairo Villanova Madeira e Ottomar Soares de Lima; pelos almirantes Pedro Paulo de Araújo Suzano, Cândido da Costa Aragão, José Luiz de Araújo Goyano, Washington Frazão Braga e Alexandre Fausto Alves de Souza; e pelos brigadeiros Francisco Teixeira, Dirceu de Paiva Guimarães, Ricardo Nicoll e Epaminondas Gomes dos Santos.
“Entre 1964 e 1970, pude contabilizar um total de 1487 militares punidos, sendo: 53 oficiais generais, 274 oficiais superiores, 111 oficiais intermediários, 113 oficiais subalternos e 936 entre sargentos, suboficiais, cabos, marinheiros, soldados e taifeiros. Tais expurgos alteraram a representatividade das facções no interior da corporação militar, eliminando o potencial de resistência nacionalista na caserna às proposições do governo” (cf. Cláudio Beserra de Vasconcelos, “A política repressiva aplicada a militares após o golpe de 1964”, IFCS/UFRJ, Rio, 2010, p. 91).
O mesmo autor, em nota sobre suas fontes, ao pé da mesma página, acrescenta:
“… no que se refere aos dados sobre cabos, marinheiros e taifeiros, os números apresentados ainda estão aquém do real. No caso da Marinha, há atos em que a identificação do afastamento do militar como punição é clara, em outros, nem tanto. Com relação à Aeronáutica, há vários casos de punições de cabos revestidas de atos administrativos (…). Creio que, nestes dois casos, chegar a um número exato dos cassados é muito difícil”.
O que é comum a todos esses homens, tão diversos em outros aspectos? Nos parece correta a observação do autor que citamos, de que, neles, “sobressai a defesa de uma política nacionalista de desenvolvimento e de soberania para o Brasil (…) buscou-se atingir aqueles que, ao longo dos anos 1945-1964, se posicionaram em prol da defesa de uma política nacionalista para o Brasil. (…) da autodeterminação política e econômica do país” (op. cit., págs. 94, 273 e 274).
Esse autor aborda outra espécie de repressão, especialmente covarde, exercida após o golpe, contra militares: a daqueles que não haviam participado de nenhum movimento nacionalista ou expressado publicamente posições nacionalistas, mas – segundo a opinião dos feitores de IPM – poderiam fazê-lo no futuro. Tratava-se se uma punição preventiva…
Ao ler, nos dias de hoje, o IPM que “investigou” os oficiais da Marinha, por exemplo, é compreensível a sensação de comicidade que parece transudar daquelas páginas repletas de expressões caricaturais: “eficientes métodos moscovitas”, “ideias exóticas”, “elevado grau de comunização”, “partidários do credo vermelho” etc, etc. e etc.
Mas só é engraçado em retrospecto. Não para os militares que enfrentaram essa covarde miséria.
Lá pelas tantas, imputa-se, a um dos ministros da Marinha de Jango, o crime de ter concedido a Ordem do Mérito Naval à escritora (e deputada estadual, até sua cassação, em 1969) Adalgisa Nery.
Adalgisa, além de deputada, era (e continua sendo) uma das mais conhecidas escritoras brasileiras – com justa razão. Por que seria um crime conceder a ela a Ordem do Mérito Naval?
Adalgisa era nacionalista e mantinha uma coluna política – “Retrato Sem Retoque”, uma das mais lidas da “Última Hora”. Também era ex-mulher de Lourival Fontes – diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) durante o Estado Novo e chefe da Casa Civil no segundo governo Getúlio.
Antes do golpe, Adalgisa entrara em conflito com Rademaker, que, com a ditadura, tornou-se ministro da Marinha. O motivo foi uma denúncia que Adalgisa fizera, sobre uma compra de tinta para pintar navios de guerra.
Em 1969, quando sua medalha foi cassada, Adalgisa devolveu-a, com uma carta, publicada após sua morte, em 1980, por Carlos Drummond de Andrade:
“Desejo esclarecer que uma coisa estou absolutamente impossibilitada de devolver aos senhores: a lembrança na minha alma de um dia haver recebido da Marinha do meu país o gesto de carinho ao reconhecimento pelo meu amor e respeito à minha pátria.
“Por amor ao meu país, fiz o maior número de coisas nobres que podia a fim de repousar o meu espírito de todas as que fiz por necessidade. O amor traz encantamento. A necessidade, um pesado cansaço. É incomensuravelmente consolador sentir, ao anúncio de cada dia, a grandiosidade do meu país, e à noite, a sua magnífica e inarredável verdade.
“O Senhor, Deus dos Exércitos, concedeu-me como privilégio, um pouco de talento e muita sensibilidade. Não para usá-los como prestígio à minha efêmera passagem pela vida, mas para que através da minha pessoa, Ele fosse manifestado aos meus irmãos brasileiros. Sei que bem cumpri essa missão. Os elogios feitos a mim jamais me impressionaram mais do que as ‘cordiais saudações’ ou ‘respeitosos cumprimentos’ dos finais de cartas. As minhas raízes estão em profundidade e não na superfície.
“Os responsáveis incumbidos de devassar o comportamento de minha vida pública, sabem tanto quanto eu que jamais, aproveitando-me da situação de deputada, usufruí do menor benefício pessoal ou material. Jamais recebi qualquer importância dos cofres públicos, além das que considerava estritamente dentro da honestidade.
“Isso não constitui virtude. Virtude seria possuir eu uma propensão incontida para atos desonestos e reprimir essa tendência. Nasci honesta, logo não houve da minha parte esforços para tornar-me honesta.
“Fui, e os senhores sabem, irrepreensivelmente correta em todos os setores que atingem ou pertencem à coletividade. Sempre fui contra o empreguismo, essa praga nacional, e conservei-me coerente com essa decisão, não somente quando esposa do Chefe da Casa Civil da Presidência da República, naquela época, função da mais alta importância, mas também durante os meus mandatos de deputada. Sou uma brasileira completamente isenta de remorsos por haver um dia aproveitado as muitas e repetidas oportunidades para cometer fraquezas de caráter ou dar maus exemplos aos meus semelhantes.
“Por vivência e presciência humana e política, sei que a vida não é feita com as tintas claras e puras das madrugadas em crescimento, mas de pastosas tintas cinzentas que prenunciam as trevas.
“E dentro dessa realidade compreendo, com superioridade de espírito, todas as coisas que a vida nos dá e todas as que ela nos tira”.
Drummond acrescentou um esclarecimento, lembrando o conflito com Rademaker:
“A alusão a tintas cinzentas não é literária. Adalgisa estranhara que fossem jogadas fora toneladas de tinta cinza para se comprarem outra de tom mais escuro, na pintura das unidades navais: seria melhor gastar o dinheiro na assistência a milhares de brasileirinhos abandonados por aí. Seis anos depois de escrever isto em seu jornal, tiraram-lhe a medalha. Não lhe tiraram a bravura e o amor a seu país” (Carlos Drummond de Andrade, “Adalgisa, a indômita”, JB, 14/06/1980).
O mais ridículo na repressão aos militares é que seus feitores não desconfiam, jamais, a que interesses estão servindo. Nem mesmo quando tentam fundamentar o inquérito, aludindo a problemas que “perturbavam o equilíbrio da Escola Clássica do Campo Econômico, isto é, do sistema de livre iniciativa” ou quando pretendem incriminar um oficial, sem que haja provas de delito algum, por ser “ligado aos elementos denominados ‘nacionalistas’ do Clube Militar” (cf. IPM cit., Rel., p. 1787 e p. 1819).
Há casos em que o presidente do IPM conclui que não há nada contra os indiciados, mas, “enquadro-os na Lei de Segurança (…) a fim de se evitar que amanhã voltem esses homens às fileiras para prosseguirem no seu impatriótico e altamente reprovável trabalho de solapamento dos alicerces desta Força Armada. (…) Cumpre, pois, que não sejam repetidos os erros passados” (cf. IPM cit., p. 1821).
Às vezes, é apenas fofoca, declaradamente, o que se tem contra os indiciados. Sobre um capitão-de-fragata, filho de um ministro da Marinha de Jango, diz-se o seguinte: “Segundo voz corrente na Marinha, porém não confirmado neste IPM, era ele o verdadeiro Ministro, o ‘Ministrinho’, chamado pela imprensa”. Ainda bem que não foi confirmado no IPM… Resta saber, então, por que essa fofoca faz parte de seu relatório final. Naturalmente, porque a verdade não tem a menor importância.
Da mesma forma, logo em seguida diz-se que o mesmo oficial “é apontado pelo Almirante Carlos Penna Botto como comunista. Não existem provas de que o indiciado é comunista, apenas a afirmativa, sem mencionar testemunhas ou fatos, do referido almirante”.
Nunca existiu, no Brasil, o crime de ser comunista. Por isso, a ideia de obter “provas” disso era uma imbecilidade. Não havia lei ou norma legal para enquadrar tal “crime”.
Porém, o peculiar nesse relato é que todo mundo sabia – como é óbvio pela maneira com que foi redigido esse trecho do IPM – que, na abalizada opinião de Penna Botto (um ex-integralista adstringente aos americanos, presidente de algo chamado Cruzada Brasileira Anticomunista), qualquer sujeito que não fosse um capacho absoluto da casta dominante nos EUA era comunista. Inclusive o general De Gaulle (”um criptocomunista”) e as “massas”, que eram “pseudocomunistas”, pois votavam em “comunistas”, mas porque eram “despreparadas para votar” (cf. Carla Simone Rodeghero, “Memórias e avaliações: norte-americanos, católicos e a recepção do anticomunismo brasileiro entre 1945 e 1964”, IFCH/UFRGS, Porto Alegre, 2002).
Em relação a outro oficial, na falta de algo de que fosse culpado, diz o relatório do IPM que deveria ser afastado “mediante qualquer dispositivo de lei” e, se não fosse encontrado esse dispositivo, “não convindo manter-se um provável futuro desajustado (…) que a ele se aplique o artigo 7.º do Ato Institucional do Comando Supremo da Revolução” (grifo nosso).
Esse oficial, demitido da Marinha em outubro de 1964, era um tenente com 28 anos.
Sobre três tenentes que cumpriram a ordem, no dia 1º de abril, de apresentar-se ao gabinete do ministro da Marinha, é dito que “nada grave foi apurado contra esses oficiais”, e, logo em seguida, sobre um deles, conclui-se que “pelo seu linguajar deixa transparecer que possui alguma leitura de literatura comunista”. O oficial foi enquadrado no artigo 7º do Ato Institucional “a fim de afastá-lo definitivamente da vida militar, fazendo-se um bem a ele próprio e à própria Marinha” (IPM cit., p. 1825). O tenente tinha 25 anos quando foi demitido da Marinha.
19
A hostilidade da ditadura – desde o primeiro momento – aos cientistas e artistas brasileiros foi uma decorrência de sua hostilidade à Nação.
Muitos anos depois, um dos perseguidos, o extraordinário físico brasileiro José Leite Lopes, exilado na Universidade de Strasbourg, França, depois de proibido de pesquisar e lecionar no Brasil, definiu a questão nos seguintes termos:
“Se o projeto nacional do Brasil é abrir as portas para as grandes corporações industriais etc., por que você vai fazer ciência? Para que fazer ciência? Para que procurar tapar a defasagem, se a indústria refinada estrangeira já está lá dentro e os cientistas que fazem os computadores e inventam os computadores estão fora? Se você prepara brasileiro lá dentro, o único emprego que ele terá nesse setor é ir para fora” (v. Leite Lopes, depoimento, 1977, Rio, CPDOC/FGV, 2010).
A premissa de Leite Lopes é igualmente importante para se entender a atitude do golpe (e não somente a do golpe e de sua ditadura) em relação à ciência – e, também, ainda que de outro modo, sua hostilidade à arte e à cultura nacional:
“Nos Estados Unidos, nesses países todos, a indústria tem laboratórios de pesquisa que vão absorvendo esse pessoal, que vai fazer pesquisa em laboratório de pesquisa de interesse para a indústria, não somente na universidade. No Brasil isso não existe, porque a indústria é estrangeira. E se amanhã o capitalismo internacional ficar refinado a ponto de dizer ‘vamos fazer pesquisa também no Brasil, empregando cientistas brasileiros’, a minha tese é de que isso não interessa ao Brasil porque se está fazendo pesquisa para interesses estranhos ao Brasil, com poderes de decisão fora”.
A conclusão de Leite Lopes é a seguinte:
“… que esforço fazer para adiantar o Brasil? Essa pergunta não pode ser respondida enquanto não se perguntar qual esforço deve ser feito, no Brasil, para que não somente a ciência e a tecnologia, como a economia e tudo mais, se integre no desenvolvimento para o povo brasileiro. (…) uma vez respondido o problema político, aí vamos pensar no esforço científico”.
Espanta, hoje, no golpe e na ditadura, a tremenda erupção de estupidez, que, inclusive fez o país regredir em áreas onde estava entre os mais avançados do mundo.
É muito repisada – sobretudo em livros de autores norte-americanos – a história do “ano sabático” de Richard Feynman, de como o futuro Prêmio Nobel de Física, já tendo no currículo sua participação no Projeto Manhattan, veio ao Brasil, aprendeu a “tocar frigideira” e desfilou numa escola de samba carioca no carnaval de 1952. Em alguns, não falta a explicação de que o homem da eletrodinâmica quântica foi atraído pela beleza de nossas mulatas…
Pode ser verdade – ou pode ser lenda. Pouco se diz, porém, na maioria desses livros, sobre a razão da escolha de Feyman pelo Brasil, e de sua volta ao nosso país, periodicamente, até 1964: nós tínhamos uma das comunidades de físicos mais conceituadas do mundo. César Lattes não era caso isolado, como mostram os nomes de José Leite Lopes, Mário Schenberg, Jayme Tiomno, Roberto Salmeron, Marcelo Damy, Elisa Frota-Pessoa – e estes são apenas alguns. A ciência precisa de uma comunidade de cientistas para que possa florescer. Mas foi à destruição das comunidades científicas, em vários campos do conhecimento, que a ditadura dedicou um particular afinco.
Além dos físicos, pode-se dizer o mesmo dos cientistas do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), onde a ditadura instalou uma incapacidade de nome Rocha Lagoa – depois promovido a ministro da Saúde.
O conceito desse elemento, antes de 1964, foi bem expresso pelo professor Herman Lent, homem conhecido não somente pela coragem, mas, também, pelo rigor:
“O Rocha Lagoa no Instituto estava abaixo da crítica; ninguém dava nada por ele. As pessoas riam quando se comentava da possibilidade dele vir a ser diretor do Instituto. Os trabalhos dele são umas drogas” (cf. Herman Lent, depoimento, 1977, Rio, CPDOC/FGV, 2010).
Realmente, foi preciso a derrubada do governo constitucional e a instalação de uma ditadura no Brasil para que Rocha Lagoa fosse nomeado diretor da maior e mais conceituada instituição de pesquisas da área biomédica no país.
Na posse de Lagoa no IOC, o primeiro dos ministros da Saúde do regime ditatorial, o lacerdista Raimundo de Brito (o mesmo que, em 1955, dera abrigo em sua clínica a Café Filho, na tentativa de golpe contra a posse de Juscelino), anunciou os novos tempos:
“As ideias exóticas, que em Manguinhos foram infiltradas, serão banidas definitivamente, porque nosso país precisa de homens que nos ajudem a acabar com o sofrimento do povo e não de elementos cujo único fito é destruir a liberdade, esfacelando o regime democrático. Manguinhos amanhã será uma colmeia de trabalho e não o que queriam alguns, um foco de ideias subversivas” (v. CM 24/06/1964).
Nessa altura, não precisamos chamar a atenção do leitor para o amor dessa gente à democracia: tivemos 21 anos desse amor extremoso à liberdade.
Brito já afastara os principais cientistas do IOC das chefias de Divisão: Walter Oswaldo Cruz (Divisão de Patologia); João Teixeira de Freitas (Helmintologia); Hugo de Souza Lopes (Entomologia); Herman Lent (Zoologia); Haity Moussatché (Fisiologia); Moacyr Vaz de Andrade (Estatística); Masao Goto (Micologia); Henrique Veloso (Ecologia); e Fernando Ubatuba (Endocrinologia).
Ao que parece, Lagoa conseguiu ser nomeado presidente do IOC pela bajulação ao cardeal Câmara e a Dutra. Empossado, fez uma lista de 16 cientistas “subversivos”. Não conseguiu cassá-los. A ditadura temia a reação internacional à cassação de homens com reputação científica estabelecida em todo o planeta. Então, começou a perseguição. Com cadeira cativa no CNPq, Lagoa pressionou para que o órgão cortasse o financiamento às pesquisas dos professores Herman Lent e Haity Moussatché. Até mesmo jovens que, na época, preferiram evitar qualquer definição política – como relatou depois um deles, o virologista Hermann Schatzmayr, que seria, 26 anos depois, presidente da instituição – eram perseguidos, sem que houvesse, aparentemente, algum sentido na perseguição.
Lagoa era especialmente rancoroso contra Walter Oswaldo Cruz – talvez porque Walter fosse filho do fundador e patrono do IOC. No entanto, Walter era, também, um pesquisador brilhante em hematologia: “tinha um laboratório com 50 estagiários, produtivo ao extremo e que foi liquidado pelo ódio sem nome desse Rocha Lagoa”, relatou Herman Lent, em depoimento ao CPDOC.
Ou, como descreve um trabalho recente:
“A seção dirigida por Walter Oswaldo Cruz foi transferida para local bem menor do que o ocupado, sob a justificativa de que o espaço que ocupava era maior do que o necessário. Para a transferência foi necessária força policial porque os pesquisadores que se recusavam a desalojar o antigo lugar foram acusados de insubordinação. Os cinquenta e oito bolsistas, que sofreram com o corte dos recursos, abandonaram o laboratório, e este passou a ter somente dezesseis assistentes, em 1966. O mesmo laboratório, pouco tempo depois, foi alvo de um levantamento realizado por uma comissão de técnicos da instituição, sob a acusação de que nele havia propaganda subversiva. Durante a revista da comissão só encontraram material científico. O local seria lacrado e as atividades na área completamente paralisadas após a morte de Walter Oswaldo Cruz, vítima de ataque cardíaco, em 1967” (cf. Elaine Kabarite Costa, “Dinâmicas científicas e contingências sociais: um estudo exploratório em Manguinhos”, IOC, Rio, 2011).
As perseguições paralisaram o IOC. Em 1970, depois de assumir o Ministério da Saúde, Rocha Lagoa patrocinou o “massacre de Manguinhos” – como o professor Lent, um dos atingidos, chamou a cassação pelo AI-5, com proibição de trabalhar no IOC e em qualquer instituição pública, de dez dos maiores pesquisadores do país na área de ciências biológicas, todos com justa fama internacional: Haity Moussatché, Herman Lent, Masao Goto, Augusto Cid de Mello Perissé; Hugo Souza Lopes, Moacyr Vaz de Andrade, Sebastião José de Oliveira, Fernando Braja Ubatuba, Tito Cavalcanti e Domingos Arthur Machado Filho (v. Herman Lent, “O Massacre de Manguinhos”, Avenir, 1978).
Os laboratórios destes cientistas foram desmontados.
[NOTA: Por razões familiares (minha mãe era amiga de sua esposa, Arcelina Mochel, e, sobretudo, de sua cunhada, Eline Mochel, que também era médica), conheci o professor Masao Goto. Não era apenas um grande pesquisador, mas um grande médico, com uma preocupação humana que se traduzia menos em palavras que na gentileza, realmente indescritível, com que tratava os mais humildes. Proibir homens como este de trabalhar e contribuir para o seu país não está entre os menores crimes da ditadura.]
O que se tornou a instituição de Oswaldo Cruz nessa época, é bem exemplificado por um discurso de Geisel, cinco anos depois, na V Conferência Nacional de Saúde (1975), colocando como um dos objetivos do seu governo “a recuperação da Fundação Oswaldo Cruz” (cf. Jaime L. Benchimol (coord.), “Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada”, Rio, Ed. FIOCRUZ, 2001, p. 330).
Naquele momento, o país enfrentava uma epidemia de meningite.
Testemunho eloquente é o de Vinícius da Fonseca, designado pelo ministro da Saúde de Geisel, Paulo de Almeida Machado, para a recuperação de Manguinhos – isto é, para presidente da Fundação Oswaldo Cruz.
Vinícius não era médico, mas economista, e trabalhara na Secretaria de Planejamento da Presidência (Seplan) com João Paulo dos Reis Velloso, na elaboração do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND).
Seu depoimento apresenta interesse sob vários aspectos, inclusive a relação do II PND com a Saúde Pública. Existem opiniões suas com que pode-se ou não concordar, mas isso, aqui, não é importante. Eis como descreve a situação, quando tomou posse:
“Manguinhos estava morto. Quando eu assumi, o dr. Paulo de Almeida Machado, ministro da Saúde, disse de viva voz para a plateia: ‘Esse aqui é o homem que vai ressuscitar esse cadáver insepulto’. Palavras dele. (…) Eu vim a saber do famoso ‘massacre de Manguinhos’ já como presidente da fundação. Parece incrível isso! Cassar os direitos políticos de um pesquisador como o Herman Lent, o Haity Moussatché e outros, meu Deus, tem sentido isso? Realmente, não fazia o menor sentido. A minha interpretação é de que havia problemas profundamente pessoais, ódios acumulados durante anos.
“(…) quando houve a revolução de 1964 o Rocha Lagoa dominou o Instituto Oswaldo Cruz. (…) Ele se apossou de Manguinhos com o grupo dele, de extrema direita, sei lá se tinha ideologia nisso. Em 1970, ele foi chamado pelo Costa e Silva para ser ministro da Saúde e se aproveitou do ministério para fazer o chamado ‘massacre’ “ (cf. “Um estranho no ninho – memórias de um ex-presidente da Fiocruz”, depoimento a Wanda Hamilton e Nara Azevedo, in História, Ciências, Saúde Vol. VIII (1), março/junho 2001, p. 244).
Rocha Lagoa foi nomeado ministro por Médici em 1969 – e ficou no Ministério até 1972, quando se descobriram algumas trampolinagens na sua operosa gestão, e ele foi obrigado a demitir-se.
Muitos lembraram, depois do golpe – e com bastante razão – a afinidade das perseguições da ditadura com a consigna daquela besta franquista, Millán-Astray, na Guerra Civil Espanhola: “Viva la muerte! Muera la inteligencia!“.
Difícil explicar, por exemplo, a prisão de Djanira, a pintora. Na época, alguém ironizou: “deve ser porque ela usa muito vermelho em suas telas”. Trata-se de uma explicação até melhor que a dos que prenderam a pintora: dentro do carro de Djanira fora achado um perigoso livro subversivo de arte, intitulado “A Velha Varsóvia”.
Como explicar tanta estupidez – a tal ponto que os livros mais importantes do período inicial da ditadura são os volumes do “FEBEAPÁ”, o “Festival da Besteira que Assola o País”, de Stanislaw Ponte Preta? A questão resume-se a que é impossível ser contra a Nação sem ser – ou se tornar – burro (que nos desculpem a palavra, mas não há outra mais precisa). A existência de uma intelectualidade antinacional é a mesma coisa que a existência de uma intelectualidade sem intelecto – uma intelectualidade que não pensa. Exemplos não faltam, inclusive alguns supostamente vivos. E o motivo é simples: o servilismo dispensa o pensamento. Para absorver ou copiar servilmente o que vem de fora, não é preciso pensar. Quem deve pensar é o amo, jamais o serviçal – pelo menos é o que este acha.
Em 1964, entre os intelectuais, nem Otto Lara Rezende escapou de ter a casa “varejada” (cf. UH 18/05/1964). Estranhamente, Otto foi prefaciador da antologia a favor do golpe, organizada pelo lastimável editor-chefe do “Jornal do Brasil”, Alberto Dines, intitulada “Os Idos de Março e a Queda em Abril”, em maio de 1964.
[NOTA: Além de Otto, o único outro autor que confere alguma suposta respeitabilidade a essa antologia é Antonio Callado; o artigo deste, nesse livro, é uma condensação dos preconceitos lacerdistas contra Jango; no entanto, Callado arrependeu-se rápido de seu apoio ao golpe; por isso, hoje, essa antologia serve para exemplificar o reacionarismo dos próceres da imprensa na época e para mostrar que Dines, em meio século, não mudou muito (v. João Amado, “Da redação do Jornal do Brasil para as livrarias: Os idos de março e a queda em abril, a primeira narrativa do golpe de 1964”, IFCH/UERJ, Rio, 2008; e, também, o livro de Juremir Machado da Silva, “1964 Golpe Midiático-Civil-Militar”, ed. Sulina, 2014). Sobre a tentativa de Dines de negar o que é inegável, já dizia Gorky que “o que a pena escreve nem o machado apaga”, o que vale, também, para a máquina de escrever – e, hoje, para o computador.]
Moacir Werneck de Castro, que assinava uma coluna na “Última Hora” sob o pseudônimo de Miguel Neiva, depois de fazer um sucinto inventário das perseguições à intelectualidade – além da casa de Otto Lara Rezende e da prisão de Djanira, a cassação de Anísio Teixeira, Josué de Castro e Celso Furtado; a invasão da residência do físico e crítico de arte Mário Schenberg; a demissão de Di Cavalcanti, até então adido cultural em Paris; e os berros das “megeras democratas” pela prisão do pensador católico Tristão de Ataíde (Alceu de Amoroso Lima) – sintetizava, em maio de 1964: “Pelo visto, é uma revolução contra a inteligência” (Miguel Neiva, “Guerra à inteligência”, UH 18/05/1964).
Realmente. Mas, examinando hoje os nomes dos que foram perseguidos – no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Instituto Oswaldo Cruz (IOC), na Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) ou na Rádio Nacional, por exemplo – ressalta a diversidade entre aqueles homens e mulheres. No entanto, eles tinham algo em comum: amavam o Brasil e eram brasileiros com reais contribuições ao país. Não há nada, nisso, além de um fato.
Em 1977, o grande físico brasileiro Jayme Tiomno declarou, quando lhe perguntaram por que, apesar de sua considerável produção científica no exterior, voltara ao Brasil:
“… eu, no exterior, estaria produzindo muito, seria uma peça, talvez muito importante dentro de uma maquinaria na qual eu, realmente, não me sentiria integrado. Estaria contribuindo para o desenvolvimento científico universal, isso estaria, mas não estaria fazendo uma coisa que, para mim, é muito importante, contribuir para o desenvolvimento científico do meu país. Então, no Brasil, mesmo tento feito muito menos do que poderia ter feito em pesquisa se ficasse no exterior, há uma coisa que fiz e que vai continuar mesmo depois da minha morte, que vai ser a minha contribuição ao desenvolvimento da atividade científica no Brasil. Quando fui aposentado, fiz uma lista de 50 físicos sobre os quais tive uma influência, pelo menos, significativa, porque reconhecida por eles. Atualmente, muitos deles certamente fazem parte dos 80 ou 100 melhores físicos do Brasil. Isso me dá uma satisfação muito grande, o fato de ver que esse pessoal está podendo produzir diretamente e através de seus próprios discípulos, muito mais do que representaria para o Brasil mais umas dezenas ou uma centena de trabalhos que eu tivesse produzido se continuasse no exterior com o título de Professor Titular dessa ou daquela universidade” (cf. Jayme Tiomno, depoimento 1977, Rio, CPDOC/FGV, 2010].
20
Foi em 1993, na época da privatização da COSIPA – siderúrgica estatal que começou a ser construída no governo Juscelino e que foi inaugurada, em 1963, pelo presidente João Goulart.
Por sugestão do professor Marcelo Damy – através de nosso saudoso Eduardo Fernandes, que fizera com o grande físico brasileiro uma série de memoráveis entrevistas para o HP – fomos procurar na USP outro professor, engenheiro metalúrgico e, também, funcionário da COSIPA.
O “nós” da frase anterior não é um plural majestático: éramos eu e Francisco João Moreirão de Magalhães, nome tão impoluto quanto o seu proprietário, valente luso-brasileiro que era nosso editor de economia.
Queríamos uma estimativa de quanto valia o patrimônio da empresa, para comparar com o preço mínimo estabelecido para o leilão. O engenheiro não sabia qual era o valor da COSIPA. Mas sabia o que era preciso gastar para montar uma siderúrgica nova, mais ou menos do mesmo tamanho – o que, para nós, já era bem mais do que tínhamos.
Excelente pessoa, ele lembrou alguns episódios protagonizados por Damy, conhecido por seu sentido prático – o que, para um engenheiro (assim me pareceu), devia ser uma surpreendente qualidade em um físico.
Foi então que perguntei por que um especialista em siderurgia trabalhara – nove ou 10 anos, não lembro exatamente – com um físico nuclear.
Ele riu, com um travo de amargura.
“Minha especialidade não é o ferro”, disse. “Fui trabalhar nisso porque tinha de ganhar a vida. Minha especialidade, mesmo, é urânio metálico”.
Aquele professor e engenheiro trabalhara no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), desenvolvendo combustíveis para reatores nucleares. A ideia – numa época em que o Brasil não dominava o enriquecimento do urânio – era usar urânio não enriquecido nos reatores que seriam fabricados no Brasil. Daí a importância das pesquisas com “urânio metálico” – isolado a partir dos compostos de urânio encontrados na natureza – para que não tivéssemos de importar o combustível.
As pesquisas foram bem sucedidas, a tal ponto que, hoje, “os elementos combustíveis (…) utilizados na operação do reator IEA-R1m, do IPEN, são fabricados com tecnologia inteiramente nacional” (cf. Eduardo Borelli Romagnole, “Aspectos econômicos do urânio no Brasil”, DEM/UFRRJ, 2007).
Entretanto, o trabalho com urânio metálico foi encerrado à força, depois que a ditadura assinou o acordo nuclear com a Alemanha Ocidental.
“Eles paralisaram todas as pesquisas”, disse a nós o engenheiro. “Fecharam o meu laboratório num feriado”.
Riu, e acrescentou: “no sete de setembro”.
Não sei se o pensamento nos veio na época, mas hoje é inevitável: isso aconteceu no melhor – ou menos pior – dos governos da ditadura.
[NOTA: Em junho do ano passado, o professor e engenheiro Erberto Francisco Gentile – que tornou-se nosso leitor – faleceu. A ele, a nossa homenagem.]
A lógica de impedir a continuação das pesquisas no IPEN pode ser entendida a partir das considerações do professor Marcelo Damy sobre o reator alemão (v. Opinião, 18/07/1975).
No sufoco da crise que atingia o modelo dependente da ditadura, o governo adquirira um reator que funcionava com um método até então apenas experimental, com a justificativa, disse Damy, “que o Brasil não poderia mais esperar o desenvolvimento de tecnologia própria”.
Para que o processo se tornasse viável, a colaboração dos cientistas brasileiros se tornava imprescindível – mas isso significava mudar a linha de pesquisa seguida desde, pelo menos, 1951, quando o almirante Álvaro Alberto fora empossado, pelo presidente Getúlio Vargas, no CNPq.
Damy não era contra um acordo com outro país. Porém, mostrava, o processo alemão “exige quantidades enormes de hélio (…) que só pode ser obtido nos Estados Unidos (…). Em consequência, a nossa futura pretensão de independência nesse setor passará a ser a de uma dependência essencial e controlada” (cf. Opinião, 18/07/1975).
O que não impediu os EUA de pressionarem o governo Geisel para que abandonasse o acordo com os alemães ocidentais, no que tiveram sucesso (uma boa síntese dos acontecimentos é a de Fernanda das Graças Corrêa em “O Projeto do Submarino Nuclear Brasileiro”, Capax Dei, Rio, 2010, p. 63-69).
O deputado Lysâneas Maciel (MDB-GB), na época presidente da Comissão de Minas e Energia da Câmara, lembrava que a situação era pior que a descrita por Damy, pois a ditadura, quando comprara da Westinghouse o reator de Angra 1, já assinara um “acordo”, em 1972, com os EUA.
Este acordo colocava todo o desenvolvimento nuclear brasileiro, por 30 anos, sob controle do governo norte-americano. Lysâneas lembrava que o “controle por parte da comissão de energia atômica dos Estados Unidos não se refere, como muita gente pensa, apenas ao reator de Angra dos Reis, mas à instalação de quaisquer outros em todo o país. (…) convém lembrar que ao governo americano são deferidos entre outros os seguintes direitos” (e Lysâneas citava as cláusulas 10ª e 11ª do acordo com os EUA): “examinar o projeto de qualquer reator e outros equipamentos brasileiros; examinar o uso, fabrico, processamento no Brasil de qualquer material nuclear especial fértil ou outros materiais designados; exigir a manutenção e apresentação de todas as operações com os respectivos relatórios; exigir que quaisquer materiais sob custódia do governo brasileiro fiquem sujeitos à fiscalização do governo americano; examinar e aprovar as instalações que devam ser usadas; designar funcionários com acesso a todos os lugares, autorizados a colher dados necessários e inventários” (cf. Opinião, 18/07/1975, grifos no texto de Lysâneas).
Por consequência, esse primeiro acordo colocava os reatores do acordo com a Alemanha sob tutela dos EUA.
Bem antes, a partir de 1964, a ditadura proibira de pesquisar e lecionar alguns dos maiores físicos do mundo – notadamente, José Leite Lopes, Mário Schenberg e Jayme Tiomno.
Tiomno esteve entre os afastados por obra de uma repugnante mediocridade, notável pela falta de caráter até em seu meio, um certo Eremildo Viana, por alcunha, Eremildo Má-conduta.
No ano anterior ao golpe de Estado, esse elemento fora defenestrado da diretoria da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi), depois de uma trapaça para perpetuar-se no cargo: enviara ao MEC uma lista tríplice para escolha do diretor em que, além dele, os outros integrantes eram um professor que já ocupava a diretoria de outra faculdade – portanto, era inelegível – e, o outro, um professor com câncer em estágio terminal; logo, a lista se resumia a ele mesmo (v., p. ex., Arthur José Poerner, “O Poder Jovem”, 5ª ed., Booklink, 2004, p. 192 e 197-199).
Mas, durante a ditadura, Eremildo Má-conduta imperou, quase tão eternamente quanto a própria ditadura, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, uma das unidades que sucederam a FNFi, após a reforma universitária de 1968.
Seguindo o conselho de Julius Fucik (ver a sétima parte deste artigo), vejamos a cara de um dos aspectos mais asquerosos da ditadura.
Professor de História Antiga e Medieval – embora sua contribuição reduza-se a colaborar com a inquisição e a um artigo defendendo a superioridade racial dos cristãos sobre os árabes na Idade Média (v. Istoé, 02/07/1980) – Eremildo Má-conduta, a partir de 1958, perseguira, notadamente, a catedrática de História Moderna e Contemporânea da FNFi, Maria Yedda Linhares.
O motivo não é totalmente claro, mas é difícil achar que suas razões fossem estritamente políticas. Maria Yedda, nascida no Ceará, era o oposto de Eremildo: inteligente, culta, rigorosa e mulher – por sinal, bonita (mesmo quase idosa, quando, após a ditadura, foi, duas vezes, secretária de Educação do governo Brizola, ela conservava os traços de beleza nas feições).
No governo Jango, a professora Maria Yedda foi nomeada diretora da Rádio MEC, que era um departamento da Faculdade Nacional de Filosofia.
No dia dois de abril de 1964, ao meio-dia, quando não havia mais perigo de reversão do golpe, Eremildo invadiu a Rádio MEC com um bando armado do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), fornecido pelo secretário de Segurança de Lacerda, para prender a diretora da rádio.
Só encontraram a secretária da diretora, Sandra Ribeiro da Costa, que exigiu de Eremildo algum documento que o nomeasse para a diretoria da instituição. Quiseram levá-la para o DOPS, e Sandra respondeu: “só vou sob violência”.
Nessa hora, contou depois a secretária, Eremildo lembrou que ela era filha do ministro Orlando Ribeiro da Costa, do Superior Tribunal Militar (STM) – e, também, sobrinha do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Álvaro Ribeiro da Costa. Então, disse que “não tocassem nela”.
O bando de 10 jagunços armados (na verdade, mais, pois havia, também, pelo menos um meganha do DOPS) ficou paralisado diante da secretária, que estava sozinha – seu pai, chamado por ela, chegou depois. Eremildo começou a fazer démarches para arrumar o documento exigido por Sandra. Cinco horas depois, apresentou um papel assinado pelo chefe de gabinete do secretário de Segurança de Lacerda.
Quatorze anos depois, Eremildo Má-conduta enviou uma carta ao “Jornal do Brasil” negando o relato, feito dias antes, pelos físicos José Leite Lopes e Jayme Tiomno, sobre seu papel nas cassações de cientistas e professores, e também negando a invasão armada da Rádio MEC.
Sandra Ribeiro da Costa, então, concedeu uma entrevista sobre os acontecimentos de 1964. Depois de relatar a invasão, declarou:
“Eu ainda acho muito estranho que um documento assinado por uma autoridade estadual valha para que se tome um próprio federal. O Eremildo (…) invadiu a rádio por um caso pessoal, contra uma colega. Foi um ato deliberado de oportunismo, prova do mau-caratismo dele”.
Sandra relatou a vistoria do prédio com Eremildo, ao fim da qual exigiu um recibo:
“… assim ficou patente que não havia nenhuma documentação subversiva na emissora. Só saí de lá depois de 19 h e ele me levou à porta onde ainda teve a ousadia de me convidar para permanecer no cargo. Nunca mais pus os pés lá dentro. Confesso que contei toda esta história a contragosto – só mesmo em apoio ao Leite Lopes e ao Tiomno – porque não quero exumar cadáveres e o Eremildo já morreu”.
Nessa época, o cadáver se arrastava pelos corredores do IFCS da UFRJ. Ainda estava lá em 1980 quando, com a anistia, o ministro da Educação, Eduardo Portella, reintegrou no IFCS três dos professores delatados por ele, Manoel Maurício de Albuquerque (autor de “Pequena História da Formação Social Brasileira”), Maria Yedda Linhares (autora de “História da Agricultura Brasileira”) e Eulália Lobo (autora de “História do Rio de Janeiro: do capital comercial ao capital industrial e financeiro”).
Eremildo, ainda chefe do Departamento de História, lamentou-se: “Pois é, fazer uma revolução e voltar tudo ao mesmo ponto. (…) assim é demais, há uma desorganização total dos espíritos…“ (JB, 24/06/1980).
Mas, não nos apressemos.
No dia 10 de abril de 1964, Eremildo foi, enfim, nomeado diretor da Rádio MEC. Sua primeira medida foi proibir a irradiação de músicas de compositores russos – inclusive Tchaikowsky, Rachmaninoff e Rimsky-Korsakoff – porque “arte não se mistura com política” (v. sua entrevista ao JB).
A ordem era tão absurda que foi revogada pela própria ditadura. Talvez por isso, a atividade crítica do diretor da Rádio MEC voltou-se para a música popular, especificamente para a obra de João do Vale: declarou que “todo aquele que canta essa música chamada ‘Carcará’ devia ir preso”. Comentário de Stanislaw Ponte Preta: “Eremildo sempre foi muito pretensioso e achava que ‘Carcará’ era em sua homenagem” (v. UH 22/12/1965).
Entretanto, sua grande obra na Rádio MEC foi o famoso bidê que mandou instalar no banheiro do diretor, abordado por Stanislaw na crônica “Eremildo e o bidê”, incluída no “FEBEAPÁ 2”.
Para que ele precisava de um bidê? Bem…
Pode parecer incrível para os adeptos do determinismo genético, mas esse elemento tinha um irmão que, devido à sua coragem e caráter, foi preso e cassado na primeira leva de perseguições da ditadura.
O professor catedrático Yderzio Vianna, pesquisador importante em veterinária, era reitor da Universidade Rural do Brasil em 1964. Em abril, colocou para fora da Universidade os esbirros que a invadiram para prender estudantes e funcionários. Foi ele mesmo preso, cassado, retirado da reitoria e destituído da sua cátedra – obtida por concurso – na Escola Nacional de Veterinária. Em outubro, por decreto de Castelo Branco, foi demitido do Ministério da Agricultura (cf. CM 11/10/1964).
O professor Yderzio tornou-se um nome lendário entre a “comunidade do km 47” (a Universidade Rural do Brasil, hoje Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ – localizava-se no km 47 da antiga Rio-São Paulo, hoje rebatizado km 7).
Mas, voltemos a Eremildo Má-Conduta: depois da invasão da Rádio MEC, apresentou ao presidente da Comissão de Investigações da Universidade do Brasil, general Acyr da Rocha Nóbrega, uma lista de 44 professores da FNFi que seriam membros de “um grupo vermelho”, a “célula Anchieta” (um dos acusados, o físico José Leite Lopes, declarou: “se tal célula existia, deve ter sido fundada por ele”; cf. JB 26/03/1978).
A lista incluía – além de Leite Lopes, Maria Yedda, Tiomno, Manoel Maurício e Eulália Lobo – Darcy Ribeiro, o químico João Christóvão Cardoso (presidente do CNPq no governo Juscelino e, segundo o professor Jacques Danon, seu aluno, um dos mais sérios homens de ciência da História do país), o filósofo Álvaro Vieira Pinto (autor dos monumentais “Consciência e Realidade Nacional” e “O Conceito de Tecnologia”), Alberto Passos Guimarães (autor de “Quatro Séculos de Latifúndio” e “Inflação e Monopólio no Brasil”), a física Elisa Frota-Pessoa, o químico Horácio Macedo (que seria, após a ditadura, o primeiro reitor eleito da UFRJ), a crítica literária Bella Jozef, o escritor Thiers Martins Moreira e o historiador Hugo Weiss (nome ao lado do qual Eremildo escreveu a palavra “perigosíssimo”, não se sabe exatamente por quê, já que Weiss, que depois fez carreira como publicitário, nem remotamente parecia algum Stalin do professorado).
Entretanto, ao contrário de outros presidentes de “comissões de investigação”, ou de IPMs, o general Acyr era homem sério. No segundo semestre de 1964, encerrou a investigação, inocentando todos os acusados e incriminando um que não era acusado: o próprio Eremildo, por “peculato, falsificação ideológica e malbaratamento de fundos” (cf. CM 22/11/1964).
Eremildo, dizia o relatório aprovado por unanimidade pela Comissão, “abusando de sua autoridade como diretor, pela sua condição de superior hierárquico máximo, usando de coação irresistível, obrigava os funcionários, que designava, a receberem os adiantamentos [de custeio] e a lhe entregarem os cheques”.
Vinha, em seguida, uma série de depoimentos de datilógrafas, oficiais administrativos e escreventes que foram coagidos. Depois, uma fila de processos administrativos das despesas, com falsa comprovação, assinaturas falsas ou assinadas por fantasmas, e serviços pagos, mas nunca realizados.
Por fim, era anexado ao relatório uma perícia do Instituto de Criminalística – firmada por ninguém menos que Carlos Eboli, perito mais conceituado do Rio, hoje patrono do Instituto – apontando Eremildo como o principal suspeito das falsificações de assinaturas.
O general Nóbrega enviou o relatório ao ministro da Educação, Flávio Suplicy – outra nulidade revelada pela ditadura – com a solicitação de que Eremildo fosse demitido do serviço público.
Suplicy respondeu que “não podemos fazer isso com um dos mais destacados homens da Revolução” e engavetou o relatório. Indignado, o general enviou uma cópia à Justiça e informou a imprensa. No entanto, o procurador-geral do Estado da Guanabara, Cordeiro Guerra, lacerdista que depois seria nomeado para o STF, manobrou para arquivar o processo. Depois de algum tempo, foi arquivado. Para isso servia a ditadura.
21
Milhares de pessoas – talvez milhões – souberam o que estava ocorrendo no país, após o golpe de 1º de abril, de uma forma improvável: Sônia Dutra, mulher das mais belas do Rio, atriz e cantora que deixava os jovens e adolescentes cariocas (para não falar nos adultos…) algo pirados.
Naquele momento, o pai de Sônia, deputado federal e vice-governador (do Estado da Guanabara) Eloy Dutra, estava asilado na embaixada do Uruguai – e a ditadura, para prendê-lo, tentava “reinterpretar” a Convenção de Havana, que, desde 1928, regulara o direito de asilo político na América Latina. Por essa convenção, os países signatários, como o Brasil, eram obrigados a conceder salvo-conduto para que asilados nas embaixadas saíssem do país em direção ao exílio.
Sônia Dutra aparecia, na primeira página da “Última Hora” de 28 de abril de 1964, numa foto logo abaixo da manchete. Não era a maior foto da página, mas era uma das duas fotos notáveis. A outra, era a de Garrincha com a camisa do Botafogo. Segundo o jornal, Mané era a “grande esperança” de General Severiano na partida daquela noite contra o “Coríntians” (sic) pelo Torneio Rio-São Paulo (só para registro, o Botafogo ganhou por 3 a 1, com dois gols que Garrincha colocou no pé de Arlindo e mais um de Gérson, o canhoto fumante que sucedera Didi no Botafogo e da Seleção).
Acima da foto de Sônia Dutra, um forte título: Cesar é “dedo duro” no duro.
Embaixo, a chamada:
“Enquanto o locutor César de Alencar comparecia, ontem, a uma homenagem de encomenda, na Churrascaria Recreio, nas Laranjeiras, em sinal de regozijo por haver delatado 149 colegas da Rádio Nacional, a cantora e atriz de teatro Sônia Dutra declarava a UH, com provas, que ‘aquele animador de auditórios é dedo duro no duro’ (Página 2)“.
Para a maioria das pessoas, era um choque. César de Alencar era, como dizem dois autores, “o mais popular animador de auditório de todos os tempos” (Luiz Carlos Saroldi e Sonia Virgínia Moreira, “Rádio Nacional: O Brasil Em Sintonia”, 3ª ed., Zahar, 2005, p. 165).
Não havia quem não assistisse, sábado à tarde, ao “Programa César de Alencar”, programa de auditório iniciado em 1945, com apenas dois concorrentes, ambos na mesma emissora: o “Programa Manoel Barcelos” e o “Programa Paulo Gracindo” (uma descrição do “Programa César de Alencar” está em Ronaldo Conde Aguiar, “Almanaque da Rádio Nacional”, Casa da Palavra, 2007, p. 34).
O choque era ainda maior porque, como escreveu Theresa Cesário Alvim, colunista de TV da “Última Hora”, César de Alencar gravara o jingle da campanha de João Goulart a vice-presidente (”Na hora de votar/ eu vou jangar, eu vou jangar, eu vou jangar/ É Jango! É Jango! É o Jango Goulart!/ Pra vice-presidente/ Nossa gente vai jangar/ É Jango, é Jango/ É o Jango Goulart!“).
[A resposta de César de Alencar a Thereza Cesário Alvim foi que tratara-se de serviço exclusivamente profissional, para o qual fora pago; enquanto isso, na encolha, estava combatendo Jango e o comunismo…; não lhe passou pela cabeça que estava se confessando mercenário ou prostituta; na Revista do Rádio de 01/10/1960, ele aparecera, sorridente, apoiando a candidatura de Jango.]
Por isso tudo, a matéria da Última Hora, que, na página 2, sustentava a chamada da primeira página, somente não parecia incrível porque nada parecia mais incrível após o golpe de Estado:
“Houve grande tumulto, ontem, na Churrascaria Recreio, nas Laranjeiras, durante uma homenagem encomendada a César de Alencar, que se afirma ter sido em sinal de regozijo por haver delatado 149 colegas da Rádio Nacional ao Comando Supremo da Revolução. A confusão foi causada por uma pedra caída no telhado e a explosão de uma bomba nas proximidades.
“Enquanto isso, a cantora e atriz de teatro Sônia Dutra, que não compareceu, obviamente, ao banquete de encomenda, declarava à UH que “ser conhecido como ‘dedo-duro’ é a pior coisa que poderia acontecer a um ser humano” e que “após a revolução, um homem ficou definitivamente marcado com esse título: ‘César de Alencar, ele é, mesmo, ‘dedo-duro’, afirmou.
“Mostra-se Sônia arrependida de ter, um dia, pedido ao então primeiro-ministro Tancredo Neves e, em seguida, ao Presidente João Goulart, a nomeação daquele espíquer para o cargo de diretor-geral da Rádio Nacional.
“– Nessa ocasião – recorda – quando fiz o pedido ao Presidente, por insistência do próprio César, ele retrucou: ‘Soninha, o César de Alencar não é petebista, nem udenista, nem janguista. É, apenas, um oportunista. Essa nomeação seria contra a própria Rádio Nacional’.
“Após esclarecer que não é cantora, artista ou funcionária da Rádio Nacional, a filha do ex-vice-governador da Guanabara e deputado federal Elói Dutra salienta ‘não poder ficar calada ante tamanha indignidade da parte do animador de auditório César de Alencar’.
“– Estou dando – frisa – este depoimento depois de ler a carta-aberta de Jorge Goulart àquele locutor, que chega ao desplante de elaborar uma lista de 149 companheiros seus da Rádio Nacional para serem expurgados, o que dá uma demonstração do seu caráter.
“Acrescenta Sônia Dutra que sua revolta é que a faz vir a público para apontar César de Alencar como oportunista.
“– Como bem disse Jango – conclui – é isso o que ele é. Desde que Jango assumiu a Presidência, passei a ser assediada por aquele animador, que pretendia, a todo custo, intercedesse eu junto ao Presidente, no sentido de que fosse ele nomeado diretor-geral da Nacional. Chegou, mesmo, a organizar ‘shows’ para João Vicente, tudo com o objetivo de obter o lugar. Tem, pois, agora, a qualificação que merece: ‘Dedo-Duro’ “.
Sônia – que deixou este mundo em 2010, aos 72 anos – prestara um grande serviço ao país.
Quase 50 anos depois, em 2011, Gerdal dos Santos, um dos perseguidos (e, após a Anistia, reintegrado à Rádio), resumiria: “… existia um crápula em nosso meio chamado César de Alencar, uma figura das mais sórdidas e mesquinhas, em que o caráter não combinava com o grande comunicador que ele era” (Jornal da ABI, dez/2011).
Realmente, ele era. Pois acabou ali.
O impressionante é como, depois disso, e para o resto da vida, ele seria conhecido como “o dedo-duro”. E de forma tão extensa, em todo o país, que isso acabou com sua carreira de animador de auditório mais bem sucedido da história da Rádio Nacional.
Quando houve a anistia, 15 anos depois, ele era uma assombração desprezível; não conseguira ser diretor da Rádio Nacional; tentara negar o que fizera – e os documentos (o relatório do diretor nomeado pela ditadura e suas próprias declarações no IPM da Rádio) apareceram para mostrar que Sônia Dutra, Mário Lago, e outros, haviam falado rigorosamente a verdade.
Por fim, ele mesmo passou a tratar a si próprio como “dedo-duro”. Por exemplo, sobre a volta à Rádio Nacional dos que ele dedurara: “Se eles foram anistiados, voltaram e encontraram a rádio aqui, foi graças ao ‘dedo-duro’. Que puderam contar seus tempos de aposentadoria, que não fez nenhuma objeção, e ainda fui encarregado até de recepcioná-los – eles é que ficaram constrangidos e não quiseram ser recepcionados por mim’“ (César de Alencar, depoimento a Luiz Carlos Saroldi, 14/10/1987, in “Rádio Nacional: O Brasil Em Sintonia”, ed. cit., p. 182).
Em sua ambição e miséria espiritual, esse elemento não reparou que a condição de seu sucesso, durante 19 anos, fora o ambiente nacional que permeou a cultura do país – em síntese, a cultura nacional – de Getúlio até Jango. Na verdade, ele se auto-liquidara.
Em seu livro de memórias, o último diretor da Rádio Nacional antes do golpe de Estado, Hemílcio Fróes, descreve a empresa na época:
“A Rádio Nacional constituía-se o maior parque industrial de transmissão radiofônica da América Latina. Mantinha o maior e mais completo cast artístico do Brasil que, após o Golpe de 64, foi se transferindo para as televisões, teatro, cinema, dublagem, onde muitos continuam fazendo sucesso. A queda artística da Rádio Nacional foi consequência da devastação praticada pelos golpistas de 64 contra uma empresa do governo, possivelmente seguindo a linha de conduta do imperialismo contra as empresas nacionais” (Hemílcio Fróes, “Véspera do Primeiro de Abril ou Nacionalistas X entreguistas”, Imago, Rio, 1993, p. 154-155).
A ira com que a ditadura se atirou sobre a Rádio Nacional parece sugerir, além disso, algo mais: um ódio à cultura nacional, cuja condensação era, exatamente, a Rádio Nacional.
É verdade que a continuação desse empreendimento, que vinha desde os anos 30, estava ameaçado por um erro do presidente Juscelino, um erro grave – mas não um erro irreparável.
Desde 1952, a Rádio Nacional – empresa estatal bastante lucrativa – lutava para construir a TV Nacional, já que o rádio, no Brasil, deixaria em breve de ser o principal meio de comunicação. O plano inicial era “ter a sua própria televisão funcionando no início de 1954” (declaração de Celso Guimarães, em dezembro de 1952, cf. Ronaldo Conde Aguiar, op. cit., p. 15).
Porém, diz esse autor, “é bem possível que a crise política da época, que culminou com o suicídio de Getúlio Vargas em agosto de 1954, tenha influenciado negativamente os planos da PRE-8”.
Entretanto, “a julgar pelo depoimento de Moacir Areas, a questão, em 1956, já estava praticamente decidida: ‘Muito cedo, nos próximos meses, os receptores de televisão da capital da República e adjacências estarão assinalando a existência do Canal 4, onde se estampará a imagem da nossa TV Nacional’. Segundo disse Renato Murce, o presidente Juscelino Kubitschek teria, inclusive, em julho daquele ano, despachado o pedido favoravelmente. ‘Chegou-se’, informou Murce, ‘até a importar todo o material da melhor qualidade. (…) Quando o material chegou à Rádio Nacional, foi encaminhado para Brasília. Está lá até hoje [1976]’“ (idem, grifos nossos).
A TV Nacional estava praticamente pronta. No entanto, foi nesse estágio tão avançado de consecução do projeto, que ele foi travado:
“… a TV Nacional teve, desde cedo, um inimigo ferrenho e intransigente: Assis Chateaubriand, que sabia perfeitamente do risco que as suas Emissoras Associadas correriam com a presença no mercado da nova emissora. Escaldado nos pífios resultados (em faturamento e audiência) da Rádio Tupi frente à Rádio Nacional, Chateaubriand sabia que a TV Nacional levaria para suas antenas toda aquela incomensurável força, competência e experiência que sempre demonstrara. E não fez por menos: bem ao seu estilo, Chatô procurou de início demover o presidente da ‘loucura’ que era dar um canal à Nacional. Como o esforço persuasivo não deu resultado, Chatô partiu para a truculência. ‘Entre os sorrisos de clichê’, observou Mário Lago, ‘o presidente lhe fez ver que já tinha empenhado a palavra, não podia recuar agora’.”
A resposta de Chateaubriand foi a que se podia esperar de um gângster:
“‘Se Vossa Excelência der o canal de televisão à Nacional, jogo toda minha rede de rádio, imprensa e televisão contra seu governo’. Juscelino sentiu o golpe e preferiu não enfrentar o poder dos Diários Associados” (idem).
Chateaubriand estava assinando a sentença de morte do seu próprio império. O que poderia frear um processo de monopolização da TV sob os auspícios dos norte-americanos seria, como ocorrera no rádio, a existência de um poderoso canal público, estatal. Mas Chateaubriand queria ser o monopolista. Viveu o suficiente para colher o resultado dessa escolha.
Quando os americanos resolveram jogar suas fichas em Roberto Marinho, só restaram a Chateaubriand os insultos racistas em cima de seu concorrente, que não era branco (entre outras coisas, chamou Marinho de “crioulo alugado e regiamente pago” e “africano de trezentos anos de senzala”).
Obteve pouca solidariedade com esse racismo explícito, misturado a berros contra “o porco nacionalismo que nos arrasa faz meio século”, não percebendo que fora esse nacionalismo que lhe garantira, até então, não ser esmagado pelos monopólios externos.
Ao final, quem arrasou Chateaubriand foi o seu próprio entreguismo.
Certamente, o recuo de JK na questão da TV Nacional trouxe prejuízos imensos para a Nação e o povo – que ficaram ainda mais claros quando a ditadura protegeu a emissora da Time Inc. e eliminou as emissoras nacionais existentes antes de 1964.
Roberto Marinho não tinha dinheiro para instalar a sua TV quando, “em 24 de julho de 1962, em Nova Iorque, foram assinados o Contrato Principal – que era válido por onze anos e pelo qual o grupo Time-Life tornou-se sócio da TV Globo (…) e o Acordo de Assistência Técnica – pelo qual o grupo Time-Life comprometeu-se a dar todo o tipo de assessoria técnica à TV Globo, da montagem da emissora e treinamento do pessoal aos programas que a empresa brasileira compraria no exterior” (cf. Patrícia Polacow, “Conspiração patrocinada: a versão de Assis Chateaubriand sobre os acordos Time-Life”, UMESP, 2000).
Esses “acordos” ou contratos não tinham chance de serem aprovados – nem tolerados – pelo governo João Goulart, pois “eram ilegais, conforme o artigo 160 da Constituição brasileira de 1946, que vetava a estrangeiros a participação na orientação intelectual e administrativa em empresas jornalísticas e de radiodifusão do Brasil. (…) Os contratos também violavam o Código Brasileiro de Telecomunicações e o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão” (idem).
Mesmo depois do golpe, foi essa a conclusão da CPI que, em 1966, investigou a relação da Globo com o grupo Time-Life.
Porém, “Castelo Branco, em março de 1967, decidiu ‘lavar as mãos’ e passou o problema ao seu sucessor, general Artur da Costa e Silva. Este, em 1968, pôs um ponto final na controvérsia, considerando legais os acordos Time-Life” (idem).
Observemos que a ditadura fez isso não apenas contra as leis, mas também contra – de Chateaubriand ao Frias, passando pelos Mesquita – toda a imprensa golpista (com exceção, evidentemente, de “O Globo”).
Os norte-americanos, evidentemente, tinham precedência sobre aqueles colonizados…
Na Rádio Nacional, o IPM inocentou todos os investigados. Hemílcio Fróes reproduz o parecer do procurador da Justiça Militar (”Não conta o Ministério Público com suporte para o oferecimento de denúncia”) e a sentença do juiz da auditoria militar (”pela carência de provas, arquive-se o presente inquérito”).
Apesar disso, a perseguição atingiu 148 funcionários, dos 800 que constituíam a equipe da Nacional. Todos, comprovadamente, segundo o IPM e a Justiça Militar, inocentes.
Entre os demitidos estavam – além de Hemílcio Fróes e Gerdal dos Santos – o grande compositor e também pintor Heitor dos Prazeres (entre muitos feitos, autor, com Noel Rosa, de “Pierrô Apaixonado”); o cantor Jorge Goulart (entre muitas coisas, primeiro intérprete de “A Voz do Morro”) e sua esposa, a cantora Nora Ney (”Ninguém me ama”, “Bar da Noite”, etc.); o ator e escritor Mário Lago; o teatrólogo, novelista, roteirista e diretor Oduvaldo Vianna (pai); o teatrólogo Dias Gomes; o jornalista esportivo João Saldanha; o compositor, cantor e humorista Jararaca (da dupla “Jararaca e Ratinho”); o apresentador e ator Jonas Garret; o ator Mário Brazzini; a atriz Wanda Lacerda; a cantora e atriz Marion; o apresentador e ator Paulo Gracindo e seu filho, o então jovem ator Gracindo Júnior; o cantor Carlos Carriê; a atriz Carmen Lídia; o cômico Oswaldo Elias; o ator Rodney Gomes.
Na lista completa, estava até Orlando Silva, “o cantor das multidões”, apesar de sua desconhecida participação política.
E o que explicaria a demissão do produtor e apresentador Paulo Roberto, idoso e afável médico que, aparentemente, não tinha inimigos? Um homem sobre o qual era consenso o que disse Renato Murce: “Paulo Roberto foi um dos maiores radialistas desta terra. Todas as suas criações traziam a marca da inteligência, da cultura e de um profundo sentimento humano, difícil de ser igualado e muito menos ultrapassado”.
Paulo Roberto (pseudônimo radiofônico do médico mineiro José Marques Gomes) era também o autor de “Vagalumeando”, gravada por Elizeth Cardoso: ”Tinha uma lua passeando no céu/ Tinha outra lua se banhando no mar/ Tinha também dois vagalumezinhos/ Vagalumeando pelo teu olhar”.
Indignado com a demissão de Paulo Roberto, escrevia, em setembro de 1964, o compositor Sérgio Bittencourt, na sua coluna do “Correio da Manhã”:
“Paulo Roberto é, hoje, um dos estupidamente demitidos pelo Alto Desmando Revolucionário. E o que fazia Paulo Roberto na Nacional? Um antigo programa, ‘Nada Além de Dois Minutos’, uma audição gostosíssima com bandinhas do interior, ‘A Lyra de Xopotó’, o ‘Gente que Brilha’ e uma croniqueta despretensiosa em tom de Nordeste, pela manhã. E o Alto Desmando viu subversão em tanta coisa mínima. O Alto Desmando, por certo, não prestou atenção devida à prata dos cabelos de Paulo Roberto. Nem entenderia o que ele significa na história do Rádio brasileiro” (22/09/1964, grifos da publicação original).
Mas esse foi o motivo da sua demissão.
22
Chegamos ao fim desta série. Faremos, aqui, apenas algumas considerações complementares, que, em alguma medida, possam minimizar as nossas falhas e limitações (somente conseguimos citar em pouca medida o material pesquisado, devido ao risco desta série tornar-se interminável).
A melhor coleção de documentos históricos sobre o golpe de 64 – inclusive sobre a intervenção militar norte-americana, a “Operação Brother Sam” – está no Volume VII de “Textos Políticos da História do Brasil”, preciosa obra organizada por Paulo Bonavides e Roberto Amaral, que teve a sua terceira edição publicada pelo Senado Federal em 2002. O sétimo volume é especialmente importante para a história do golpe de 64, pois reúne documentos do período 1956-1964, ou seja, dos governos Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, João Goulart – e do golpe de Estado.
Muito importante para as questões que abordamos é a troca de cartas entre Jango e Kennedy, por ocasião da “crise dos mísseis”, em 1962. Em sua resposta ao presidente norte-americano, que tentava conseguir nosso apoio para a ação dos EUA contra Cuba e a URSS, diz o presidente brasileiro:
“A defesa do princípio de autodeterminação dos povos, em sua máxima amplitude, tornou-se o ponto crucial da política externa do Brasil, não apenas por motivos de ordem jurídica, mas por nele vermos o requisito indispensável à preservação da independência e das condições próprias sob as quais se processa a evolução de cada povo.
“É pois, compreensível que desagrade profundamente à consciência do povo brasileiro qualquer forma de intervenção num Estado americano inspirada na alegação de incompatibilidade com o seu regime político, para lhe impor a prática do sistema representativo por meios coercitivos externos, que lhe tiram o cunho democrático e a validade.
(…)
“… não escondo a Vossa Excelência a minha apreensão e a insatisfação do povo brasileiro pelo modo por que foi pleiteada e alcançada a decisão do Conselho da OEA, sem que tivesse preliminarmente realizado, ou pelo menos deliberado, uma investigação in loco, e sem que se tivesse tentado através de uma negociação, como a que propusemos em fevereiro do corrente ano, o desarmamento de Cuba com a garantia recíproca de não invasão.
“Receio que nos tenhamos abeirado sem, antes, esgotar todos os recursos para evitá-lo, de um risco que o povo brasileiro teme tanto como o norte-americano: o da guerra nuclear.
(…)
“Não quero encerrar, porém, esta carta, senhor presidente, sem acrescentar às considerações nela feitas a expressão de meus receios sobre o futuro imediato da OEA. Nos últimos tempos observo que as suas decisões vêm perdendo autoridade à medida que se afastam da correta aplicação das suas próprias normas estatutárias, e que são tomadas por maioria numérica com injustificável precipitação. A isso cabe acrescentar a tendência para transformar a Organização num bloco ideológico intransigente, em que, entretanto, encontram o tratamento mais benigno os regimes de exceção de caráter reacionário.
“Permito-me pedir a atenção de Vossa Excelência para a violação do art. 2º da Carta de Bogotá, que se está correndo o risco de cometer para evitar a adesão de novos Estados por motivo de ordem ideológica. Permito-me ainda recordar a aplicação imprópria da Resolução II de Punta del Este sobre vigilância e defesa social, que não autoriza a Organização a encomendar investigações sobre a situação interna de nenhum país, para evitar que se firam os melindres de Estados soberanos, e que agora se pretende abusivamente invocar justamente para a execução de uma investigação dessa natureza. A esse caos acrescento o da criação do Colégio Interamericano de Defesa” (op. cit., p. 743-744).
A data dessa carta é 24 de outubro de 1962. Estendemos a citação, não somente porque essa carta raramente aparece nos livros sobre a época (se é que aparece em algum), mas, sobretudo, porque esta citação economiza comentários adicionais.
Sobre o transformismo – que deixou não poucos perplexos – de um sujeito tão simpático e popular quanto César de Alencar num dedo-duro asqueroso, cabe acrescentar algo que demonstra o quanto Sônia Dutra estava certa.
Na apologia do dedo-duro escrita por um dos últimos produtores de seu programa, Jonas Vieira (um livro em que César de Alencar é retratado como uma vítima daqueles que delatou), é dito que ele tinha a “ambição legítima, pelo prestígio de que desfrutava” (sic) de ser diretor da Rádio Nacional e, em seguida: “Ele não escondia tal pretensão e pleiteou o cargo em mais de um encontro com o presidente João Goulart, que se decidiu por Hemílcio Fróes” (Jonas Vieira, “César de Alencar: A Voz Que Abalou O Rádio”, p. 158, Valda, 1993).
Pode parecer incrível, mas tudo indica que, realmente, o motivo consciente do suicídio público de caráter, às custas da pele alheia, de César de Alencar, tenha sido sua vontade – não satisfeita por Jango – de mandar e desmandar na Rádio Nacional.
O resultado foi aquilo que o apologista chama de “visível solidão de César de Alencar, lutando para romper o bloqueio em torno de seu nome”.
São coisas assim que dão esperança à Humanidade.
Certamente, nada como um dia depois do outro e a noite pelo meio. Segundo Dante, aos bajuladores está destinado um lugar especial no Inferno:
“Ali subimos; e além, na fossa
vi gente afundada no esterco
de humanas privadas recolhido
“E enquanto eu olhava para o fundo
vi uma cabeça tão suja de merda
que não sabia se era leigo ou se era frade”
(Inferno, Canto XVIII: “Quivi venimmo; e quindi giù nel fosso/ vidi gente attuffata in uno sterco/ che da li uman privadi parea mosso.// E mentre ch’io là giù com l’occhio cerco,/ vidi un col capo sì di merda lordo,/ che non parëa s’era laico o cherco.”).
Porém, os traidores têm destino ainda pior, dentro do nono círculo do Inferno.
Mas, deixemos de lado esse elemento.
Algo ainda precisa ser dito sobre Eloy Dutra, que tornou-se um dos mais influentes líderes nacionalistas, sobretudo depois que, com 52% dos votos (em uma eleição com três concorrentes e um único turno), vencera o candidato de Lacerda a vice-governador, em 1962. Era conhecido por seu estilo combativo e pelo vasto bigode, daí o apelido de “o tigre da Guanabara”.
Por exemplo, em 1961, na crise que sucedeu à renúncia de Jânio Quadros, quando um pronunciamento seu foi censurado nos registros da Câmara, com a extirpação dos trechos mais contundentes, Eloy exigiu a retificação, observando:
“… todos nós sabemos que o Presidente Ranieri Mazzilli, Presidente da República em exercício e Presidente desta Casa, é um homem de dotes intelectuais apreciáveis. Não vamos julgar, portanto, que Sua Exa. Tenha a imponência de um senador romano e a inteligência de um Primo Carnera”.
Para muitos ouvintes da época, Eloy cometia uma injustiça com Primo Carnera…
O crime de Eloy, que era jornalista, foi ter escrito “IBAD, Sigla da Corrupção” e uma série de artigos nacionalistas – e derrotar os golpistas na eleição de 1962, no Estado governado pelo mais desavergonhado deles. Era tão odiado pelos entreguistas, que foi o último perseguido político, entre os que se asilaram em 1964 na embaixada do Uruguai, a receber salvo-conduto, um documento, como vimos, obrigatório pela Convenção de Havana (e necessário para que o asilado não fosse preso no caminho entre a embaixada e o aeroporto, ou antes que o avião deixasse o território e o espaço aéreo do país).
Eloy foi demitido da Caixa Econômica Federal, porém, ao fim do IPM da Caixa, por falta de provas, foi readmitido, embora aposentado compulsoriamente. O que não impediu a ditadura de prendê-lo, quando voltou ao Brasil, em março de 1965.
Diante de versões totalmente disparatadas, geralmente favoráveis a Lacerda, e injustas para com Eloy, somos obrigados a abordar a sua volta.
Na época, Lacerda apresentou-se como libertador de seu adversário – detido na escala que o avião em que viajava fez em São Paulo e depois transferido para o DOPS do Rio, chefiado por um torturador lacerdista, Cecil Borer. A pantomina aprontada por Lacerda na televisão, aparecendo ao lado do vice-governador cassado, e suas declarações (“não sou carcereiro de ninguém”), sem que pudesse haver nenhum contraponto de Eloy, não ajudaram a imagem deste.
Mas quem assistiu à cena pela TV pôde perceber que Eloy não estava à vontade – permaneceu sério, constrangido, e não declarou nada que negasse as convicções que esposara por tantos anos. Hoje, é difícil criticá-lo por não suportar o exílio.
A “libertação” de Eloy por Lacerda foi uma palhaçada – como disse o editorial da “Última Hora” de 17 de março de 1965, para Lacerda “pouco importava a legalidade ou a ilegalidade da prisão do sr. Elói Dutra”, mas “a grande farsa teatral adrede preparada pelos agentes publicitários do Palácio da Guanabara. E ele, como uma Sara Bernhardt rediviva, montou a grande ‘mis-em-scène’”.
Talvez haja alguma superestimação dos talentos histriônicos de Lacerda – mas é compreensível, naquele momento.
O próprio Lacerda comentou que Eloy seria preso outra vez, o que ocorreu quatro horas depois de “libertado”, quando a casa de seu pai, onde repousava, foi cercada por “um jipe com dois soldados armados de metralhadora, um tenente e um sargento, e um caminhão com 11 soldados também armados de metralhadora”. Tudo isso para prender um homem (v. a fotografia desse contingente na primeira página da UH de 17/03/1965).
Até o líder udenista Adauto Lúcio Cardoso protestou contra o que chamou “ato de demasia, pois nada ficou provado, até agora, contra o sr. Eloy Dutra”.
Eloy ficaria incomunicável – sem contato nem com seu advogado – durante um mês, até 13 de abril.
Por último, algumas anotações pessoais.
Este texto começou a ser escrito como um ensaio sobre cultura nacional e política cultural. Numa viagem para cumprir um compromisso familiar, tive uma conversa muito interessante sobre esse assunto com meu filho – que é um rapaz muito inteligente e perspicaz. (Aliás, a minha filha também é muito inteligente e perspicaz. De onde se conclui que eles podem ser diferentes dos filhos de outros, mas eu sou igual a todos os pais.)
No entanto, quanto mais eu tentava, no projetado ensaio, entender algumas coisas da época atual, mais eu sentia necessidade de melhorar meu conhecimento do período anterior ao golpe de Estado de 1964. Para aumentar essa necessidade, ao mesmo tempo (ou quase, porque ao mesmo tempo é impossível) eu estava escrevendo um texto sobre as confusões entre conceitos como “nacional” e “local”, confusões que tornaram-se especialmente abundantes no governo Dilma, onde se considera que o “conteúdo local” (isto é, produzido ou montado, sobretudo, por qualquer empresa estrangeira instalada no país) é mais importante que o caráter nacional (a produção das empresas genuinamente nacionais) – daí a substituição, à moda tucana, do “nacional” pelo “local” como critério de algumas compras estatais (veja-se, por exemplo, a lista de fornecedores “locais” que a presidente da Petrobrás nomeada por Dilma, citou logo após a sua posse: 19 empresas, das quais 17 são filiais de multinacionais – v. HP 04/07/2012).
A relação entre este problema e as vicissitudes da cultura nacional me parecia evidente.
Assim, a lista da senhora Foster seria considerada um escárnio antes de 1964. A essência da questão era considerada óbvia para os pensadores nacionais-desenvolvimentistas. Por exemplo, quando se abordou o problema do consumo, nos países dependentes, de “produtos diretamente exportados das metrópoles ou indiretamente exportados, isto é, fabricados no local por empresas estrangeiras, que arrecadam, sob mil disfarces financeiros, o tributo da servidão econômica do vassalo subdesenvolvido” (cf. Álvaro Vieira Pinto, “O Conceito de Tecnologia”, V. 1, Ed. Contraponto, 1ª ed., Rio, 2005, págs. 269/270, grifo nosso).
Ou, na mesma obra, quando o autor se refere aos problemas ideológicos de grupos sociais de um país dependente “ao absorverem os produtos técnicos, direta ou indiretamente importados”, isto é, montados localmente por filiais de empresas externas (op. cit., pág. 271, grifo nosso).
Achar que as importações devem (ou podem) ser substituídas pela montagem das filiais de multinacionais, equivale à velha troca de seis por meia dúzia – tanto do ponto de vista estratégico (ou seja, sob o ângulo do desenvolvimento) quanto conjuntural: basta ver o pântano a que essa política nos conduziu.
Como consequência da necessidade de compreender esses problemas, acabei por abandonar os dois textos e escrever um que não tinha, a princípio, intenção de escrever.
A conclusão que se pode tirar é clara: para que o nosso país cresça, econômica e culturalmente, é preciso recuperar inteiramente a ideia de que somos uma nação. Esta recuperação estava em processo acelerado – após a escolha de Tancredo como candidato popular à Presidência, a derrubada da ditadura e a Constituição de 1988 – quando as repercussões dentro do Brasil dos acontecimentos no Leste europeu provocaram uma desacelerada e mesmo uma travada. Como nada está parado, o segundo mandato do presidente Lula demonstrou, ainda que parcialmente, que somos uma nação e devemos ser uma nação. O recuo do governo Dilma, com as consequências que se agravam cada vez mais, é, também, embora pelo lado negativo, uma demonstração dessa verdade.
Quanto ao passado, minha rememoração especialmente atroz daquela época é a de ver amigos separados, exatamente, pela amizade. Deve ter sido em 1965 ou 1966: entrei com minha mãe em uma agência bancária – na memória, me parece ter sido a filial carioca do antigo Banco da Província do Rio Grande do Sul, mas pode ser uma confusão mnemônica, depois de tantos anos.
No banco, estava um amigo de meus pais, Mário Lago, que olhou para minha mãe, sorriu discretamente, e saiu do banco sem falar com ela – que teve a mesma reação. Mário, preso pela ditadura em 1964, temia complicar a vida da amiga, se estivesse sendo vigiado – o que, provavelmente, era verdade.
Pensei, inicialmente, em dedicar este texto aos que vieram depois da minha geração, para que conhecessem algo do que vivemos, um pouco ao modo de Brecht em “Aos que vão nascer”.
No entanto, algo me impede de fazê-lo – e as novas gerações compreenderão, certamente, que têm a vida pela frente, portanto, podem dispensar, por enquanto, uma dedicatória.
Em abril de 1985, depois do falecimento de minha mãe, eu estava no Rio quando recebi um recado, através de meu pai, da Drª Eline Mochel – a quem já me referi, ao relatar as perseguições ao seu cunhado, Masao Goto, no Instituto Oswaldo Cruz.
A Drª Eline era uma das melhores amigas de minha mãe, mas, desde a fundação de Brasília, saíra do Rio – ela era médica da Câmara dos Deputados.
Porém, em abril de 1985, logo depois da derrubada da ditadura, ela também estava no Rio. Conservara um apartamento em Copacabana – e foi lá que a encontrei, com o marido, Leopoldo.
Os móveis eram antigos – e eu ainda não tinha descoberto que os móveis tendem a envelhecer com os moradores da casa, pois ninguém muda de móveis de acordo com a moda.
Ela estava com mais de 70 anos e enxergava pouco. Foi um encontro muito triste.
Entretanto, depois de sair do apartamento, uma ideia veio-me à cabeça, algo que devia ter percebido, porém só naquele momento ficou claro: a minha geração, que sempre achei muito sacrificada pela instalação da ditadura – pois teve que, quase de repente, mudar seus planos e arriscar-se no combate pela liberdade, em que muitos tiveram de enfrentar as prisões, as torturas e a morte – não fora a principal prejudicada com aqueles acontecimentos.
Pelo contrário, a geração anterior – a dos meus pais – fora o alvo do golpe e da ditadura. Foi muito mais difícil para ela, gerada, formada, crescida no ambiente do nacional-desenvolvimentismo, enfrentar uma ditadura que era a negação dos valores que constituíam o seu patrimônio cultural e moral.
A derrubada da ditadura tinha, então, um significado especial para esses combatentes mais antigos, que fizeram o que puderam para resistir – nem que fosse, no caso de muitos, criar seus filhos com honra, humanidade e amor pelo país.
Portanto, é a esses que dedico este texto.