Há 80 anos, em 18 de janeiro de 1943, os soviéticos faziam a primeira ruptura ao cerco nazista sobre Leningrado – estabelecendo contato entre os que lutavam no interior da cidade e as forças soviéticas – a caminho de levantar o cerco, o que ocorreria quase um ano depois, em 27 de janeiro de 1944, 872 dias após haver sido estabelecido pelos nazistas.
Foi também, durante o cerco, quando o maestro Dmitri Shostakovich, que compôs sua 7ª Sinfonia, a “Leningradoskaia”, em homenagem à luta pela libertação da cidade, a teria executada em primeira mão pelos músicos que, com parquíssima alimentação, resistiam no interior da cidade. Naquele momento, como afirmou o maestro, Karl Eliasberg, que conduziu a sua estreia, no interior da cidade, em 9 de agosto de 1942, ainda sob pleno cerco, “triunfamos sobre a desalmada máquina de guerra nazista”.
Desta sua sinfonia, o compsitor Shostakovich destacou: “Dedico minha 7ª Sinfonia à nossa luta contra o fascismo, à nossa vindoura vitória sobre o inimigo, a minha cidade natal, Leningrado”.
Segue o artigo, escrito pela cineasta e escritora norte-americana Nora Hoppe para o portal The Saker, no qual aborda os diversos aspectos da resistência e dos passos traçados pelo povo de Leningrado até a vitória sobre a besta invasora e de como o maestro Shostakovich participou desta batalha
NORA HOPPE
A Sétima Sinfonia de Shostakovich foi escrita em 1941, principalmente durante o cerco de Leningrado pelas forças nazistas. Quando teve sua estreia na cidade devastada pela guerra em 9 de agosto de 1942 – interpretada pelos músicos sobreviventes e emagrecidos da Orquestra da Rádio de Leningrado, complementada por artistas militares, diante de um público faminto, mas eufórico – foi aclamada como um farol universal de resistência à barbárie.
O maestro, Karl Eliasberg, que conduziu sua apresentação de estreia, concluiu que “naquele momento, triunfamos sobre a desalmada máquina de guerra nazista”.
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“Naquela pacífica manhã de verão de 22 de junho de 1941, eu estava a caminho do Estádio de Leningrado para assistir ao meu jogo de futebol favorito de domingo” , escreveu Dmitri Dmitrievich Shostakovich, “mas o discurso de rádio de Molotov me encontrou correndo pela rua… a existência construtiva foi rudemente destruída!” A invasão nazista da Rússia trouxe as hordas de Hitler para os portões de Leningrado.
Foi naquela mesma data que Adolf Hitler lançou a Operação Barbarossa (o plano para a invasão da União Soviética)
De acordo com o plano alemão para a Frente Oriental, a tarefa original da formação estratégica alemã conhecida como Grupo de Exércitos Norte era conquistar Leningrado em meados de setembro de 1941. No entanto, isso se mostrou impossível. A mobilização da população civil para criar linhas defensivas no sul da cidade – principalmente mulheres, já que os homens trabalhavam nas fábricas ou tinham que ir para o front – e a forte resistência do Exército Vermelho impediu que os alemães tomassem a cidade como uma ‘tempestade’, como gostariam.
Em julho de 1941, Franz Alfred Six, líder do “Comando Avançado Moscou do Einsatzgruppe B”, disse a oficiais militares alemães: “Hitler pretende estender a fronteira oriental do Reich até a linha Baku-Stalingrado-Moscou-Leningrado… Surgirá uma ‘faixa ardente’ na qual toda a vida será apagada”, acrescentando: “ Pretende-se dizimar cerca de 30 milhões de russos que vivem nesta faixa por meio da fome, removendo todos os alimentos”. Six adiantou que Leningrado seria arrasada e que todos os alemães estavam “proibidos, sob pena de morte, de dar a um russo até mesmo um pedaço de pão”.
Sob o comando do marechal de campo Wilhelm Ritter von Leeb, o “Grupo do Exército do Norte” avançou em Leningrado pelo sul, enquanto as forças militares finlandesas estavam estacionadas no norte (sua participação no bloqueio consistia principalmente na recaptura de terras perdidas na Guerra de Inverno). O objetivo era cercar Leningrado, cortando assim todas as comunicações com a cidade e impedindo que os defensores recebessem suprimentos. A política de fome dos alemães era a principal arma a ser usada contra os cidadãos. ‘Cientistas’ alemães já haviam calculado que a cidade chegaria à fome depois de apenas algumas semanas.
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Na sexta-feira, 27 de junho de 1941, o Conselho de Deputados da administração de Leningrado organizou os “grupos de primeira resposta” de civis. Nos dias seguintes, a população civil de Leningrado foi informada da ameaça nazista e mais de um milhão de cidadãos foram mobilizados para a construção de fortificações.
Shostakovich, de 34 anos, que na época era chefe do departamento de piano do Conservatório de Leningrado, apresentou três pedidos solicitando ser enviado ao Exército Vermelho e depois à Milícia do Povo, mas foi recusado por ambos por razões médicas – devido à sua visão deficiente. Em vez disso, o compositor foi aconselhado a “bater no inimigo com a arma que possuía”.
Mas Shostakovich insistiu em participar da defesa antiaérea e se ofereceu como voluntário na Guarda Nacional em Leningrado. Juntamente com outros camaradas, ele cavou trincheiras e vigiava durante os ataques aéreos noturnos, enquanto organizava música leve para tocar na frente. No mês seguinte, ele foi transferido para a brigada de combate a incêndio do Conservatório de Leningrado, onde foi fotografado em seu uniforme de bombeiro, de pé no telhado do conservatório.
Em 15 de julho de 1941, impelido e galvanizado pela atmosfera sinistra da guerra e pela grande apreensão que sentia por sua pátria e sua amada cidade, Shostakovich começou a trabalhar febrilmente no primeiro movimento de uma composição que se tornaria sua Sétima Sinfonia.
O primeiro movimento da sinfonia foi escrito durante um bombardeio implacável da cidade. Shostakovich relembrou: “Nem os ataques selvagens, nem os aviões alemães, nem a atmosfera sinistra da cidade sitiada poderiam impedir o fluxo. Trabalhei com uma intensidade desumana que nunca havia alcançado antes”.
Em 2 de setembro , dia em que os alemães intensificaram o bombardeio da cidade, Shostakovich começou a trabalhar no segundo movimento. Trabalhando em alta intensidade entre as corridas para o abrigo antiaéreo mais próximo, ele o completou em duas semanas.
Em 8 de setembro, Leningrado foi encerrada no fatídico cerco.
No dia 16 de setembro, o compositor fez uma transmissão especial de rádio para encorajar os soldados do front, dizendo: “Há uma hora completei a segunda parte do meu novo trabalho. Se eu conseguir completar a terceira e a quarta partes desta composição, e se ela sair bem, poderei chamá-la de Sétima Sinfonia… Apesar das condições do tempo de guerra, apesar do perigo que ameaça Leningrado, escrevi as duas primeiras partes em um tempo comparativamente curto. Por que estou lhes contando isso? Estou contando isso para que os ouvintes sintonizados agora saibam que a vida em nossa cidade é normal. Apesar da ameaça de invasão, as coisas seguem normalmente em nossa cidade. Todos nós somos soldados hoje, e aqueles que trabalham no campo da cultura e das artes estão cumprindo seu dever em pé de igualdade com todos os outros cidadãos de Leningrado … Músicos soviéticos, meus queridos, numerosos camaradas de armas, meus amigos! Lembrem-se que grave perigo enfrenta nossa arte. Defendamos nossa música, trabalhemos honesta e desinteressadamente… Camaradas, em breve estarei completando minha Sétima Sinfonia. Minha mente está clara e o desejo de criar me impulsiona a concluir minha composição. E então voltarei ao ar com meu novo trabalho e esperarei nervosamente seu julgamento severo e amigável. Garanto-vos em nome de todos os leningradenses, em nome de todos os que trabalham no campo da cultura e das artes, que somos invencíveis e que estamos sempre nos nossos postos… Garanto-vos que somos invencíveis”.
Naquela mesma noite, Shostakovich convidou vários músicos para seu apartamento para ouvir o que ele havia escrito até então. Depois que ele terminou o primeiro movimento, houve um longo silêncio. Um alerta de ataque aéreo soou. Ninguém se mexeu. Todos queriam ouvir a peça mais uma vez. Mas o compositor se desculpou brevemente para levar sua esposa Nina e seus filhos Galina e Maxim ao abrigo antiaéreo mais próximo. Quando ele voltou para seus convidados, ele repetiu o primeiro movimento para as explosões de bombas da Luftwaffe e fogo antiaéreo e então passou a tocar o próximo movimento. Suas reações profundamente emocionais o encorajaram a começar aquela noite no Adagio – a terceira parte. Ele completou este movimento em 29 de setembro.
Após um mês de condições angustiantes em Leningrado, Shostakovich recebeu ordens de sair da cidade. Ele inicialmente resistiu a isso, mas Stalin estava determinado a proteger os ativos mais renomados da cultura soviética. O compositor finalmente concordou em ser conduzido, junto com sua família para Moscou e levou os três primeiros movimentos da sinfonia com ele. Em um artigo escrito em 8 de outubro , Shostakovich afirmou que sua nova composição deveria ser uma “sinfonia sobre nossa época, nosso povo, nossa guerra sagrada e nossa vitória”.
Com a própria Moscou sob ameaça, artistas e também indústrias russas foram transladados para o leste. Duas semanas após sua chegada à capital, Shostakovich e sua família embarcaram em um trem, junto com os compositores Aram Khachaturian e Dmitri Kabalevsky e membros do Teatro Bolshoi. Seu destino era a capital temporária Kuybyshev (hoje conhecida como Samara no Volga), mais de 600 milhas a leste de Moscou. Lá, a família se abrigou em um apartamento de três cômodos com um piano de cauda.
Atormentado pela devastação que testemunhou em Leningrado e pelos perigos que agora enfrentava Moscou, Shostakovich sentiu-se paralisado e incapaz de se concentrar criativamente por várias semanas. Mas no início de dezembro, quando o Exército Vermelho conseguiu repelir os alemães antes que eles pudessem chegar a Moscou, ele experimentou uma renovada explosão de energia… e em questão de duas semanas levou a composição a uma conclusão triunfante – em 27 de dezembro de 1941.
Uma inscrição foi escrita na página de título da partitura, “Dedicado à cidade de Leningrado. Dmitry Dmitrievich Shostakovich” e na página final, “27.XII.1941. Kuybyshev” .
Concebida às margens do Neva e concluída às margens do Volga, esta obra musical tornou-se a composição musical mais lendária de todo o período da Segunda Guerra Mundial… uma conquista social e política em escala global.
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As condições em Leningrado durante os 872 dias do cerco foram terríveis. Milhares de soldados tiveram mortes horríveis tentando defender a cidade, enquanto seus habitantes sucumbiam a várias doenças ou fome. A cidade havia se tornado um inferno, com cadáveres espalhados pelas ruas, já que poucas pessoas podiam gastar energia para dar-lhes um enterro digno. Em fevereiro, equipes especiais removeram mais de 1.000 cadáveres por dia das ruas. Relatos de testemunhas oculares contaram sobre pessoas que morreram de frio e fome deitadas nas portas das escadas. “Eles ficam lá porque as pessoas os deixam cair lá, do jeito que bebês recém-nascidos costumavam ser deixados. Os zeladores os varriam de manhã como lixo. Funerais, sepulturas, caixões foram esquecidos há muito tempo. Foi uma inundação de morte que não pôde ser controlada. Famílias inteiras desapareceram, apartamentos inteiros com suas famílias coletivas. Casas, ruas e bairros desapareceram.
Nos campos de batalha, as temperaturas do inverno tornavam impossível cavar buracos no solo congelado, e cadáveres congelados eram usados em vez de toras para reforçar as paredes das trincheiras e proteger os telhados.
De acordo com estatísticas oficiais apresentadas no Julgamento de Nuremberg, conforme relatado pela RT, o bombardeio incessante da cidade matou um total de 17.000 pessoas, enquanto o frio intenso e a fome – planejados pelos alemães por meio da interrupção de serviços públicos, água, energia e alimentos – tiraram a vida de outros 632.000. Enquanto isso, 332.000 soldados morreram. Além disso, muitos dos que foram evacuados (mais 1.400.000 – principalmente mulheres e crianças) morreram durante o traslado devido à fome e aos bombardeios.
O historiador Michael Walzer resumiu que “mais civis morreram no cerco de Leningrado do que nos infernos modernistas de Hamburgo, Dresden, Tóquio, Hiroshima e Nagasaki juntos”. O cerco de Leningrado é classificado como o cerco mais letal da história mundial, e alguns historiadores falam das operações de cerco em termos de genocídio, com uma “política de fome motivada racialmente” que se tornou parte integrante da guerra alemã, sem precedentes, de extermínio contra populações de União Soviética em geral.
Um artigo intitulado “Como São Petersburgo sobreviveu ao bloqueio mais sangrento da história da humanidade” relatou que, em outubro de 2022, o Tribunal da Cidade de São Petersburgo finalmente reconheceu o cerco como genocídio. O presidente Vladimir Putin comentou em novembro de 2022: “Recentemente, o bloqueio de Leningrado também foi reconhecido como um ato de genocídio. Já era hora de fazer isso. Ao organizar o bloqueio, os nazistas buscaram propositalmente destruir os habitantes de Leningrado – desde crianças até idosos. Isso também é confirmado, como já dto por seus próprios documentos”.
O artigo continua descrevendo como o presidente Putin, que nasceu dez anos após o fim do cerco de Leningrado, foi diretamente afetado pela tragédia: “No início do bloqueio, o filho de um ano e meio da mãe de Vladimir Putin, Maria Ivanovna, foi levado para o traslado, mas nunca conseguiu sair da cidade. Segundo o relato oficial, a criança, Viktor, morreu de uma doença. A única notificação que sua mãe recebeu sobre isso foi uma certidão de óbito. Como disse o próprio líder russo, ela só conseguiu sobreviver pelo fato de seu marido, pai de Putin, ter sido ferido no front e receber rações aumentadas, que repassava à esposa durante suas visitas diárias ao hospital. Isso continuou até que ele desmaiou de fome, e os médicos, que entenderam o que estava acontecendo, proibiram novas visitas. Depois de deixar o hospital de muletas com uma perna quebrada, ele cuidou de sua esposa, que havia parado de andar por fraqueza. Foi na cabeça de ponte sobre o Neva que ele “teve o calcanhar e o tornozelo despedaçados por uma granada, teve que atravessar o rio a nado e só conseguiu chegar à margem direita com a ajuda de um companheiro de armas”.
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Poucas composições importantes foram executadas em circunstâncias tão cruéis como a 7ª Sinfonia de Dmitri Shostakovich. No auge dos horrores do cerco, o maestro Karl Eliasberg recebeu a orientação de iniciar os ensaios da Sétima Sinfonia com a Orquestra da Rádio de Leningrado. A cidade estava sitiada há tanto tempo que, dos 40 membros originais da Orquestra da Rádio de Leningrado, apenas 15 permaneceram na cidade, o restante estava morto ou lutando na linha de frente. Uma ordem teve que ser emitida aos soldados na frente de batalha, convocando qualquer pessoa com habilidade musical para se juntar à orquestra. Desta forma, a formação da sinfonia uniu e inspirou a população e demonstrou que o povo de Leningrado nunca cederia a seus inimigos.
Com temperaturas de inverno abaixo de 30 graus Celsius negativos e sem eletricidade ou aquecimento durante o segundo inverno do Cerco, o pianista da orquestra, Alexander Kamensky, manteve as mãos aquecidas colocando dois tijolos quentes em ambos os lados do piano para irradiar um pouco de calor. O maestro Karl Eliasberg estava tão fraco que teve que ser levado aos ensaios em um trenó.
A oboísta Ksenia Mattus, uma sobrevivente, teve que levar seu instrumento a um artesão para conserto, pois partes dele se decompuseram após o primeiro inverno do Cerco. Como pagamento, o artesão perguntou se ela poderia encontrar um “gatinho” para ele – para sua próxima refeição.
A flautista Galina Lelukhina, outra sobrevivente, lembra: “Ao ouvir o anúncio no rádio, peguei minha flauta debaixo do braço e fui. Entrei e vi Karl Ilyich Eliasberg, parecendo distrófico. Ele me disse: ‘Não vá mais para a fábrica. Agora você vai trabalhar na orquestra’. No início éramos poucos. Algumas pessoas foram trazidas no trenó, outras caminharam com uma bengala”.
O primeiro ensaio, em 30 de março de 1942, durou vinte minutos, pois todos estavam muito fracos e exaustos para continuar. Ksenia Mattus, a oboísta, comparou a mão do maestro a “um pássaro ferido caindo do céu”.
Os membros da orquestra não só tiveram que lutar por comida todos os dias, mas também tiveram que lidar com a morte agonizante de entes queridos.
Como a maioria dos músicos sobreviventes estava morrendo de fome, o ensaio era árduo: muitos desmaiavam com frequência durante os ensaios e três até morreram nesse período. No final das contas, a orquestra conseguiu ensaiar a sinfonia inteira apenas uma vez antes do concerto.
Finalmente o grande dia chegou, e os músicos famintos e seu resoluto maestro Eliasberg se reuniram no Grand Philharmonia Hall de Leningrado em 9 de agosto de 1942 para a grande estreia.
A execução da Sétima Sinfonia de Shostakovich foi simbólica de várias maneiras. Hitler planejara um banquete no Hotel Astoria em 9 de agosto de 1942, o mesmo dia da estreia em Leningrado. Mas não apenas os alemães não conseguiram entrar na cidade, nenhum ataque aéreo alemão interrompeu a apresentação e nem uma única bomba caiu no Grand Philharmonia Hall naquela noite, embora o prédio estivesse iluminado.
“Não havia cortinas e a luz de dentro do corredor jorrava pelas janelas noite adentro”, lembrou o trombonista Viktor Orlovsky. “As pessoas na platéia estavam apertando os olhos porque não estavam mais acostumadas com luzes elétricas. Todos estavam vestidos com suas melhores roupas e alguns até tinham o cabelo penteado. A atmosfera era tão festiva e otimista que já parecia a vitória”.
A apresentação foi transmitida por alto-falantes em todo o perímetro da cidade – tanto para animar o povo russo quanto para transmitir aos alemães que a rendição estava fora de questão.
Para o concerto, cadeiras vazias foram colocadas na orquestra para representar os músicos que morreram antes que a apresentação pudesse ser realizada.
“As salas estavam sempre lotadas – em todas as apresentações, o que eu achava extraordinário”, lembrou o trombonista Viktor Orlovsky. “Durante o período mais difícil do cerco, quando a ração diária das pessoas caiu para 125 gramas de pão, alguns trocavam sua refeição diária por um ingresso para nosso show”. Muitos moradores de Leningrado que não tinham rádio em casa se reuniam nas ruas para ouvir música orquestral vinda dos alto-falantes. Foi uma afirmação, uma oportunidade de superar a fraqueza física, o medo e a fome.
O dia 9 de agosto de 1942 foi “um dia de vitória em tempos de guerra”, como descreveu a célebre poeta de Leningrado Olga Berggolts, uma das sobreviventes do bloqueio.
Olga Prut, diretora de “As musas não ficaram silentes”, uma exposição do Museu de São Petersburgo com foco nas artes durante o Cerco, disse que o fenômeno dessa colossal dedicação às artes durante o bloqueio foi muito mais do que uma simples distração dos medos, fome e solidão. “Ninguém ouve música com tanta profundidade como os que estão à beira da morte… A música realiza uma transformação milagrosa em um prisioneiro de campo de concentração ou em um doente irremediável, transformando o escravo em um homem livre. É um renascimento emocional”.
Muitos anos após o fim da guerra, o maestro Eliasberg foi abordado por um grupo de turistas alemães, que estavam do outro lado das barricadas e que ouviram sua orquestra tocar a Sétima Sinfonia de Shostakovich. Eles vieram especificamente para dizer ao maestro que naquela época, em 9 de agosto de 1942, perceberam que nunca tomariam Leningrado. Porque, diziam, havia um fator mais importante do que a fome, o medo e a morte. Era a vontade de permanecer humano.
Tatiana Vasilyeva, sobrevivente do Cerco e espectadora daquela lendária performance, mais tarde relembraria: “Quando entrei no salão, as lágrimas encheram meus olhos, porque havia tantas pessoas, todas em estado de euforia. Ouvimos com tanta emoção, porque todos nós vivemos para este momento – para vir ao Philharmonia Hall, para ouvir esta sinfonia. Esta foi uma sinfonia viva – é a que vivemos. Esta foi a nossa sinfonia. A Leningradskaia…”
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Este trabalho apaixonado denuncia os crimes de guerra e celebra a justa luta contra o mal e as pessoas que perseveram diante da adversidade. Comentando o movimento final de sua sinfonia, “Vitória”, Dmitri Dmitrievich Shostakovich disse: “Minha ideia de vitória não é algo brutal; é melhor explicada como a vitória da luz sobre as trevas, da humanidade sobre a barbárie, da razão sobre a reação”.
Essa luta continua até hoje.
Assistam à apresentação da 7ª Sinfonia de Shostakovich, na condução de Valery Gergiev no vídeo: