Dino manda investigar emendas de R$ 53 mi para ONG ensinar jogos on line

Flávio Dino, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). (Foto: Fellipe Sampaio - STF)

A cidade Anápolis (GO) tem 398 mil habitantes. Associação Moriá escreveu, em documento, que beneficiou quase 10 vezes mais do que o número de moradores do município, distante 154 km do DF

O atestado de capacidade técnica apresentado ao governo federal pela Associação Moriá, destinatária de R$ 53,3 milhões em emendas de parlamentares do Distrito Federal, diz que a entidade atendeu 3,5 milhões de crianças e adolescentes em Anápolis, município de Goiás que tem 398 mil habitantes de todas as faixas etárias, e fica a 154 km do DF. Estas informações são do portal Metrópoles.

Trata-se de longa história e vários fios soltos. Uma das exigências para receber a verba destinada por parlamentares eleitos pelo DF é a apresentação do atestado de capacidade técnica, que, no caso da Associação Moriá, resumiu-se à autodeclaração assinada pelo presidente da entidade, Gustavo Henrique Fonseca de Deus.

O ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), mandou na última quinta-feira (17) os órgãos competentes investigarem possíveis irregularidades.

Este é o primeiro fio solto. Por que deputados do DF destinaram emendas para ONG de cidade do Estado de Goiás? Não é proibido ou errado, mas é estranho.

A ONG conseguiu o sinal verde para movimentar dezenas de milhões de reais a partir de documento com a informação flagrantemente falsa.

Parlamentares do DF enviaram R$ 46 milhões do total das emendas destinadas à ONG, entre 2023 e 2024, para projeto que ensina jovens a jogar games, como Free Fire, Valorant, LoL, Teamfight Tactics e eFootball, e faz torneio entre os participantes.

Este é outro fio solto. Com tantos cursos profissionalizantes importantes para jovens, por que destinar recursos públicos federais para aprender jogos eletrônicos, que servem mais como brincadeiras de crianças e adolescentes?

ORIGEM DAS EMENDA

Conheça os 5 parlamentares que enviaram emenda para o projeto gamer no DF, entre 2023 e 2024:

·        deputado federal Fred Linhares (Republicanos): R$ 27,6 milhões;

·        senador Izalci Lucas (PL): R$ 15,5 milhões;

·        deputada federal Bia Kicis (PL): R$ 1,5 milhão;

·        deputado federal Julio Cesar (Republicanos): R$ 800 mil; e

·        deputada distrital Paula Belmonte (Cidadania): R$ 500 mil.

Para comprovar que teria capacidade de executar o programa de jogos on-line, a entidade elencou 4 projetos realizados anteriormente, dos quais 3 foram feitos em parceria com a Prefeitura de Anápolis e 1 com o Ministério da Cidadania.

Segundo o atestado de capacidade técnica da própria instituição, foram atendidas “mais de 3,5 milhões de crianças e adolescentes em todas as regiões de Anápolis”, em período de 3 meses, no ano de 2019. O documento consta em todos os processos decorrentes das emendas para o projeto gamer, conforme informações do site Transferegov, do governo federal, desde de 2022.

Essa quantidade de beneficiários que a Associação Moriá diz ter atendido entre outubro e dezembro de 2019, em Anápolis, é maior do que o número de moradores de todo o Distrito Federal, que tem 2.982.818 de habitantes, segundo o IBGE.

COMPROVAÇÕES FRÁGEIS

Apenas fotos – acompanham o atestado de capacidade técnica -, em que aparecem pequenos grupos de jovens praticando esportes. Este é mais um fio solto.

Do total de R$ 46 milhões que os parlamentares do DF enviaram para o projeto gamer, já foram efetivamente pagos R$ 8 milhões, de acordo com o Portal da Transparência do governo federal. O restante do valor foi empenhado, ou seja, o recurso já está reservado para a despesa.

MOTORISTA E ESTETICISTA

O ministro Flávio Dino determinou, na última quinta-feira (17), a intimação da AGU (Advocacia-Geral da União) e das advocacias-gerais da Câmara e do Senado para explicarem o repasse de emendas parlamentares milionárias à Associação Moriá, após reportagem do Metrópoles revelar que a ONG registrou como diretores motorista e esteticista, no comando da entidade.

A entidade também não funciona no endereço informado oficialmente aos órgãos públicos.

Dino assinalou, no despacho, que os fatos revelados na reportagem podem impedir o pagamento das emendas parlamentares.

“Caso confirmados, os fatos relatados na reportagem evidenciam novas irregularidades relacionadas à entidade Associação Moriá, incompatíveis com os preceitos constitucionais da transparência e da rastreabilidade (art. 163-A da CF) e caracterizadoras de impedimento de ordem técnica, na forma do art. 10 da Lei Complementar nº 210/2024, os quais impedem a execução de emendas parlamentares”, escreveu o ministro.

FALTA DE TRANSPARÊNCIA

A Associação Moriá já tinha entrado na mira do STF por falta de transparência sobre a execução das emendas parlamentares. Em fevereiro, a entidade teve repasses suspensos. Os pagamentos foram liberados após a ONG publicar dados sobre os recursos no site próprio.

O ministro do STF, relator das ações que tratam das emendas parlamentares, continua a acompanhar o plano de trabalho apresentado pelo governo federal e Congresso Nacional, o que inclui a fiscalização das entidades beneficiadas.

Dino deu prazo até 12 de agosto para que os órgãos comprovem a adoção de medidas normativas para a adequada destinação de recursos a entidades dessa natureza, “de modo a evitar que sejam beneficiadas entidades sem sede realmente em funcionamento e/ou sem corpo técnico; entidades que não tenham comprovada atuação na área alcançada pela emenda parlamentar; entidades sem atuação anterior no Estado alcançado pela emenda parlamentar”.

“ERRO DE DIGITAÇÃO”

Questionado pelo portal Metrópoles sobre o recebimento do atestado necessário para acesso às emendas milionárias, mas que foi aprovado com informação falsa, o Ministério do Esporte escreveu que, “além da declaração [de capacidade técnica], a associação cumpriu com as exigências normativas, com a apresentação de comprovantes de experiência prévia na realização do objeto da parceria ou de objeto de natureza semelhante, conforme dispõe o art. 26, inciso III, do Decreto nº 8.726, de 27 de abril de 2016”.

A Associação Moriá afirmou que a informação sobre o atendimento de 3,5 milhões de jovens em Anápolis, incluído nos atestados apresentados em todos os processos, trata-se de “erro de digitação”. Este é outro fio solto.

Como assim, “erro de digitação”? Então teria havido menos pessoas atendidas? Quantas? Trata-se, pois, de “erro” grave. E não mero erro de digitação.

“No referido documento, consta equivocadamente que um dos programas de esporte realizados pela entidade teria atendido 3,5 milhões de crianças e adolescentes no município de Anápolis. No entanto, o número correto é de 3,5 mil (três mil e quinhentos) participantes, o que corresponde à estimativa real de beneficiários diretamente atendidos durante a execução do projeto”, declarou a entidade.

MAIOR INVESTIDOR

O deputado federal Fred Linhares se esquivou e escreveu que “seu papel se restringe à indicação de recursos ao ministério competente, responsável pela análise técnica, aprovação e execução do projeto apresentado pela entidade proponente”.

“Cabe exclusivamente ao governo federal, por meio dos ministérios, avaliar a viabilidade do projeto, atestar a capacidade técnica da instituição e autorizar a liberação dos recursos. O parlamentar não participa da contratação da entidade nem da execução do projeto, que é acompanhada pelos órgãos de controle interno e externo”, tergiversou.

“A indicação teve como premissa um projeto com forte impacto social: a oferta de cursos profissionalizantes voltados para alunos da rede pública, especialmente nas áreas de tecnologia e inovação, com foco em carreiras do futuro. Trata-se de uma iniciativa que visa preparar jovens para o mercado de trabalho e fomentar a inclusão digital, deixando um legado importante para a educação do Distrito Federal”, declarou o parlamentar.

IZALCI E BIA

Outros parlamentares deram suas explicações se insentando e jogando a culpa no governo federal. O senador Izalci Lucas escreveu que o “Jedis-DF é uma iniciativa da Associação Moriá, realizada em parceria com o Instituto Federal de Brasília (IFB) e o Serviço Social do Comércio (Sesc), e sua execução se dá por meio do Ministério do Esporte, que o aprova e o executa”.

A deputada Bia Kicis escreveu que “a indicação dos recursos foi feita por meio de emenda de bancada, por indicação do deputado Fred Linhares, e foi aprovada de forma coletiva, para um projeto que considero relevante: qualificação de jovens em áreas digitais, com foco nos jogos digitais e tecnologia, setores importantes para o futuro do DF e geração de emprego e renda”.

“A associação indicada apresentava toda a documentação exigida pela legislação no momento da destinação e estava habilitada formalmente a executar o projeto, como tantas outras entidades parceiras do poder público. A escolha teve como critério o mérito da proposta apresentada, que se conecta à necessidade de formação profissional e inovação”, escreveu a deputada.

PAULA BELMONTE E JULIO CESAR

A deputada distrital Paula Belmonte escreveu que “os recursos de emenda parlamentar foram destinados a um projeto social apresentado pelo professor Marcos Pacco, um educador reconhecido em todo o Distrito Federal, focado no atendimento de crianças, adolescentes e de pessoas com deficiências (PCDs) na rede pública de ensino”.

“À época, a assessoria técnica da deputada analisou a alocação e não havia qualquer impedimento legal para a realização do aporte. Após a execução da emenda, a deputada acompanhou a realização do projeto. Em uma das ocasiões, em agosto de 2024, a deputada esteve no Centro Educacional (CED) 14 de Ceilândia, no Setor O, para o lançamento dos Jogos Estudantis Digitais de Brasília, realizados com recursos da emenda. Cabe ressaltar que o projeto apresentou a documentação para fins de prestação de contas e aguarda a análise técnica do ministério que executou os recursos”, informou a deputada distrital.

O deputado Julio Cesar Ribeiro escreveu que “a destinação da emenda de bancada no valor de R$ 800 mil à referida instituição seguiu os trâmites legais previstos no orçamento público, limitando-se à indicação dos recursos ao ministério responsável, que conduz todas as etapas técnicas e operacionais do processo”.

“Cabe ao governo federal, por meio do ministério competente, avaliar a viabilidade da proposta, atestar a capacidade da entidade proponente, celebrar o convênio e liberar os recursos. A indicação teve como base o mérito social da proposta, voltada à oferta de cursos de qualificação profissional para jovens da rede pública, especialmente nas áreas de tecnologia e inovação, promovendo inclusão digital e preparando os estudantes para o mercado de trabalho”, declarou.

INVESTIGAÇÃO DOS ÓRGÃOS DE CONTROLE

Para juntar todos esses fios soltos será necessária investigação dos órgãos de controle como o MPF (Ministério Público Federal), TCU (Tribunal de Contas da União) e Polícia Federal.

Os autores das emendas, em particular o deputado que mais destinou/investiu recursos à ONG, embora não fosse obrigado, poderia ter visitado a instituição, que fica a apenas 154 km do DF. Ter-lhe-ia custado muito pouco essa iniciativa, já que foi o que mais “acreditou” no “projeto”.

Em razão de todos esses fios soltos nas indicações de emendas parlamentares para esse projeto na cidade de Anápolis, interior de Goiás, que pode-se dizer que “algumas coisas erradas [nisso], não estão certas”.

M. V.

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