A Fundação Maurício Grabois (FMG) e sua Cátedra Claudio Campos deram início a uma série de conferências com o objetivo de subsidiar a elaboração de um novo programa nacional de desenvolvimento para o Brasil baseado no mercado interno e no investimento público
Nesta segunda-feira (1), ocorreu a abertura do Seminário “O Nacional-Desenvolvimentismo e o Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento”, promovido pela Fundação Maurício Grabois através da Cátedra Claudio Campos.
Analisaram o tema “Construção da Nação Brasileira”. A abertura contou com a presidente nacional do PCdoB, Luciana Santos, o presidente da Fundacão Maurício Grabois, Renato Rabelo, e Jorge Venâncio, presidente da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).
O debate teve a mediação de Rosanita Campos, coordenadora da Cátedra, Nilson Araújo de Souza, Diretor de Comunicação e Publicação da Fundação Maurício Grabois, professor titular da Cátedra Claudio Campos e um dos principais estudiosos e formuladores do nacional-desenvolvimentismo.
O professor Nilson Araújo, organizador do evento, junto com Renato Rabelo, estará na mesa como debatedor do próximo seminário, que terá como tema “Política Externa Independente e Defesa Nacional”. Fernando Garcia, historiador do Centro de Documentação e Memória da Fundação Maurício Grabois, também foi um dos mediadores do seminário.
O evento é o primeiro de uma série de onze conferências com um total de 60 palestrantes tratando do tema, visando apoiar o esforço no aprofundamento e atualização do Novo Programa Nacional de Desenvolvimento do PCdoB e subsidiar a Comissão de Programa que será constituída neste ano do Congresso do partido.
No primeiro debate foi feita a apresentação dos princípios que norteiam o nacional-desenvolvimentismo a partir da experiência brasileira, assim como sua condição defensiva na atualidade, com a hegemonia neoliberal.
O tema da busca por uma frente ampla na sociedade para mudança dessa correlação de forças também foi debatido.
PARA ROMPER A HEGEMONIA ECONÔMICA ATUAL
Na abertura, Luciana Santos, vice-governadora de Pernambuco, destacou a necessidade de construir convergências para dar o “salto civilizacional” necessário neste momento tão crítico e singular, materializando as grandes potencialidades do país em benefício de seu povo”.
Ela observou como a pandemia reordenou o debate em torno do papel do Estado e o tabuleiro geopolítico internacional, para além de qualquer debate sanitário ou econômico. A quebra dos tetos de gastos e ajustes fiscais, seja para salvar empresas e bancos, como também garantir a quarentena dos trabalhadores, foi uma das consequências da pandemia que revelou a contradição do dogma neoliberal do estado mínimo.
Luciana apontou como a disputa política pelas vacinas revelou o avanço tecno-científico, assim como as contradições produtivas, comerciais, industriais e mudanças nos padrões tecnológicos que atingem países da periferia de modo assimétrico. Desta forma, o mundo pós-Covid que se anuncia deve aprofundar desigualdades, impasses, injustiças sociais, desigualdades e polarizações políticas.
“Precisamos de um projeto que oriente o rumo do país”, diz Luciana. “Sem um projeto nacional de desenvolvimento, o Brasil encontra-se à deriva, de várias formas, inclusive pelo governo de sabotagem e negacionismo da pandemia, que leva a crise federativa ao limite de tensões entre estados. Por outro lado, essa deriva e caráter autoritário do governo Bolsonaro unificam amplos setores da sociedade como uma bandeira para interrompê-lo”, afirmou.
“Esta unidade de setores progressistas da sociedade precisa ter a percepção de que o país só cresceu e reduziu desigualdades a partir de um consenso mínimo em torno do papel que o Brasil deveria jogar a partir dos seus meios, recursos naturais e humanos. O governo Bolsonaro tem intensificado o processo de desindustrialização e desnacionalização, como mostra o desmonte de fábricas de diversos setores, distanciando o Brasil ainda mais das possibilidades da quarta revolução industrial”, considerou.
Para Luciana, o desafio da nossa geração é recuperar o pensamento do início do século XX que norteou os governos getulistas na formação de uma cadeia industrial no país, na criação do Banco Nacional de Desenvolvimento, da Petrobrás e da Eletrobrás. Para ela, o Brasil precisa se reconectar com essa trajetória nacional-desenvolvimentista de longa data.
Luciana destacou a obra de Mariana Mazzucato, autora de O Valor de Tudo, que desmistifica a meritocracia do “empreendedorismo inovador das start-ups” para mostrar que não existe grande empresa de tecnologia no mundo que não tenha sido priorizada pelo financiamento pesado de agências de desenvolvimento do governo americano.
Mazzucato defende que só o Estado pode correr os riscos inerentes ao investimento em ciência, tecnologia e inovação. Dizer que o setor privado investe capital de risco é uma falácia em qualquer lugar do mundo, segundo a americana.
Luciana também enfatizou a importância de resgatar o papel do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) como financiador desse desenvolvimento, após a extinção da política de juros de longo prazo, que sempre foi financiadora de outros bancos de fomento.
O papel da Petrobrás no desenvolvimento nacional também foi outro ponto destacado por ela, que descreve a empresa como “o verdadeiro ministério do petróleo”. Uma das maiores construções do povo brasileiro, a estatal encontra-se em pleno processo de desmonte da cadeia produtiva do petróleo. Com isso, o Estado está abandonando na capacidade da empresa o valor agregado da indústria, para vender óleo cru, ficando na dependência das variações do câmbio e do preço internacional. “Não foi graças aos acionistas, mas aos investimentos em inovação a fundo perdido do Estado que descobrimos o pré-sal”, reafirmou.
Tantos outros segmentos da indústria estratégica de tecnologia e inovação estão deixando o controle do Estado. Luciana mencionou o Serpro, a Dataprev e a Seitec, companhias lucrativas e estratégicas que agregam valor à indústria nacional. “É relevante ter indústria de fármacos desenvolvida que produz insumos, a altura do nosso tamanho”, disse ela.
“Estamos diante de forte crise do liberalismo em que aparecem expressões sombrias e retrógradas. O neocolonialismo e o neofascismo são os espectros que rondam a sociedade brasileira”, alertou Luciana. Ela concluiu apontando para a necessidade de construir consensos em torno de um novo projeto básico em que a luta passa pela soberania e pelo desenvolvimento nacional.
JORGE VENÂNCIO DESTACOU A IMPORTÂNCIA DO MERCADO INTERNO E DO INVESTIMENTIO PÚBLICO
Após a abertura de Luciana Santos, a mesa de debates foi iniciada por Jorge Venâncio, que fez uma apresentação de como o nacional-desenvolvimentismo se expressou no Brasil, a partir de pronunciamentos públicos de seus protagonistas, Getúlio Vargas e João Goulart.
A partir da constatação de que a industrialização e modernização da economia do Brasil surgiu após a Revolução de 1930, observa-se como caracteristicas econômicas centrais um salto de qualidade no mercado interno e no investimento público, num país que vivia da economia de exportação de café com salários muito baixos.
A ideia de um mercado interno vigoroso foi fundamental para este processo de industrialização, com medidas claras de construção dessa cadeia de proteção ao trabalho e à renda. Foi nesse período da década de 1930, em plena crise mundial capitalista, que o getulismo criou o Ministério do Trabalho (1930), a Lei da Sindicalização e criação da Previdência Social (1931), a jornada de oito horas (1932), a criação do salário-mínimo (1938), da Consolidação das Leis do Trabalho (1943). O retorno de Getúlio na década de 1950 também significou o reajuste do salário mínimo arrochado pelo governo Dutra, de Cr$ 380,00 para Cr$ 1.200,00 (1952) e reajuste de 100% para Cr$ 2.400,00 (1954) bem acima da inflação (42%).
“Nada desse incremento no mercado interno de consumo foi feito sem disputa política muito intensa, quando João Goulart era o ministro do trabalho de Getúlio”, observa. O aumento do salário mínimo foi tema do triste “manifesto dos coronéis” que não admitiam ter salário igual dos trabalhadores.
Mas ele também aponta o incremento no investimento público, no mesmo período, como um dos fatores fundamentais do nacional-desenvolvimentismo getulista. Citou a criação do Conselho Nacional do Petróleo (1938), do Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica (1939), da Companhia Siderúrgica Nacional (1940), da Companhia Vale do Rio Doce e do Banco de Crédito da Borracha (1942), da Companhia Nacional de Alcalis e Fábrica Nacional de Motores (1943), da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (1945), do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e do Banco do Nordeste (1952), da Petrobras (1953) e do envio ao Congresso do Projeto Eletrobrás (1954), criada por Jango em 1962. Nesta crescente desenvolvimentista, Venâncio destaca a percepção de Getúlio para a criação de bancos de fomento, para que o investimento público repercutisse no conjunto da economia e no investimento externo.
Para apontar fundamentos do nacional desenvolvimentismo que continuam princípios fundamentais para compreensão da atualidade, ele cita Álvaro Vieira Pinto, intelectual do ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros, organismo que foi um dos principais alvos do golpe de 1964 pela sua capacidade de formulação de uma política nacional para a economia. Ele destaca do intelectual a afirmação de que a industrialização sob controle estrangeiro não constitui sinal da expansão nacional, mas da expansão estrangeira sobre o Brasil. “Não caracteriza o nosso próprio de desenvolvimento, mas o desenvolvimento dos outros em nossa terra”.
Outro protagonista destacado desse período é Roberto Simonsen, fundador da Fiesp e presidente por cinco mandatos, que, em polêmica com Eugênio Gudin (1945), denuncia os efeitos do liberalismo internacional sobre a concentração de riquezas entre os países imperialistas. O industrial mostra que o controle desses países industrializados sobre o mercado de matérias-primas subordina países fornecedores de commodities como o Brasil, por meio de medidas protecionistas que estruturaram sua indústria e controle sobre o comércio mundial, às custas da exigência de liberalismo econômico por parte dos países pobres.
Essa posição do principal representante da indústria vale para a compreensão da realidade econômica atual e impressiona por não se ouvir mais entre aqueles que teriam maior interesse nesse ideário de proteção à cadeia produtiva nacional.
Outro pronunciamento de Getúlio Vargas, agora no Senado (1947), aponta para a ousadia de abordar o tema tabu da emissão de moeda em tempos de recessão. Ele defende que “não há o menor perigo” no aumento de meios de pagamento, acompanhado pelo aumento de bens de consumo, e uma elevação proporcional de tributação, que retira os excessos da circulação pelo meio fiscal. Para ele, o perigo está justamente na estagnação e repressão da emissão de moeda.
“Nega-se ao trabalhador uma parcela de dinheiro para reajustamento de seus salários alegando-se que isso afetará o custo da produção. Mas aumenta-se a parcela de juros do dinheiro, que hoje só circula em câmbio negro. O custo da produção não baixa. Antes pelo contrário: com a redução de meios para desenvolver-se, esse custo aumenta cada vez mais”, calcula Getúlio no mesmo pronunciamento em que rompe com a política economica do Governo Dutra.
Venâncio demonstra como o cálculo de Getúlio era ousado no combate aos monopólios e incentivo ao capitalismo de concorrência, tendência para promover a melhoria das condições de produtividade, baixa de preços e melhoria das condições de vida. Pelo contrário, ele constata que a cartelização da economia, com sua combinação de preços faz com que as empresas embolsem as melhorias de produtividade mantendo os preços altos.
Ele citou o caso da Volkswagen, no ABC, que tinha 40 mil funcionários produzindo carros baratos, sendo que, agora, com 10 mil trabalhadores produz muito mais, a preços muito mais altos, concentrando renda, prejudicando o consumidor, os fornecedores e extraindo o máximo de recursos do Estado pela corrupção ou pela pressão política.
Na mensagem que Getúlio encaminhou para ao Congresso para criação da Petrobrás (1951), Venâncio observa que se tratava de um conceito, não apenas uma questão técnica. Já no projeto de lei está clara a previsão de que a empresa seria “genuinamente brasileira com capital e administração nacionais”. Já se aponta a experiência internacional que demonstra que o “controle nacional é imprescindível”. O projeto teve o cuidado de criar mecanismos que evitassem o “perigo” de monopólios estrangeiros e nacionais agindo por meio da participação de capital privado na empresa.
Ao contrário do que ocorre agora, desde 2016, Getúlio já previa uma ampla cadeia produtiva de petróleo que englobasse toda a economia nacional, para além da produção do óleo, representada por 40%, sendo o resto relativo a refino, transporte e distribuição, que, para ele, era mais lucrativo. “Claramente, a prioridade era assumir o controle do refino, do transporte internacional com frota de navios brasileiros, enquanto, atualmente, a Petrobrás apenas extrai petróleo primário e importa o refinado, viabilizando as refinarias e empregos de outros países”, compara Venâncio.
No caso do setor elétrico, Getúlio denuncia as mesmas espoliações, em que empresas privadas estrangeiras, que controlavam o péssimo fornecimento de energia no país, exigiam recursos do governo para infraestrutura de suas redes, sem investimentos próprios. Foi assim que surgiu a ideia de criação da Eletrobrás, para assumir o controle do setor, já que não existia investimento de capital estrangeiro.
“É claro que esse programa vem ferir, frontalmente, os interesses nesse negócio. Mas, para tudo há um limite. E a resistência do povo estabeleceu esse limite intransponível”, afirmou Getúlio, já sinalizando para a importância de unidade e organização dos trabalhadores que vai reafirmar no fim traumático de seu governo. A crise política e enfrentamento econômico do nacional-desenvolvimentismo está explicitada na Carta Testamento, em que Getúlio denuncia a campanha entreguista contra o regime de proteção do trabalho, do salário, da Petrobrás e da Eletrobrás.
Venâncio contextualiza a ascensão de João Goulart, vice que tinha mais peso político e votos que Juscelino Kubistchek, numa época em que o vice-presidente era eleito à parte. Tudo pelo legado como ministro do Trabalho de Getúlio. Por ocasião da criação da Eletrobras, Jango ecoa as denúncias de Getúlio ao atacar a especulação do mercado.
Mais tarde, no Comício da Central, às vésperas do golpe militar, ele trata da importância dos investimentos governamentais em infraestrutura para beneficiar a população e não apenas “especuladores da terra”. Foi quando assinou decretos de reforma agrária em terras vizinhas a obras públicas e encampação de refinarias privadas que ainda existiam. Tudo isso em meio à defesa de manifestações populares que se espalhavam pelo país e foram utilizadas pelos militares como “ameaça à democracia”.
“SEM EXPANSÃO DO MERCADO INTERNO E DISTRIBUIÇÃO DE RENDA NÃO HAVERÁ DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO”
Em pronunciamento do então deputado Haroldo Lima (PCdoB), Venâncio destaca os números da desnacionalização na virada do século, auge da desindustrialização nos governos FHC. O capital estrangeiro controla 90% do setor eletro-eletrônico; 89% do setor automotivo; 86% do setor de higiene, limpeza e cosméticos; 77% da tecnologia da computação; 74% das telecomunicações; 74% do farmacêutico; 68% da indústria mecânica; 58% do setor de alimentos; e 54% do setor de plásticos e borracha.
Venâncio conclui apresentando as propostas de campanha presidencial de João Vicente Goulart, do PPL, em 2018, quando o objetivo é resgatar essa linha do nacional-desenvolvimentismo interrompida. Nessa altura, em grande medida, mais que propor avanços, as propostas tendem a interromper desmontes profundos das conquistas do período getulista, como a desvalorização do salário-mínimo, os ataques à Previdência, da reforma da CLT, do enfraquecimento da Justiça do Trabalho, da Terceirização da Atividade Fim, fortalecimento de bancos públicos, revogar a emenda do teto de gastos, entre outros. “Sem expansão do mercado interno e distribuição da renda não haverá desenvolvimento econômico”, diz o programa de governo.
Para enfrentar o rentismo e transferir os recursos para a produção, o programa propõe a redução dos juros reais, especialmente da Selic que remunera títulos da dívida do governo. Evitando desperdiçar recursos com pagamento de serviços da dívida, o governo pode aumentar significativamente o investimento público, além de favorecer o setor produtivo contra a especulação financeira pelo equilíbrio do câmbio. “Baixar os juros, sem elevar o investimento público, não faz sentido”, declara Venâncio.
O investimento público também pode ser elevado pela canalização da renda petroleira, hídrica, eólica e outras modalidades de renda da terra, diz o documento. Para isso, a campanha presidencial do PPL propunha fortalecer o caráter estatal da Petrobrás e da Eletrobrás e reverter as privatizações que minam a capacidade operacional dessas empresas, e de outras. As mudanças profundas na gestão da cadeia produtiva da Petrobrás, desde 2016, precisam ser revertidas, como o regime de concessão e partilha da exploração.
De acordo com o programa de governo, o terceiro pilar da ampliação da capacidade de investimento do Estado seria suprimir as desonerações tributárias, que elevaram a renúncia fiscal de 8,45% a 21,32% da arrecadação, ultrapassando os R$ 234 bilhõees em 2017. Dessa forma, uma série de medidas de reforma tributária são propostas visando tributar setores atualmente isentos sem justificativa plausível, assim como renda e propriedade dos mais ricos, e diminuir impostos indiretos, que taxam o salário dos trabalhadores. “As isenções precisam ter retorno à economia”, diz Venâncio, criticando isenções que apenas acumulam lucro para grandes corporações.
“Com o Estado cumprindo a sua parte, a elevação do investimento público estimulará o investimento privado e o país poderá dobrar em quatro anos a taxa geral de investimento que hoje se arrasta ao nível de 16% do PIB, um dos mais baixos da nossa história”, prevê o documento. Venâncio comparou o investimento da Índia, de 32%, e da China, de 40%, para demonstrar a irrelevância da capacidade do Estado brasileiro estimular o crescimento e desenvolvimento do país.
Ele concluiu citando medidas diretas propostas pela campanha de João Vicente Goulart, em 2018, que não encontram paralelo nos rumos do Brasil pós-golpe. São medidas desenvolvimentistas como retomar o processo de substituição de importações, reindustrializar o país, completar a construção de uma economia nacional independente; restabelecer os mecanismos universais de proteção à produção interna (tarifas, quotas, subsídios, cambio), de modo que a concorrência com a produção externa possa ocorrer em situação de equilíbrio; priorizar as empresas genuinamente nacionais nos financiamentos e encomendas do Estado; livrar o sistema de contratações publicas da carga burocrática que o torna instrumento dos cartéis; garantir às médias e pequenas empresas acesso aos créditos do BNDES; ampliar a infraestrutura nacional – energia, telecomunicações, rodovias, ferrovias, hidrovias, metrôs, portos, aeroportos, saneamento — principalmente através do setor público, cuja gestão em áreas de monopólio natural é mais adequada à satisfação dos interesses coletivos. “Está tudo de cabeça para baixo, o contrário do que esse governo está fazendo”, concluiu.
“TRANSOFRMAÇÕES DA DÉCADA DE 30 FORAM RESPONSÁVEIS PELA MAIS LONGA TRAJETÓRIA DE EXPANSÃO DA ECONOMIA BRASILEIRA”, APONTOU RENATO RABELO
A abordagem de Renato Rabelo teve o caráter de uma síntese que contextualiza a atualidade de desmonte do ideário nacional-desenvolvimentista, particularmente após a ditadura militar. O cenário neoliberal construído internacionalmente pelo Consenso de Washington afeta profundamente as economias latino-americanas, interrompendo qualquer possibilidade de crescimento econômico desses países.
A partir dessa síntese, Renato apresenta a atualidade da análise programática feita pelo PCdoB, ainda em 2009, com propostas claramente fundadas no ideário nacional-desenvolvimentista adaptado ao novo contexto de enfrentamento neoliberal. Ele conclui sua valiosa análise com propostas de atualização àquela plataforma programática, a partir do novo cenário de avanço autoritário da extrema-direita e de combate ao ultraliberalismo sem precedentes que os governos a partir de 2016 tentam impor ao país.
Ao mencionar os dois ciclos históricos de construção da nação brasileira, Renato priorizou as transformações mais profundas da etapa pós-Revolução de 1930, com a ruptura com as oligarquias, o princípio de uma industrialização e urbanização intensas, a partir dos governos getulistas. Transformações que vão culminar em avanços econômicos-sociais no getulismo da década de 1950.
“Transformações responsáveis pela mais longa trajetória de expansão da economia brasileira, a maior da nossa história, que duraria 50 anos, operando as maiores taxas de crescimento no mundo capitalista da época. Crescimento similar somente ocorreria a partir da década de 80 na República Popular da China”, frisa Renato.
Ele ressalta o modo como a proteção ao trabalhador teve efeito dinamizador sobre o mercado de consumo interno pela melhora no poder de compra. Proteção que não foi apenas de um governo, mas institucionalizada pela legislação trabalhista da CLT. Um processo avançado que teria se completado com as oito Reformas de Base de João Goulart, caso seu governo não tivesse sido interrompido de forma traumática pelo golpe militar de 1964.
Renato resgata o pensamento de Celso Furtado, que, em 1992, explica o ciclo declinante da economia brasileira, a partir da década de 1980. Surgem os famigerados ajustes fiscais para pagamento de juros da dívida externa, que avançam para o superávit primário. Todo um cenário de dependência e interferências externas que não vigorou nos países asiáticos, levando-os ao rumo do desenvolvimentismo acelerado.
“Os interesses dos credores e rentistas foi agravado pelo avanço da desnacionalização da economia com drenagem de grandes recursos para o exterior, superexploração da força de trabalho e estreitamento do consumo interno”, resume ele, o círculo vicioso da crise estrutural que se instalou, desde então. A partir dessa financeirização, fragiliza-se o setor produtivo industrial e desenvolve-se o agronegócio, pelo interesse das superpotências industriais, tirando protagonismo anterior dos industriais para substituí-lo pelos grandes proprietários de terra. O Brasil assume um período de semiestagnação, recessão, desindustrialização e reprimarização da economia.
O desenvolvimentismo é antagonizado pelo sistêmico fiscalismo financista, uma assumida política macroeconômica anti-desenvolvimento, ao implantar o tripé econômico dos juros altos e câmbio apreciado para garantir metas fiscais e inflacionárias. O caráter antidesenvolvimentista dessas medidas aprofundam a dependência, a desnacionalização e a financeirização da economia, desestimulando a indústria e a produção.
Renato admite que o período dos governos Lula-Dilma interromperam o rigor desse fiscalismo para retomar medidas típicas do nacional-desenvolvimentismo, visando estimular o mercado interno. Foram significativas conquistas sociais, defesa da soberania nacional, aumento do investimento na infraestrutura, redimensionamento na educação, superação do aval e submissão ao FMI, relativa estabilidade lastreada pelas reservas cambiais. Tudo isso, para culminar no golpismo institucionalizado de 2016, que retomou a hegemonia financeira globalizada e a política sistêmica do ajuste fiscal. “Após a queda de Dilma, a dependência se exacerbou”, constata Renato.
Nada disso, diz ele, se deu desconectado de um contexto internacional de múltiplas crises provocadas e aprofundadas pelos países centrais do capitalismo, a partir de 2008, que levaram ao avanço da extrema-direita e de um ambiente neofascista no mundo. A pandemia de 2020 acentua as consequências danosas da financeirização global capitalista, enquanto evidencia as contradições do neoliberalismo e seu austericídio econômico.
A atualização do Programa de 2009, conforme ressalta Renato, não pode se dar sem objetivar o rumo socialista, ainda que pela via da aplicação do Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento (NPND). “Não há passagem direta do capitalismo ao socialismo”, lembra. Assim, Renato observa que não se trata de elaborar um programa de construção do socialismo, mas de construção da nação. A construção do socialismo seria um desafio histórico, a partir de uma terceira ruptura civilizacional.
Um estado desenvolvimentista já seria um grande passo, que não pode ser dado nos marcos do capitalismo dependente e periférico atual. Mudanças estruturais em vários âmbitos da institucionalidade brasileira precisam ser acionadas para superar a atual crise estrutural.
Para Renato, a crise mundial de 2008 e a atual pandemia apresentaram desafios maiores para compreensão do cenário em perspectiva, para atualização de um programa econômico lastreado na realidade e correlação de forças ainda indefinida. A defensiva imposta aos setores progressistas pelas forças fascistizantes da extrema-direita dominante, acaba por limitar as respostas imediatas à luta pela vida, pela democracia, pelo emprego e retomada do crescimento.
Renato aponta que a luta precisa seguir adiante, para além da pandemia, rumo a um projeto estrutural de longo prazo para o país. “É disto que se trata este debate. Como recuperar a experiência histórica no enfrentamento da dependência, sobretudo, dos aspectos que contribuíram para aprofundar a crise, e estudar o desenvolvimento tecnológico e estrutural?”.
O impacto dessa situação no âmbito nacional e global alimenta uma crise estrutural no Brasil, com raízes nas várias formas de dependência, que se agravam com o status neocolonial atual. Um neocolonialismo que se impõe, não mais pela força bruta, mas pela inserção subordinada nos marcos do capitalismo mundial, a monopolização da economia, o aprofundamento do parasitismo rentista, a estagnação econômica, tudo favorecendo a desindustrialização e a reprimarização da economia.
“É PRECISO O FOMENTO DAS FORÇAS PRODUTIVAS POR MEIO DO AUMENTO DA TAXA DE INVESTIMENTO PARA ATENDER AS CRESCENTES NECESSIDADES DA POPULAÇÃO”
Para Renato, os elementos centrais da alternativa de um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento precisam ser debatidos levando em conta a experiência brasileira de 1930 a 1980 e aspectos da experiência da Ásia. Ambas sob princípios norteadores que conflitam com a lógica política atual como a orientação e a estratégia do desenvolvimento sob a condução de um Estado forte. Foi a partir de políticas industriais elaboradas e estimuladas pelo Estado nacional que se formaram conglomerados (empresariais) estatais e privados em conexão com sistemas financeiros nacionais.
Isso foi possível conforme se estruturou burocracias com alto grau de instrução comprometidas com o projeto nacional, maiorias políticas convencidas da nessecidade desse planejamento, além de bancos públicos para o “financiamento do desenvolvimento”.
Renato também observa como o debate intelectual em torno de ideias desenvolvimentistas tem avançado desde o colapso econômico de 2008, nos EUA e Europa, e se impõem também durante a pandemia. A Moderna Teoria da Moeda (MMT, em inglês) é um desses paradigmas teóricos que ganham espaço diante do crescimento da miséria e desigualdade nos EUA, propondo emissão desreprimida de moeda para estimular o mercado interno, desmontando o modelo fiscalista financista e retomando a importância do investimento público. O debate sobre a importância de reduzir desigualdades econômicas para garantir a sustentabilidade do capitalismo também ganhou espaço, assim como ganha corpo na dinâmica internacional a ideia de desenvolvimento sustentável com proteção do meio ambiente. A pandemia revelou como a renda básica pode ser um fator de promoção do mercado interno, evitando ciclos recessivos profundos.
Outro norte para uma estratégia desenvolvimentista no contexto atual brasileiro precisa entender o mundo do trabalho como elemento central. Renato mencionou o “dilaceramento” atual mercado de trabalho, sem garantias de seguridade para os trabalhadores, renda reprimida e cada vez mais informalização.
Para isso, seria preciso o fomento das forças produtivas por meio de aumento da taxa de investimento para atender as crescentes necessidades da população. “Este o segundo grande desafio, avançar a taxa de investimento de 13% para 25%, o que já seria uma revolução, mesmo distante da China, que investe 45% de seu PIB”, sugere Renato, como medida fundamental para a reindustrialização do país.
“A reindustrialização vai precisar desse aumento de investimento e de sua proteção principalmente de um câmbio administrado e da prioridade nos financiamentos e encomendas do Estado. Na reconstrução do país vai precisar de uma reforma do sistema financeiro, que fortaleça o papel dos bancos públicos”, disse.
O terceiro desafio, para Renato, seria um salto na base industrial brasileira avançando tecnologicamente para dominar atividades produtivas mais avançadas e sofisticadas para alcançar a revolução 4.0 da indústria. No entanto, Renato admite a dificuldade de construir um sistema nacional de inovação consistente com essa demanda.
“Mas, o que importa é a força política da decisão advinda de um governo comprometido com um avançado projeto de nação, respaldado por ampla base social e que reúna as condições da mudança da ordem econômica e financeira”, declara o dirigente. Em sua opinião, os recursos estão disponíveis, ainda que drenados para o parasitismo financeiro internacional, para monopólios e os milionários que não são tributados devidamente.
Renato conclui resgatando das Reformas Estruturais bloqueadas em 1964, de imediato, a Reforma Tributária progressiva e Reforma do Sistema Financeiro, fortalecendo os bancos estatais. “Requer demolir o entulho neoliberal para reconstruir o país”, resumiu.
Após as intervenções principais, o debate prosseguiu por mais duas horas com comentários, sugestões e indagações de lideranças sociais e políticas, assim como estudiosos do tema. Entre estes, Dilermando Toni, Sérgio Cruz, Assis Melo, Davidson Magalhães, Aloísio Barroso, Ana Rocha, Olival Freire, Ronald Freitas, Ronald Santos, Odorico, Augusto Vasconcelos, Robério Granja, Walter Sorrentino e Euler Ivo Vieira. O evento virtual reuniu cerca de 200 convidados.
O debate teve a mediação de Rosanita Campos, coordenadora da Cátedra, Nilson Araújo de Souza, Diretor de Comunicação e Publicação da Fundação Maurício Grabois e professor titular da Cátedra Claudio Campos e Fernando Garcia, historiador do Centro de Documentação e Memória da Fundação Maurício Grabois.
O temário do seminário baseou-se em pontos do Programa do PCdoB de 2009 e no Programa eleitoral de 2018 do PPL para a candidatura presidencial de João Vicente Goulart.
Com informações do Portal de Noticias da Fundação Maurício Grabois