Valor foi detectado por diferença entre auditoria do Sopping e o caixa da loja. O volume de créditos efetivos nas contas da loja superou em 25% o faturamento auferido pelos fiscais do shopping de 2015 a 2018. Em valores absolutos, a diferença chega a R$ 1,6 milhão
O Ministério Público do Rio de Janeiro afirma que o senador Flávio Bolsonaro usou a loja de chocolates que ele possui num shopping da Barra da Tijuca, zona oeste da cidade, para lavar dinheiro.
Para a Promotoria, a origem dos recursos em espécie, lavados na loja, é o esquema de desvio montado no antigo gabinete do senador na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), operado por Queiroz, seu ex-assessor e amigo íntimo de Jair Bolsonaro.
De acordo com a investigação, o objetivo com a lavagem de dinheiro, que pode ter chegado a R$ 2,3 milhões, é viabilizar que o dinheiro vivo, obtido ilegalmente através da transferência de parte de salários de funcionários fantasmas do gabinete, sejam lavados ao integrarem o patrimônio do senador e de sua loja, da qual ele tem 50% da sociedade.
Além de lavagem de dinheiro, a Promotoria investiga a prática de crimes como peculato, ocultação de patrimônio e organização criminosa.
Uma das suspeitas do MP-RJ é que o esquema montado no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro tenha lavado dinheiro, inclusive, de milícias do Rio de Janeiro.
Raimunda Veras Magalhães e Danielle Nóbrega, respectivamente mãe e ex-mulher de Adriano da Nóbrega, chefe da milícia de Rio das Pedras e do Escritório do Crime, uma espécie de central de assassinatos dos grupos criminosos, eram funcionárias fantasmas do gabinete e repassavam recursos para o deputado e para o miliciano.
Em dezembro de 2019, o MP fez buscas na loja de chocolates. Os sigilos bancário e fiscal da Bolsotini (nome oficial da loja), do sócio, Alexandre Ferreira Dias Santini, e do contador foram quebrados por decisão do juiz da 27.ª Vara Criminal do Rio, Flávio Itabaiana.
Investigadores suspeitam que Santini possa ter figurado nos contratos como “laranja”, para simular que os custos da operação teriam sido divididos igualmente entre ele e Flávio, quando, na verdade, o casal Bolsonaro arcou com quase todas as despesas.
De acordo com pedido de quebra de sigilo feita pela Promotoria, constatou-se que os salários de assessores fantasmas coincidiam com lançamentos nos registros de comercialização da Bolsotini Chocolates e Café. “Evidentemente, o destino final dos recursos ilícitos não era o empreendimento comercial, mas, sim, dar aparência lícita ao produto do crime de peculato antes do ingresso formal dos valores no patrimônio pessoal do parlamentar”, diz documento.
O volume de depósitos em dinheiro vivo na conta da loja de chocolates era desproporcional em relação a negócios semelhantes, afirma o MP-RJ. Em depoimento ao Ministério Público, o antigo proprietário da loja adquirida por Flávio afirmou que essa proporção girava em torno de 20%. Desde que ele Flávio assumiu, esses percentuais se alteraram, indo para 37,5% e chegando a 41,8% de 2015 a 2017.
Os investigadores afirmam também que essas entradas de recursos em espécie coincidiam com datas em que Queiroz arrecadava parte dos salários dos empregados do então deputado estadual.
A Promotoria também identificou que essa proporção não se mantinha estável ao longo do ano. Em período de vendas maiores, como na Páscoa, o pagamento com dinheiro representava apenas cerca de 20% do recebido por cartões. Essa taxa aumentava nos demais meses do ano. Foi o que ocorreu de 22 de novembro a 7 de dezembro de 2015, quando os depósitos em espécie foram equivalentes a 92% do recebimento por cartões. O período coincide com o início do pagamento de 13º de servidores da Assembleia.
A suspeita é que enquanto as vendas, na maioria das vezes feitas com cartão, variavam de acordo com a época do ano, as entradas de dinheiro vivo não respeitavam o movimento de clientes da loja, mas o repasse de salário dos ex-assessores de Flávio. Os promotores recorreram também à auditoria feita pelo shopping nas lojas para cálculo do aluguel, que também considera o faturamento do estabelecimento —modalidade chamada de “aluguel de desempenho”. Essa fiscalização costuma ser feita também presencialmente, para contabilizar as vendas realizadas.
O volume de créditos efetivos nas contas da loja superou em 25% o faturamento auferido pelos fiscais do shopping de 2015 a 2018. Em valores absolutos, a diferença chega a R$ 1,6 milhão. “Pelo confronto entre os valores creditados na conta corrente da empresa e o real faturamento da loja informado pela administração do shopping é possível apurar a divergência de valores que corresponde aos recursos de origem ilícita inseridos artificialmente no patrimônio da empresa”, escreveram os promotores responsáveis.
“O uso de uma franquia dentro de um shopping center para lavar dinheiro não foi uma escolha sábia dos envolvidos na ação criminosa”, afirma o Ministério Público.
A Bolsotini Chocolates e Café foi comprada por R$ 1 milhão em 2015. O antigo dono da loja recebeu R$ 800 mil. Mais R$ 200 mil foram de integralização de capital – R$ 100 mil de cada sócio – e R$ 45 mil da taxa de franquia. O valor teria sido custeado integralmente por Flávio, segundo as investigações. Os R$ 550 mil saíram da conta da sua mulher, Fernanda Antunes Figueira Bolsonaro, que não é sócia formal do negócio. Na declaração de Imposto de Renda, o senador declarou em 2014 ter colocado R$ 50 mil no negócio.
Entre todas as operações, o Ministério Público avalia que Flávio lavou até R$ 2,3 milhões com transações imobiliárias e com sua loja de chocolates. O Gaecc (Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção) diz que a maior parte da lavagem se deu na franquia da Kopenhagen. Há ainda suspeita de lavagem de R$ 638,4 mil nas operações de compra e venda de dois imóveis em Copacabana (zona sul do Rio). Ela decorre do fato de Glenn Dillard, responsável por vender os imóveis a Flávio e Fernanda, ter depositado ao mesmo tempo em sua conta os cheques entregues pelo casal e a quantia em dinheiro vivo.
No dia 27 de novembro de 2012, Flávio e a mulher compraram dois imóveis em Copacabana. A escritura aponta o valor da operação como sendo de R$ 310 mil. O pagamento ocorreu em duas etapas. Primeiro, foi feito um sinal de R$ 100 mil pago em cheques no dia 6 de novembro. Outros dois cheques (que somam R$ 210 mil) foram entregues na data da assinatura da escritura. O MP-RJ afirma que, no mesmo dia da concretização do negócio, Dillard esteve no banco HSBC, onde tinha conta, para depositar os valores. A agência usada fica a 450 metros do cartório onde foi assinada a escritura, que, por sua vez, fica a 50 metros da Assembleia Legislativa do Rio.
O norte-americano, segundo a investigação, depositou ao mesmo tempo os cheques e R$ 638.400 em dinheiro vivo. A Promotoria afirma que Dillard não realizou outra transação imobiliária no segundo semestre de 2012, que poderia ser uma origem para o depósito diversa do dinheiro da transação do senador.
Ao mesmo tempo, os promotores escrevem na petição que Flávio e Fernanda também não haviam vendido nenhum imóvel naquele ano e não tinham disponibilidade financeira para a operação. Isso indica, para os investigadores, que a única origem possível para os recursos em espécie é o recolhimento de dinheiro feito junto a ex-assessores.
Flávio Bolsonaro vendeu os imóveis pouco mais de um ano depois, tendo declarado um lucro de R$ 813 mil. Pelas contas do Ministério Público, o rendimento real foi de R$ 176,6 mil.
O uso de imóveis para lavagem de dinheiro consiste no subfaturamento da compra para que, numa futura venda lucrativa, o patrimônio final esteja justificado pela transação imobiliária. Para o MP-RJ, os R$ 638,4 mil passaram a ter aparência legal após a revenda feita por Flávio ser declarada à Receita Federal.
O senador nega as acusações de crime e afirma que todas as operações financeiras da loja são legais e fruto de recursos próprios, declarados regularmente à Receita. Desde o início das investigações, ele acusa perseguição política. Anteriormente, afirmou que o dinheiro investido por ele no negócio tem lastro em transação feita naquele período. E que os valores foram arcados pelos dois sócios.
Flávio afirma que é comum o uso de dinheiro vivo em compras em lojas como a sua, uma franquia da Kopenhagen. Ele disse ser natural receber a maior parte da distribuição de lucros da empresa, apesar de ter 50% da sociedade.
“Se eu quisesse lavar dinheiro eu abriria uma franquia, que tem o controle externo da franqueadora, que tem auditoria? Abriria uma outra atividade qualquer que não deveria satisfação a ninguém”, disse o senador. Em nota, a Kopenhagen afirmou que não realiza “nenhum tipo de auditoria fiscal com seus franqueados, que são pessoas jurídicas totalmente independentes da franqueadora”.
Os advogados do senador, Rodrigo Roca, Luciana Pires, Juliana Bierrenbach e Renata Azevedo, não comentam o caso, devido ao sigilo das investigações. Além de obter o direito a ser investigado no Órgão Especial do Tribunal de Justiça, por prerrogativa de foro, eles pediram à Procuradoria-Geral de Justiça do Rio que apure a conduta dos promotores, que teriam quebrado sigilo do caso. O MP não comenta apuração sob sigilo.
Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio, que movimentou em sua conta, segundo relatório do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) R$ 7 milhões entre 2014 e 2017, também se disse inocente. Ele afirmou, por meio de sua defesa, que não cometeu nenhum crime e afirma ter sido acusado injustamente pelo Ministério Público. Aponta ainda ilegalidade nas investigações e no procedimento na Justiça. A defesa de Santini não foi localizada.
Fonte: O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo