O artigo, aparecido em “The Intercept Brasil”, sobre supostos prejuízos aos “povos tradicionais” por investimentos chineses no Maranhão – e pela, também suposta, política do governador Flávio Dino de favorecer esses investimentos – tem algo de velho, muito velho.
Não chega a ter cheiro de bolor, mas por pouco. E não pelo assunto, mas pelo método.
Uma vez, já tem muito tempo, o autor destas linhas participou de um debate sobre o desenvolvimento do Brasil no primeiro governo Getúlio Vargas.
Tudo ia dentro do previsível, quando um dos anti-getulistas sacou um argumento impressionante (quer dizer, impressionante para mim): Getúlio, com a sua mania de aumentar a capacidade energética do país, havia destruído uma comunidade – se não me falha a memória, no interior de São Paulo – pela construção de uma usina termelétrica ou hidrelétrica.
Não lembro dos detalhes – tenho eles anotados em algum lugar, mas não vou procurá-los agora. Demoraria muito tempo e seria desnecessário.
O que me impressionou: que alguém levantasse contra Getúlio a sua determinação de fazer o país crescer, de ampliar a base necessária ao crescimento – a energia.
Ou, em outros termos, que o argumento contra Getúlio fosse a sua tenacidade em tirar o Brasil do atraso, depois de quase 40 anos de domínio oligárquico.
É possível que tal ou qual “comunidade”, naquela época, não tenha sido muito bem tratada (e nem disso estou certo, já que boa parte dessas “comunidades” eram um resultado do atraso da República Velha).
Mas é evidente que não é possível sair do atraso sem tensões e sem problemas. A outra solução – aquela que evita outros problemas e tensões, mas conduz à morte inerme e servil – é não sair do atraso.
O Maranhão é a terra de Gonçalves Dias, Antonio Carlos de Carvalho e Nílson Araújo de Souza – somente para citar os que me vêm à memória.
Anos de oligarquia conduziram o Maranhão, segundo o IBGE, à pior, mais baixa, renda domiciliar per capita do país – abaixo, inclusive, de Alagoas, geralmente o Estado-paradigma dos economistas e sociólogos, quando se fala em pobreza no país.
Com uma diferença: os recursos naturais do Maranhão são muito mais abundantes, muito mais favoráveis ao crescimento, do que aqueles de Alagoas, a começar pelo fato de que os maranhenses estão fora do Polígono das Secas.
O governador Flávio Dino tem feito um esforço – e não pequeno – para superar essa situação. Segundo a própria matéria de “The Intercept”, “o Maranhão teve um crescimento do PIB de 5,3% em 2017 e, em 2018, de 2,8% – acima da média nacional”.
A mesma matéria reproduz a avaliação do crescimento maranhense, no governo Flávio Dino, do professor Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior, coordenador do Grupo de Estudos Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente da Universidade Federal do Maranhão: “O que você tem é uma ampliação gigantesca de projetos e empreendimentos sendo efetivados, e todos eles são relacionados com a forte expansão capitalista para essa região, e uma configuração do Maranhão como área de produção de riqueza, mas principalmente como área de passagem“.
Não é pouca coisa, quando a política econômica federal esteve, nos últimos anos, sob a chefia de Levy ou Meirelles – e, agora, Guedes.
Entretanto, segundo a matéria publicada em “The Intercept”, o grande problema do Maranhão – quiçá do Brasil – é o imperialismo chinês… Essa palavra – imperialismo – não foi usada na matéria, mas é o que significa:
- “… a atual gestão responde às demandas do capital internacional – especialmente o chinês”
- “… indica os arranjos econômicos que mais interessam ao capital chinês e que podem afetar comunidades inteiras, de maneira irreversível, a milhares de quilômetros de distância dos centros financeiros onde se decide o destino dos investimentos.”
- “O porto privado chinês faz parte desse contexto.”
- “… o gigante asiático deixou de ser fonte de mão-de-obra barata e empobrecida. Agora, o país comanda o processo de globalização.”
A nova de que a China “comanda o processo de globalização” deve, urgentemente, ser comunicada àquele pessoal de Wall Street.
Mas esse é, exatamente, o problema.
Visto sob outra ótica:
Nós, aqui, achando que o principal problema do Brasil é o imperialismo norte-americano, que sufoca o país, através da submissão de alguns, e o impede de crescer, mas agora aprendemos, com a matéria aparecida em “The Intercept”, que o problema é o “imperialismo” chinês, porque está contribuindo para o crescimento da economia do Maranhão.
Trata-se de um imperialismo sui generis (quase que escrevemos, como falava aquela personagem de Helena Morley: “Deveras!”), que estimula o crescimento, ao invés de estancá-lo pela espoliação.
Porém, há mais na matéria, além dessa dificuldade de compreender em que mundo vivemos. Há um anticomunismo, provavelmente inconsciente, mas que não chamaríamos de “mal disfarçado”, revelado, sobretudo, no tom com que o governador Flávio Dino é tratado:
- “… uma das primeiras ações do comunista…”
- “… o comunista Dino foi reeleito…”
- “… ao projeto político a ser apresentado pelo comunista…”
É verdade, como todo mundo sabe: o governador Flávio Dino é membro do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Mas também já sabemos, há muito, no Brasil, que essa repetição da palavra “comunista” associada a Dino não é uma homenagem às concepções ideológicas do governador. Muito menos às tradições gloriosas do PCdoB.
Também nada tem a ver com alguma informação ao leitor.
Talvez sirva para assustar – indevidamente – alguma senhora idosa que votou em Dino lá em Bacabal ou em Barra do Corda. Talvez nem isso, já que as senhoras idosas maranhenses são conhecidas por sua argúcia.
Mas que o objetivo dessa repetição não é inocente, isso não é.
Fomos tentados a dizer que o truque dessa matéria é o mesmo do anti-getulista a que nos referimos: ver a realidade sob o prisma do que é pequeno, porque assim é mais fácil eliminar ou escamotear o que é grande.
Mas não seria justo: estamos certos de que a autora da matéria não tem consciência de que isso é um truque. Pelo contrário, perpetrou-o, mas movida por legítimos sentimentos humanitários. Infelizmente, são sentimentos de humanidade na escala dos fatos de que se ocupa.
Se o Maranhão fosse uma coleção de “povos tradicionais”, talvez houvesse alguma racionalidade em expressar tais sentimentos com essa ênfase. Entretanto, o Maranhão é composto de maranhenses – natos ou lá radicados: mais de sete milhões, segundo o IBGE.
É, portanto, necessário ao governador, antes de tudo, governar para todos – sobretudo para a maioria deles.
Os casos citados no artigo publicado por “The Intercept” não são difíceis de resolver. Principalmente quando se trata de um governador que, em toda a sua trajetória, sempre se mostrou permeável, sensível, às necessidades do povo.
Talvez haja esse mérito no artigo: ao expor alguns problemas, proporcionar sua solução.
CARLOS LOPES
P.S.: Nós preferimos não abordar o fato de que essa matéria foi financiada pelo Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center. Mas não podemos omitir dos nossos leitores uma informação que, honestamente, foi proporcionada pela própria autora da reportagem.