Enquanto Trump rasga o Tratado de Proibição de Mísseis Nucleares de Alcance Intermediário, trazendo de volta o risco de uma guerra nuclear, ameaça assaltar o petróleo da Venezuela e deixou 1 milhão de servidores federais e terceirizados um mês sem salário, uma das principais discussões na mídia dos EUA é se o débil mental que aparece com a cara pintada de preto, ao lado de outro débil mental trajado de Ku Klux Klan, é o não é o governador democrata da Virgínia, Ralph Northam, tirada do anuário de 1984 de uma Escola de Medicina.
O presidente Trump, que em matéria de racismo é quase imbatível (“mexicanos estupradores”, “assassinos salvadorenhos”, “muçulmanos terroristas”, africanos “países de merda”), até tuitou que, se os republicanos tivessem a foto na época da eleição, iriam ganhar “com 20 pontos de vantagem”.
Quem achou a foto foi um rebento do Breitbartnews, o Big League Politics, em vingança pelo fato de os democratas, com outra foto de flagrante racista, outra ‘blackface’, esta de 2005, ter torrado o secretário de Estado da Flórida, o republicano Michael Erthel, que se viu forçado a renunciar na semana passada após vir a público sua performance.
Northam primeiro pediu meias desculpas, no dia seguinte remendou que “não era ele”. O diabo é que acharam outra foto dele – de cara lavada, sem margem para dúvidas -, com exatamente a mesma calça xadrezada – e ridícula – usada no dia do alegado ‘blackface’.
Ele até admitiu ter cometido uma ‘blackface’ em outra ocasião, “para imitar Michael Jackson”, mas não explicou como a foto do cara preta ao lado do encapuzado do KKK fora parar na página pessoal dele no anuário escolar, que declarou “jamais” ter visto. Quem sabe o encapuzado branco reluzente também gostava de soul music?
Olhando bem as raízes de Northam, o episódio não chegar a ser uma completa surpresa. Ele é oriundo da parte mais rural, remota e conservadora da Virgínia, em um dos estados onde o racismo é mais arraigado nos EUA. Era republicano e respaldou a eleição e a reeleição de George W. Bush. Em 2007, costeou o alambrado e se candidatou ao Senado estadual pelos democratas.
Em 2013, foi o vice na vitoriosa dobradinha democrata pelo governo do estado, com Terry McAuliffe. Exibindo uma plataforma de direita, venceu as primárias em 2017, na disputa contra um liberal próximo ao senador Bernie Sanders. Na campanha eleitoral propriamente dita, prometeu “trabalhar com Trump”. A única questão em que ele realmente se diferencia dos republicanos é que é contra a criminalização do aborto.
Com as eleições do ano que vem já aparecendo no retrovisor, e com toda aquela encenação de defesa das minorias, da qual depende a possibilidade de vitória, o alto comando democrata imediatamente passou a exigir a cabeça do governador. Os três principais democratas da Virgínia – o senador Mark Warner, o senador Tim Kaine e o deputado Bobby Scott – divulgaram declaração conjunta com a exigência.
Na pressão pela renúncia, se juntaram a bancada negra (Black Caucus) da assembleia estadual, as bancadas democratas na Câmara e Senado estaduais, seis representantes democratas dos distrito congressionais do estado, o Comitê Nacional Democrata e a presidente da Câmara federal, Nancy Pelosi.
Entidades de defesa dos direitos dos afro-americanos também repudiaram Northan, que segue resistindo.
A reação das entidades que lutam contra os restolhos do apartheid que existiu durante quase um século após o fim da escravidão, que seguem entranhados na sociedade norte-americana cinquenta anos após o martírio de Martin Luther King, é compreensível.
Mesmo que a foto tenha 35 anos que foi tirada. A polícia continua matando negros desarmados impunemente – está aí o Black Lives Matter para mostrar -, o racismo gerou uma superpopulação carcerária desproporcionalmente de afro-americanos, a desigualdade e o desemprego pegam os negros sem dó, e uma recente pesquisa de opinião (CBS) descobriu que 63% dos entrevistados desaprovam a forma como Trump lida com as questões raciais.
Já Trump assevera que “eles [os afro-americanos] gostam muito de mim e eu muito deles”. Quase todos: o único senador republicano negro, Tim Scott, já o chamou de “racista insensível”. Na mesma pesquisa, os entrevistados admitiram que o racismo come solto nos EUA, ou como foi perguntado, “as relações raciais” são “geralmente ruins” de acordo com 73% dos negros ouvidos e 54% dos brancos. E Northam sequer pode dizer que foi “bobagem de garoto”: ele tinha 25 anos, quando tirou a foto.
A.P.