FLÁVIO DINO*
Em março, quando a OMS declarou haver uma pandemia de Covid-19, era impossível não prever que a crise sanitária agravaria fortemente as dificuldades econômicas já enfrentadas pelo País. Naquele momento, em nome de um objetivo maior – o de mitigar os efeitos devastadores da doença nas famílias, nas empresas e nos empregos – esperava-se que o governo federal liderasse a travessia com medidas consistentes voltadas a esses propósitos. Porém, não foi o que aconteceu.
A primeira reação do ministro Paulo Guedes foi insistir numa agenda de reformas retrógradas, com cara de anos 80 e inspiração em Reagan e Thatcher— que já enfrentava dificuldades em deslanchar. A realidade, como se sabe, tem o poder de mudar planos, e o governo foi vencido pelos outros poderes. Foi obrigado a usar recursos públicos em programas emergenciais, sobretudo voltados para a população de baixa renda. Ainda assim, só graças à ação do Congresso que o valor do auxílio emergencial foi elevado, de 200 reais, como queria o governo, para 600 reais, ajudando o Brasil a atravessar a crise.
Entretanto, o governo Bolsonaro nunca abandonou a retórica privatista. Nem a pandemia ou a evidente resistência a essa vertente parecem mudar sua visão do papel do Estado. Agora, tal retórica recrudesce com a desvairada ideia de privatizar o SUS e sob o argumento de que os recursos da venda da Eletrobras, a maior empresa de geração elétrica da América Latina, podem reduzir o déficit fiscal agravado pela crise.
Os números não sustentam os planos do governo federal. Do ponto de vista fiscal, a privatização da Eletrobras é irrelevante. Apenas para este ano, a projeção de déficit já está na casa dos 877 bilhões de reais. O governo prevê arrecadar cerca de 12,5 bilhões de reais com a venda da empresa. Ou seja, o Brasil abriria mão de sua soberania energética e, em troca, não cobriria sequer uma semana do rombo nas contas públicas. É bom ressaltar que, ao longo dos últimos 20 anos, a Eletrobras pagou mais de 15 bilhões de reais à União em dividendos.
Usar a proteção aos mais pobres como argumento para vender a estatal carece de lógica. O dinheiro da privatização é um evento único e não teria utilidade, por exemplo, para um programa permanente de distribuição de renda, como diz pretender o governo na tentativa de reciclar o Bolsa Família. Além disso, sobram estudos mostrando que a privatização vai acarretar aumento na conta de luz.
A Eletrobras é uma empresa lucrativa. Tem baixo endividamento e conta com cerca de 15 bilhões de reais em caixa. São recursos disponíveis para investimento em obras no setor elétrico, na produção de energia limpa e barata, e com capacidade de gerar emprego e renda. Este sim é um destino moderno para a Eletrobras, em sintonia com os tempos que vivemos. Privatizar, neste caso, é arcaico.
Não há qualquer garantia de que uma Eletrobras controlada pelo capital estrangeiro vá optar pelo caminho do investimento no País, deixando de enviar ao exterior os lucros obtidos às custas do consumidor brasileiro. O setor privado está cauteloso diante das incertezas no Brasil e no mundo, e investimentos têm sido adiados. A ABDIB (Associação Brasileira da Indústria de Base e Infraestrutura) afirma que, diante desse quadro de dificuldade, cresce a “importância de recuperar o investimento público, até o momento em que os agentes privados enxerguem com mais clareza um horizonte de segurança para investir”.
Oito meses depois do início da pandemia, existem muitos números dramáticos no País. Mais de 158 mil brasileiros já perderam a vida para o coronavírus, enquanto a recessão já deixou mais de 13 milhões sem ocupação. A realidade exige trabalho árduo. O Estado deve dispor de todos os seus instrumentos, como bancos, fundos públicos e empresas, para enfrentar a crise com investimentos e medidas concretas. Propostas atrasadas como a privatização da Eletrobras não se encaixam nessa moldura.
* Governador do Maranhão, foi juiz federal (1994-2006) e deputado federal (2007-2011)
Texto extraído do portal Carta Capital