SÉRGIO CRUZ
(HP, 26/05/2017)
Admito que, como estudioso da Inconfidência Mineira, nutria boas expectativas em relação ao filme “Joaquim”, de Marcelo Gomes, que representou o Brasil, recentemente, no Festival de Cinema de Berlim, e que, segundo o diretor, mostraria um Tiradentes “como ele realmente era”. Infelizmente, essa minha expectativa positiva acabou se frustrando. Com o desenrolar do roteiro, foi se tornando cada vez mais evidente que o filme não passava de mais um capítulo, agora nas telas, do malfadado movimento pseudo-histórico de “desmitificação” dos heróis nacionais.
Que os colonialistas e imperialistas empedernidos não consigam conviver com determinadas figuras históricas, com heróis, e, principalmente, com aqueles que se dedicaram, e se dedicam, a acabar com as mamatas coloniais, é perfeitamente compreensível. O que não tem lógica são pretensos intelectuais, representantes da arte e da cultura nacional se comportarem da mesma forma. Sim, porque toda a caracterização feita do alferes, neste filme, não tem nenhuma originalidade. É uma simples repetição, tão monótona quanto inverídica, de tudo o que foi destilado pelos velhos sabujos da “corte” lusitana e inglesa.
Colocar a arte cinematográfica brasileira, já tão maltratada por nossas autoridades, a serviço dessa gente, é, no mínimo, um contrassenso. Pintar o líder da Inconfidência Mineira como um alienado, um sujeito ambicioso e um militar frustrado, que serviu de “bode expiatório para as elites mineiras”, não tem nada de novo, nada de moderno, nem de realista. É uma mera macaqueação do que disseram dos nossos heróis aqueles que perderam suas benesses coloniais em terras brasileiras.
Esses “destruidores de mitos”, na verdade, são pessoas que se deixaram dominar pela ideologia do colonialismo. São portadores do conhecido complexo de vira-lata. Eles não admitem que brasileiros possam ser homens destacados. Não aceitam que existam pessoas aqui, que se movam, como fez Joaquim, por sentimentos de solidariedade, de patriotismo e de amor ao próximo. Para eles, isso não existe. Tudo por aqui só acontece se for em troca de grana, se rolar uma propina, ou for movido por uma ambição, recalque, inveja, etc. Na verdade, esses “intelectuais globalizados” não têm a menor condição de entender a dimensão e a importância de pessoas como Tiradentes, Che Guevara, Getúlio, Roosevelt, Marx, etc.
Sobre esse tema, de como certas “elites” da periferia são cooptadas, o leitor poderá obter mais informações na excelente obra “A Ideologia do Colonialismo”, de Nelson Werneck Sodré (Ed. Vozes, 1985 – pág 8). Nela, o historiador que dirigiu o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), um dos homens mais cultos e sérios do país, descreve assim essa forma subalterna de enxergar o mundo: “através desta ideologia, a camada culta dos povos oriundos da fase colonial estrita é ganha – preparada que está pela sua condição de classe – para aceitar a subordinação econômica, atribuindo-a a fatores não materiais: superioridade de raça, superioridade de clima, superioridade de situação geográfica, que predestinam as novas metrópoles. É em suma a preparação para o imperialismo (…)”.
Também é possível aprofundar o tema da ideologia do colonialismo com o filósofo e mestre Álvaro Vieira Pinto: “(…) configura-se, assim, o quadro colonial imutável na essência, porém variado na aparência, conforme não podia deixar de ser. Não é mais a Coroa estranha que arrecada o dízimo, o quinto, o laudêmio, mas a grande empresa internacional, os gigantescos trustes, os portentosos bancos, alguns para efeito da mais disfarçada espoliação, revestidos de siglas que lhes dão o passaporte de ‘instituições internacionais’, aparentemente sem possuidor político declarado”. (Álvaro Vieira Pinto, in A Sociologia dos Países Subdesenvolvidos, Contraponto, Rio de Janeiro, 2008).
Em suma, para filmar temas históricos, como a Inconfidência Mineira, e fazê-lo com realismo e seriedade, é fundamental se libertar da ideologia do colonialismo. Tem que entender um pouco de Brasil. Tem que se basear na luta real do povo. Pelo menos ser capaz de enxergar que o povo luta. E que é nestas lutas onde são forjados os seus líderes. Conhecer esses líderes e entender porque eles exercem tanta influência sobre o povo é fundamental. Muitos “historiadores” despatriados, por exemplo, não enxergaram até hoje que em 1930 houve uma revolução no Brasil. Para essa gente, Getúlio ainda é um grande “enigma”.
A ideologia do colonialismo – que urge ser superada – é um instrumento nefasto, criado nas grandes potências. Ela existe para incutir na periferia a ideia de que nenhum país dominado tem capacidade e nem competência para ser independente. Essa ideologia tem como objetivo central convencer a elite desses países que seu povo e seus heróis são inferiores, medíocres e menos capazes do que europeus, americanos, etc. É a ideologia que massacra a autoestima dos povos, joga-os para baixo e destrói seus líderes para melhor dominá-los.
Pois bem. O diretor de “Joaquim” diz que seu filme é realista e se baseou nos “Autos da Devassa” – documentos oficiais produzidos pelo processo contra os inconfidentes. Eu acreditei. Por isso a expectativa positiva. Mas, em seu roteiro, ao contrário do que está nos autos, Joaquim só aparece como um “aliciado” para o movimento na véspera da rebelião. Até ali ele está absorvido na busca frenética por ouro. A compulsão pelo ouro, que toma quase todo o tempo do filme, seria, segundo o diretor, o caminho encontrado pelo alferes para tentar vencer a discriminação e para subir na frustrada carreira militar.
Nada mais impreciso. Tiradentes adquiriu muito antes dos demais inconfidentes a consciência de que o Brasil não cabia na camisa de força do colonialismo. Desde muito cedo ele estava convencido de que o Brasil tinha que se libertar do domínio português. Não foi uma frustração pessoal o que o moveu. Se fosse assim, convenhamos, ele não lideraria coisa alguma. Mas, ao contrário, com suas ideias, sua habilidade política, sua coragem e seu exemplo, ele foi capaz de atrair a maioria dos intelectuais, dos militares e dos religiosos para a perigosa empreitada revolucionária.
Desde 1785, ou seja, quatro anos antes da data prevista para a eclosão da revolta, muito antes dos intelectuais, portanto, Tiradentes já estava em plena atividade conspiratória. Isso fica muito evidente no depoimento do Capitão do Regimento de Cavalaria Auxiliar de Vila São José, João Dias da Mota, que, no interrogatório, disse aos inquisidores que o alferes o informou que já preparava a revolta há quatro anos, isto em 1789, e que a revolta teria apoio dos franceses. (Autos da Devassa da Inconfidência Mineira, Edição da Câmara dos Deputados, 10 volumes, 1982).
Por que então Marcelo Gomes não levou em consideração essa informação tão importante sobre a atuação de Joaquim. É simples. Porque essa informação, dada por João Dias, desmente categoricamente a imagem, tão cara aos “destruidores de mitos”, de que Tiradentes era um pobretão, ingênuo, que foi apenas usado pelas elites. Ocultar esse fato [de que ele estava à frente dos revoltosos] serviu para que o filme pudesse passar o velho contrabando monarquista. A tradicional idiotice de que o alferes não passou de um mero “bode expiatório”.
Vários relatos e documentos dos “autos” desmentem essa “versão”. A principal delas é a do Cônego Luiz Vieira da Silva, inconfidente, que dizia que “se houvesse muitos como o alferes, seria o Brasil uma República florente”. Joaquim era considerado por todos como o principal orador nas reuniões secretas de Vila Rica. Era chamado para convencer os indecisos. “Vocês têm que ouvir o alferes”, dizia Alvarenga Peixoto. Frei Raimundo Penaforte, que o acompanhou até a morte, o descreveu como “um daqueles indivíduos da espécie humana que põe em espanto a própria natureza”. Seu comportamento nos quase três anos de cárcere, e no julgamento que o condenou, confirmam sua grandeza.
Além disso, o militar foi capaz de elaborar um programa que defendia, além da Independência, a República, a abolição, a indústria, o ensino público e gratuito e a mudança da capital. Em suma, um autêntico programa de emancipação nacional. Um programa bastante avançado para a sua época. Por isso, ele atraiu para o movimento praticamente toda a parcela sadia da sociedade, ou seja, a grande maioria dos brasileiros. Mesmo que nem todos concordassem com todos esses pontos do programa.
Ou seja, ele não foi enforcado e esquartejado porque era apenas um bode expiatório. Ele não “perdeu a cabeça” porque era pobre, como insinua o filme. Ele foi covardemente assassinado porque era o mais hábil e perigoso líder independentista do país. Era assim que as potências da época tratavam os revolucionários. E é assim até hoje. É só ver como a CIA tratou líderes e inimigos do imperialismo. Como eles trataram Patrice Lumumba, Toussaint Louverture, Muamar Kadafi, Salvador Allende, Saddam Hussein, Che, etc.
Faltou ao filme falar, pelo menos um pouquinho, da grave situação que o Brasil vivia naquela época. Da violenta luta que o país travava contra a espoliação de suas riquezas. A Inglaterra já havia iniciado, naquele período, sua política de destruir os concorrentes de sua indústria têxtil em todo o mundo. Fez isso em relação aos países baixos e à nascente indústria indiana. Os ingleses queriam o monopólio total na produção de tecidos para, depois de destruir os adversários, passar a defender hipocritamente o “livre comércio” (Chutando a Escada – Ha-Joon Chang São Paulo: Editora UNESP, 2004). Por isso pressionaram Portugal, país submetido aos seus ditames, a proibir a existência de qualquer produção de tecido em sua colônia na América.
O Brasil, exaurido pela exploração e o saque desenfreado do ouro, já começava a ter que se virar e produzir – de forma também incipiente, como a Índia – alguns tecidos e demais produtos para uso local. Com a proibição inglesa, colocada em prática pela Coroa Portuguesa com a Carta Régia de 1785, iniciou-se uma violenta repressão contra todas as iniciativas produtivas no Brasil que não fosse e extração de ouro (Carta Régia de 1785. Ver anexo 1, pág. 81 de Pátria Livre Ainda que Tardia, S. Cruz, 2009 – Editora Nelpa). É por causa dessa decisão, do agravamento da miséria na colônia, que realmente se inicia a Inconfidência Mineira. A decretação da derrama, que viria depois, seria apenas o mote para o início do levante.
Já quando Joaquim da Maia, estudante brasileiro de medicina, negociava na Europa, em 1786, o apoio de Thomas Jefferson, então embaixador dos EUA na França, e dos revolucionários franceses, ao levante brasileiro, os dados e as informações de que dispunha sobre Minas e o Brasil, para convencê-los da empreitada, foram obtidos por Tiradentes, em suas discussões com Joaquim José da Rocha. O documento passado ao alferes pelo cartógrafo e estudioso configurava uma informação estratégica e vital para o planejamento do levante. Ele dava detalhes da disposição do povoamento do país e das Minas Gerais, cuja população, de acordo com o mesmo documento, “era perto de 400 mil pessoas, divididas pelas suas respectivas classes, brancos, pardos e negros, machos e fêmeas” (Um cartógrafo rebelde? José Joaquim da Rocha e a cartografia de Minas Gerais – Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material).
Essas eram exatamente as mesmas informações que Joaquim da Maia mostrava a Jefferson nas ruínas de Nimes, na França, em 1786. (anexo 8, pág 97, Pátria Livre Ainda que Tardia, S. Cruz, 2009, Editora Nelpa). Isso tudo fica claro também no depoimento de Basílio de Brito nos Autos da Devassa: “eu também vi e julgo que a maior parte da gente de Vila Rica, Tiradentes com uma lista de todas as almas que tem essa capitania, que o trazia na algibeira e a mostrava sem temor”. Segundo Basílio, Tiradentes dizia “(…) aqui somos 400 mil pessoas açoitadas por um só homem. Se fosse outra nação já se tinha levantado”.
Tanto documentos oficiais, como o pedido do alferes à Rainha para se deslocar para Portugal (H.G Mathias, Tiradentes Através da Imagem. Rio, 1969), quanto seus intentos de realizar obras de engenharia no Rio de Janeiro, e também outras diversas testemunhas, confirmam que Tiradentes era muito atuante e cumpriu desde o início missões na capital e em Minas, em busca de adeptos e recursos para a revolução. Nada disso aparece no roteiro de “Joaquim”.
A imagem tosca do alferes, mostrada no filme, não surgiu do nada. Ela tem origem bem definida. Foi inventada pelo historiador monarquista, e puxa-saco da Coroa, Joaquim Norberto, e repetida à exaustão pelo brazilianista Kenneth Maxwell (Devassa da Devassa – A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal – Paz e Terra, 1985). Esse “Joaquim” fixado na busca de ouro, mostrado na película, tem todos os “defeitos” inventados pelo monarquista que escreveu um livro inteiro contra os inconfidentes. Um livro que foi encomendado para combater o avanço dos republicanos e abolicionistas que, não por acaso, elegeram Tiradentes como o herói a ser imitado (História da Conjuração Mineira – Imprensa Nacional, 1948).
Como dissemos, é natural que os revolucionários sejam odiados e desprezados pelos imperialistas, pelos corruptos, pelos sanguessugas e por todo tipo de bajuladores. Ideias como as de Tiradentes tinham um endereço certo, acabar com os privilégios coloniais e com a sangria do país. Enfim, denunciar a mamata dos colonizadores e preparar o seu fim, como fez o alferes, não poderia gerar outro sentimento nesses parasitas do que um ódio mortal e o desprezo mais virulento contra ele. Se fosse outro o sentimento que essa gente nutrisse por Tiradentes, alguma coisa estaria errada ou fora do lugar.
O que não é razoável é a nossa intelectualidade repetir acriticamente, no cinema, nos livros e nas universidades, as invencionices surgidas nas masmorras, nos palácios e, por fim, transformadas em “papers” ultra modernos nas arapucas ideológicas imperiais, sediadas em Londres, Paris ou Washington. O “Joaquim” mostrado no filme não tem absolutamente nada a ver com o Tiradentes real. Não passa nem perto do revolucionário que vanguardeou a inconfidência e que não fazia outra coisa, desde 1785, a não ser conspirar conscientemente, e arregimentar forças contra o domínio português.
O filme também não trata – nem de passagem – de Antônia Maria do Espírito Santo, companheira do alferes e mãe de Joaquina, filha que não pode ter seu pai em seu batizado, ocorrido em 1786, porque ele estava em missão revolucionária no Rio ou, quem sabe, na Europa. Pelo menos é o que sugere o documento de autoria de José de Oliveira Fagundes, advogado que defendeu os inconfidentes, encontrado no Rio de Janeiro. Trecho do documento diz o seguinte sobre o alferes: “(…) era autor e cabeça… preterido quatro vezes sendo bom militar, pobre, tudo confessou, entusiasta da América Inglesa, chegara da Europa e ocupara-se de um trapiche…”. Esse documento acabou não sendo usado pelo advogado na defesa.
Mas, o pior mesmo é uma fantasiosa relação amorosa entre Tiradentes e uma escrava, de nome “preta”, que é a “heroína” da obra. Depois de matar o seu dono, que a estuprava frequentemente, a escrava foge e vai se juntar a outros escravos também foragidos. Num encontro dela com o alferes, após uma captura deste pelos escravos, ela dá uma dura lição de moral no “desrespeitoso” militar que a assedia. “Nenhum branco vai mais encostar a mão em mim”, diz ela, antes de soltá-lo do cativeiro. Sobre esse “episódio”, nem o “astuto” detrator de Tiradentes, Joaquim Norberto, sabia. Se soubesse faria um livro inteiro sobre o caso.
O “conflito” amoroso de Joaquim com “preta” e o papel destacado desta na luta libertária, bem como o “enquadramento” do alferes por ela não tem nenhuma base.
O objetivo desta estranha “licença poética” do diretor foi claramente o de diminuir a importância de Tiradentes e dos inconfidentes. Consciente ou não, Marcelo Gomes acabou, portanto, se somando à pequena legião de detratores da nossa história no geral e da Inconfidência Mineira, em particular.
Com todo o respeito à luta dos escravos, mas, convenhamos, na saga pela independência, eles ainda não tiveram o papel que Gomes tentou passar. Por mais que o diretor e as suas fontes acadêmicas não gostem, a vanguarda da inconfidência foi exercida por Tiradentes. E isso se deu por conta de sua consciência. A vanguarda dessa luta não esteve com os escravos. Querer inflar artificialmente o papel dos negros nessa quadra da história, mostrar uma escrava muito mais consciente, combativa e íntegra do que o alferes, não visa, na realidade, reconhecer o papel que efetivamente os escravos tiveram, algumas décadas depois, nas lutas que se seguiram pela liberdade, pela abolição e pela justiça. Visa apenas diminuir a importância de Tiradentes.
Olá Sérgio Cruz,
Consigo ver o filme por outro caminho:
‘Joaquim’ não é a história de Tiradentes e o que sabemos dele (que é pouco). Joaquim é a história de como um homem ‘normal’, um alferes numa colônia pobre do século XVIII se torna um revolucionário.
O que vemos em ‘Joaquim’ é a transformação de um personagem dialeticamente: à dificuldades da vida, como as encontradas em uma colônia, um personagem que tenta corresponder ao status quo – aqui representada pela busca pelo ouro ou pela posse de um escravo -, começa a ser abalada em sua estrutura, nascendo idéias revolucionárias.
O que Marcelo Gomes dá a ver no filme é o que não costuma aparecer nas biografias, a gênese de um sentimento-personagem.
Diferente como propõe em sua crítica, ou melhor, de maneira oposta, o diretor mostra que Joaquim se torna Tiradentes sobretudo pela desilusão com um formato de mundo, injusto e traiçoeiro. A entrada das idéias iluministas é apenas um catalisador de um homem que, ao invés de somatizar as dificuldades do mundo colonial (mesmo como ser-oficial), se desgarra das convenções e parte para a ação. Os intelectuais entram aí como seres concordantes da ideia, mas não potentes como Tiradentes para a ação. Isso porque estes sim mantinham amarras coloniais, não Tiradentes.
A cena final não é de modo algum a imagem do ‘bode expiatório’. Ali Tiradentes toma a palavra da revolução.
Acho que vale revisitar o filme para ver esta outra leitura da narrativa.
Olá. Lucas. Fico satisfeito com seu comentário. Concordaria com você, não houvesse uma intensa guerra de versões sobre o Inconfidência. Quase tudo o que o Marcelo Gomes mostra no filme está na obra do monarquista Joaquim Norberto, a História da Conjuração Mineira. Este autor foi o primeiro a ter acesso aos “autos da devassa” (documentos do processo), que eram secretos. Ele era palaciano e escreveu este livro com o objetivo de defender a monarquia. Tinha que denegrir a imagem de Tiradentes para combater o movimento Republicano/Abolicionista que tinha acabado de adotá-lo como símbolo de sua vibrante luta. Muito tempo depois, em plena ditadura, o brasilianista anglo-americano Kenneth Maxwell repetiu tudo o que disse Norberto. Isso não teria muita importância, não fosse o fato de Maxwell ter se transformado em referência acadêmica sobre a Inconfidência. É inacreditável, mas isso aconteceu. Eu reputo esse fato ao predomínio da ideologia do colonialismo nas universidades brasileiras. Infelizmente essa ideologia tem muita força em nossa academia. Só que eles não contavam com a astúcia do nosso camarada Getúlio, que, em 1936 tornou públicos os documentos dos “Autos da Devassa”. Lá fica claro – e eu li tudo – que o alferes exerceu um papel importantíssimo não só na organização do movimento, como na elaboração do programa de libertação nacional dos inconfidentes. Você há de convir que almejar a Independência, a República, a Abolição, a indústria, o Ensino Público e a Transferência da capital, era um programa bastante arrojado para aquela época. É bom registrar que nem todos os inconfidentes concordavam com todas essas bandeiras. Era um programa bem avançado. Além disso, Tiradentes participou ativamente das articulações internacionais em busca de apoio ao projeto. Estávamos com a garantia de receber o mesmo apoio militar francês que os americanos tinham recebido para sua independência três anos antes. Cinco anos antes da eclosão do movimento, Tiradentes já estava articulando freneticamente os apoios, tanto políticos quanto financeiros, para a luta de independência. O filme, infelizmente não mostra nada disso. Ao contrário, reforça a imagem que Norberto construiu dele. Um homem alienado, ambicioso e limitado. Pelo filme, enquanto os intelectuais conspiravam, ele procurava ouro e só pensava nisso. Não é verdade. Muitos fatos provam que ele entrou muito antes deles no movimento. Recomendo a leitura do meu livro “Pátria Livre Ainda que Tardia”. Nele eu combato a visão mesquinha de Norberto e Maxwell e mostro muitos fatos estranhamente desconhecidos sobre a atuação heroica de Tiradentes. Num primeiro momento não entendi porque Maxwell adota acriticamente o que Norberto escreveu. Depois eu percebi que isso faz parta de luta ideológica. Denegrir os heróis das lutas de independência é fundamental para rebaixar a auto estima dos povos e, com isso, enfraquecer o ímpeto revolucionário dos jovens. Como disse na matéria, me decepcionei com o filme, porque esperava mais dele. Mas, já que você provocou, vou atender sua sugestão, e tentarei revê-lo para ver se me escapou alguma coisa boa. Um abraço! Sérgio Cruz
Interessante como na tentativa de desmoralizar o herói que foi criado na república o roteirista apenas repetiu o discurso que foi contado pelo Governo na época que o conflito ocorreu… Belo texto, me ajudou bastante.