Com Bolsonaro, em 2021 foram registradas 113 internações por desnutrição a cada 100 mil nascimentos. A criança vem ao hospital para comer”, diz o médico
Um estudo inédito da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) revelou que, em 2021, o número de internações de bebês com desnutrição no Brasil foi o maior dos últimos 14 anos. Bebês com menos de 1 ano atendidos em postos de saúde e hospitais com insuficiência de nutrientes, muitas vezes também desidratadas e com quadro de infecção.
Em 2021, foram registradas 113 internações por desnutrição a cada 100 mil nascimentos, pior patamar dos últimos 14 anos. Trata-se de aumento de 10,9% em relação a 2008 (101,9 casos de hospitalização), ano de início do período pesquisado. O estudo mostra também que, em 2021, foram oito crianças de até um ano de idade levadas ao hospital todos os dias por falta de comida.
Em números absolutos, 2.939 crianças nessa faixa etária necessitaram de internação no ano passado, segundo a pesquisa do Observatório de Saúde na Infância (Observa Infância), ligado à Fiocruz. O problema está ainda mais acentuado entre bebês que vivem nas regiões Nordeste e Centro-Oeste do País.
“O que essas hospitalizações por desnutrição representam? Não é só fome. Há todo um contexto de vulnerabilidade social envolvido”, explica Cristiano Boccolini, coordenador do Observa Infância e responsável pela análise, feita com dados do Sistema de Informações Hospitalares (SIH), do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (Sinasc) e do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM).
Segundo Buccolini, isso se explica em “um contexto de baixa taxa de saneamento e de disponibilidade de água potável, que aumenta a suscetibilidade a infecções por pneumonias e diarreias”.
Ele enfatiza que se trata de uma grave realidade porque doenças debilitam muito a saúde das crianças, especialmente quando se trata de bebês que nem sequer completaram 1 ano de vida. “Soma-se um quadro de ausência, privação ou diminuição de consumo energético com um contexto social desfavorável. Isso no corpo de uma criança, que é muito vulnerável. É aí que entram a desnutrição, as infecções e as hospitalizações”.
No Nordeste, onde o problema é mais grave, o número de hospitalizações está 51% acima da taxa nacional, que ficou em 113 internações por 100 mil nascimentos em 2021. Na região, ocorreram 171,5 hospitalizações nessa faixa etária para cada 100 mil nascimentos, conforme o levantamento. O Nordeste concentra Estados com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) no País, segundo o Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil de 2017.
Nas capitais brasileiras, a situação não é muito distinta. “A gente vê uma concentração também desses casos de hospitalização por desnutrição nas capitais, indicando que aqui mesmo no Rio de Janeiro, em São Paulo, Brasília, Belo Horizonte, grandes centros urbanos a gente tem bolsões de pobreza, bolsões de crianças que estão invisíveis ao sistema público, que sofrem desnutrição e estão sendo internadas por causa disso”, afirma o coordenador da pesquisa.
QUADROS GRAVES
Assistente social do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Isis Araújo, que acompanha as famílias durante o período de internação, diz que “nesta faixa de até um ano, os bebês com desnutrição que chegam já estão graves, em sua maioria”. Ela explica que o HC recebe casos mais graves, transferidos de Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e de hospitais municipais.
“A partir do olhar da minha área, que é social, vejo a falta de acesso à rede de saúde dos municípios”, afirma. “A atenção básica tem papel fundamental no cuidado de várias doenças que poderiam ser tratadas sem a necessidade de internação hospitalar”, relata.
Alimentar a criança, na medida adequada em que ela possa receber comida, é a providência inicial do atendimento, além de propiciar suplementos de vitamina e sais minerais. Para Ruben Maggi, pediatra do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP), no Recife, a desnutrição não é uma doença médica, mas sim uma doença social.
Não é soro na veia, não é antibiótico, não é oxigênio, não é nebulização. A criança vem ao hospital para comer”, diz o médico.
O atendimento médico no SUS tem evitado que a situação piore. Apesar do aumento das internações, a mortalidade infantil não cresceu. Mas a nutricionista da USP Ana Paula Bortoletto alerta sobre os prejuízos ao desenvolvimento de crianças com meses de vida, privadas de comida.
“Essa criança tem consequências de desenvolvimento, e a desnutrição nessa faixa etária pode, inclusive, ser irreversível, trazendo impactos em relação a déficit de cognição, a déficit de desenvolvimento”, explica.
Algumas famílias encontram apoio em ONG’s e instituições que atuam com programas de assistência a famílias carentes, como é o caso da mãe de Téo, que recebeu ajuda de uma dessas entidades, no bairro onde mora, para não faltar mais nada na mesa.
Apesar de a ajuda ser fundamental nessas situações, os pesquisadores cobram ações do governo para resolver, de forma efetiva, essa crueldade.
“Precisamos conseguir direcionar, melhor o nosso alvo, ser mais eficientes em identificar e alcançar famílias com vulnerabilidade social”, defende Cristiano Boccolini.
O Ministério da Saúde disse que no ano passado destinou R$ 345 milhões aos municípios para de incentivo e fortalecimento incentivar de programas de atenção a crianças com menos de sete anos e gestantes com má nutrição.
Segundo estudo feito por pesquisadores da PUC do Rio Grande do Sul, a pobreza infantil aumentou no país depois da pandemia. Levando em consideração os dados da PNAD Contínua, do IBGE, se concluiu que a proporção de crianças com até seis anos vivendo abaixo da linha da pobreza saltou de 36,1%, em 2020, para 44,7%, em 2021.
Isso significa que cada pessoa da família vive, por mês, com o máximo de R$ 465. No ano passado, 12,7% estavam na faixa de extrema pobreza, onde a renda mensal por pessoa não passa de R$ 161. É a taxa mais alta desde o primeiro ano de coleta de dados pelo IBGE, em 2012.
Apesar desses números, o governo Bolsonaro anunciou um corte de 97,5% das verbas para a construção de novas creches no orçamento do próximo ano. As creches, que atendem a crianças de 0 a 3 anos de idade, muitas vezes se constitui no espaço onde, além do acesso à educação, as crianças suprem a necessidade de alimentação e nutrientes que não encontram nas suas casas.
“Considerando o alarmante aumento da pobreza no Brasil, que tem afetado principalmente os mais vulneráveis, entre estes, as crianças, reduzir os investimentos na primeira infância, significa asfixiar uma geração de meninos e meninas que encontram nos espaços escolares a possibilidade de viverem dignamente as suas infâncias”, diz Cecília Aquino, diretora do Sedin – Sindicato dos Servidores da Infância do Município de São Paulo.