Em meio aos anúncios do presidente Donald Trump de que na próxima semana começará sua caçada aos imigrantes ilegais para “deportação de milhões”, uma imagem choca o mundo: um salvadorenho e sua filha de apenas um ano e 11 meses, que morreram afogados ao tentarem entrar nos EUA, emborcados na água, a criança com o bracinho em volta do pescoço do pai, dentro da camiseta dele. Quase uma reedição da foto do menino sírio Aylan afogado numa praia na Turquia, que há quatro anos tornou impossível abafar o drama dos refugiados.
Os corpos foram encontrados na segunda-feira (24), no lado mexicano da fronteira, depois de 12 horas de buscas. O nome da bebê era Angie Valeria. O pai era o cozinheiro Óscar Martínez Ramírez, de 25 anos, que decidiu fazer a travessia do rio, como relatou ao jornal La Jornada sua mulher e mãe da menina, Tania Vanessa Ávalos, de 21 anos, que tudo presenciou.
A família, que partira de Altavista, em El Salvador, no início de abril, aguardava em um acampamento lotado em Matamoros, no estado mexicano de Tamaulipas, por uma entrevista para pedir asilo aos EUA.
No acampamento, além da escassez de alimentos e de todo tipo de precariedade, os imigrantes estavam sujeitos a temperaturas de até 45 º C. Conforme o La Jornada, no fim de maio o número de solicitações chegava a cerca de 2 mil, e uma multidão continuava aguardando.
Sem conseguir a entrevista, e alarmado com as ameaças de Trump para que o governo mexicano intensificasse a repressão aos imigrantes, no domingo Óscar se decidiu pela tentativa de cruzar o Rio Grande, para chegar a Brownsville, na outra margem, no Texas.
Óscar e Tânia procuraram um lugar calmo e tranqüilo para a travessia, e ele cruzou primeiro, com a filha nos braços, e a deixou na margem norte-americana. Então, voltou para ajudar Tânia, mas na metade do trajeto percebeu que a criança havia se jogado na água, querendo acompanhá-lo. Voltou para resgatá-la e até conseguiu alcançá-la, mas ambos foram arrastados pela correnteza do rio.
Os gritos de Tânia chamaram a atenção e as forças de segurança de Matamoros foram acionadas para as buscas no domingo à tarde. Suspensas à noite e retomadas na manhã de segunda-feira, pai e filha foram encontrados a meio quilômetro do local.
“NOSSA VERSÃO DA FOTO DA SÍRIA”
“É muito difícil ver essa fotografia. É a nossa versão da fotografia da Síria – do menino de 3 anos na praia, morto. É isso”, declarou o deputado democrata do Texas, Joaquin Castro.
A imagem foi feita pela fotógrafa Julia Le Duc, do momento em que os dois corpos foram encontrados e publicada no La Jornada em primeira mão. “Já vi muitas imagens de corpos, mas esta me sensibilizou. Você pode ver que o pai colocou a filha dentro da camisa dele para que ela não fosse carregada”, disse a fotógrafa ao jornal inglês The Guardian.
Le duc acrescentou que o Rio Grande “é muito forte”. “Parece um afluente suave, mas a verdade é que tem muitas correntes e redemoinhos”.
“O papa está profundamente entristecido pela morte (de Oscar e Valeria), e está orando por eles e por todos os migrantes que perderam suas vidas em busca de fuga da guerra e da miséria”, disse quarta-feira um porta-voz do Vaticano.
Pego no contrapé, sob as pressões de Trump, o presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, classificou as mortes do pai e da filha de “muito lamentáveis”. Acrescentou que as pessoas “estão perdendo a vida, no deserto ou atravessando o Rio Grande, sempre condenamos isso e não queremos que isso aconteça”.
FUGA DA MISÉRIA E DA VIOLÊNCIA
As razões que empurraram a família para as margens do Rio Grande, são as mesmas que já levaram tantos outros: a tentativa de escapar da miséria asfixiante, da violência feroz e da falta de perspectivas.
Que são o resultado de décadas de políticas dos EUA para barrar a tiros e esquadrões da morte qualquer possibilidade de progresso social no seu quintal mais imediato. Tudo devidamente complementado pelo receituário do FMI, pelas recomendações do Consenso de Washington e pela corrupção. No lugar dos esquadrões da morte oficiais da década de 1980, ficaram as gangues trazidas de volta dos guetos latinos de Los Angeles.
Assim, em caravanas, hondurenhos, salvadorenhos e guatemaltecos fazem longas travessias a pé até chegarem à fronteira com os EUA para pedir asilo. Mas se perguntassem a Óscar e Tania, teriam dito que queriam “juntar dinheiro para construir uma casa” – como narrou sua mãe, Rosa Ramírez. Tinham parentes em Dallas, no Texas, que garantiram que ele conseguiria um emprego por lá – gente que já fizera o trajeto que levou Óscar à morte com a bebê.
Óscar largou o emprego precário em uma pizzaria, juntou a família e foi para a estrada. Ficaram três semanas em um abrigo em Chiapas, onde conseguiram um visto humanitário, e afinal chegaram a Matamoros, até o dia da tragédia. Como as mães sempre fazem, Rosa relatou ter “implorado para eles não irem”, mas o filho queria muito construir uma casa. A pedido dos familiares, o governo de El Salvador assumiu as despesas de repatriação dos corpos e custos do funeral.
XENOFOBIA NA TRUMPLAND
Trump declarou que “odiou a foto” – o que, em se tratando de um xenófobo e de um demagogo como ele, deve ser, dessa vez, a mais completa verdade, porque tal imagem atrapalha, ao menos nesse momento, sua estratégia eleitoral de juntar sua base fazendo os imigrantes de bode expiatório da indignação geral contra um sistema cada vez mais falido, que empobrece a quase todos para que os magnatas se entupam de dinheiro e privilégios. Vai manter o início da caçada aos imigrantes “aos milhões” para a próxima semana?
Inesperadamente, a pequena Angie Valeria se tornou um estorvo na marcha de Trump à reeleição como rei do pântano.
Se a xenofobia está matando na fronteira, a culpa, segundo Trump, é dos democratas por não aprovarem leis ainda mais xenófobas e não liberarem o dinheiro do seu muro. Ele até se superou, dizendo que o salvadorenho morto provavelmente “era um cara incrível”, além de lembrar que a travessia do Rio Grande “é muito perigosa”. E, claro, não esqueceu de lamentar “as mulheres estupradas em números inacreditáveis nas caravanas”.
Arrombada a porta, é hora de consertar a maçaneta: na terça-feira, a Câmara dos Representantes norte-americana aprovou um pacote de US$ 4,5 bilhões para ajuda emergencial a migrantes na fronteira do país com o México. O pacote proíbe que esse dinheiro seja desviado para o muro de Trump.
É uma tentativa de salvar a face, diante do escândalo das 300 crianças imigrantes em um posto no Texas, que estavam ali há semanas, famintas, sujas e dormindo no chão com uma mantinha de alumínio. O chefe da política de imigração de Trump, John Sanders, não aguentou o tranco e pediu demissão.
Segundo a gestapo da fronteira de Trump, só no mês passado 133 mil imigrantes foram detidos. Na semana passada, um total de nove pessoas, incluindo quatro crianças, foram encontradas mortas na fronteira do Texas. Especialistas denunciam que a política anti-imigração de Trump está empurrando os migrantes para rotas de travessia “mais perigosas”.
A.P.