LUÍSA LOPES
O cineasta Francesco Rosi completou seu centenário em 15 de novembro de 2022. Falecido em 2015, Rosi deixou em suas obras aquilo que desejou conscientemente: seu compromisso com a verdade e com a construção da democracia em um país que acabara de ser libertado do fascismo.
Para as gerações futuras, ficou um registro sobre a complexa história italiana do pós-guerra e uma análise sobre como a corrupção se estruturou no poder político, sujeito a interesses estrangeiros, e o relacionamento intrínseco entre a política, a Máfia, a Igreja e as forças militares. Ao invés de tecer julgamentos, Rosi preferiu deixar que os fatos retratados falassem, oferecendo em suas obras uma vasta pesquisa sobre alguns dos maiores eventos políticos de sua época. E declarou algumas vezes: “o cinema mostrava vinte, trinta anos antes, o que só pudemos provar depois”.
O surgimento do cinema político geralmente é atribuído aos franceses na segunda metade da década de 60, junto ao fervor que culminou no Maio de 68 e que se estabeleceu como um movimento cultural e ideológico que se espalhou pelo mundo. Alguns anos antes, porém, Francesco Rosi delimitava as bases deste estilo cinematográfico. Il maestro del cinema verità (o mestre do cinema verdade), como é conhecido na Itália, foi pioneiro no cinema político e de investigação naquele país, onde esse movimento atingiu seu auge. Curioso notar que lá o cinema político é também conhecido como cinema de impegno civile (cinema de compromisso civil), termo que, por si só, desafiou aqueles que preferiam excluir as massas das decisões políticas. Para Rosi, ser um cidadão significava tomar parte ativa na sociedade, seja no âmbito municipal, estadual ou nacional.
Ao final da 2ª Guerra Mundial, Rosi trabalhou como assistente teatral e jornalista. Depois foi assistente de direção de Luchino Visconti em “A Terra Treme” (1948). Aprendeu sobre cinema com ele e outros mestres como Vittorio de Sica, Roberto Rossellini, Luigi Zampa e tantos outros. Trouxe do neorrealismo a ideia de deixar os fatos falarem e a noção do cinema (e da vida) como compromisso civil na reconstrução de um país devastado pela guerra. Em depoimento para o livro “Anni Fuggenti – Il Romanzo del Cinema Italiano”, de Silvio Danese, declarou: “…E, no meu caso, há a descoberta de Francesco De Sanctis, que numa recomendação aos jovens escreveu que a vida é uma missão, que se deve vivê-la conscientemente para alcançar a arte, a ciência e a moral, em suma o que é lindo, bom e certo.
É assim que, após dois filmes nos quais já evidencia a questão social, o cineasta filma “O Bandido Giuliano” (1962), síntese absoluta do cinema de compromisso civil. Com as complexidades de uma obra que tenta explicar um evento até hoje não solucionado, Francesco Rosi aprofunda o caso do massacre de Portella della Ginestra, no qual 11 pessoas morreram em uma comemoração do Partido Comunista e do Partido Socialista italianos, pela vitória nas últimas eleições regionais. Mas não é só isso: ao fim da guerra, a Sicília está passando por um conflito separatista, apoiado pelos Estados Unidos. O exército separatista (EVIS) toma a decisão de incluir em suas fileiras bandidos locais – entre eles, Salvatore Giuliano e seu grupo, especializados em sequestro e contrabando. Há também o fortalecimento da Máfia na região, apoiado pelos americanos desde o fim da Segunda Guerra, e também seu relacionamento estreito com a polícia e com o Exército italianos. Um filme difícil, mas a história italiana também o é.
Os mandantes e motivos do massacre de Portella della Ginestra, bem como dos ataques posteriores às sedes dos partidos de esquerda, até hoje não foram bem explicados. Ganhador do Urso de Ouro no Festival de Berlim, o filme foi excluído do Festival de Veneza daquele ano com a justificativa de que a obra era um documentário. Em entrevista para Francesca Angiolillo, da Folha de S. Paulo, o cineasta disse: “Acho que foi uma desculpa para não lidar com um filme incômodo. Quando meu filme saiu, quase não se falava da Máfia. Não se havia ainda, no cinema, falado abertamente da cumplicidade entre Máfia e instituições”. “O Bandido Giuliano” quebrou uma regra do silêncio e incomodou.
Em depoimento para o livro Non Riconciliati. Política e Società nel Cinema Italiano dal Neorealismo a Oggi, de Maurizio Fantoni Minnella, declara também:
“Em minha opinião, nossa geração denunciou tanto, que a denúncia pode até assumir o valor de um álibi no qual esconder-se. De minha parte, nunca me afastei e assumi minhas responsabilidades. Sempre. (…) É indispensável refletir a respeito dos motivos que levaram o país a essa crise profunda. E um homem que faz cinema deve estar ciente de que um filme continua a ser um testemunho do momento histórico no qual foi realizado. Também deve estar ciente da responsabilidade que esse testemunho representa num momento confuso como o que estamos atravessando. Por esta razão, aqueles que expressam a cultura devem esforçar-se para ser o mais claro possível, mesmo arriscando a simplificação de um discurso que, pelo contrário – sabemos -, é terrivelmente complicado”.
Ao todo, Francesco Rosi dirigiu 19 obras, a maioria convergindo com seu comprometimento em se posicionar nos assuntos incômodos. Exemplos disso são “As Mãos Sobre a Cidade” (1963), sobre a feroz exploração imobiliária em Nápoles, “O Caso Mattei” (1972), que investiga a morte de Enrico Mattei – presidente da estatal de petróleo e gás que confronta o cartel das “Sete Irmãs” em países africanos e do Oriente Médio – e “Cadáveres ilustres” (1976), baseado no romance “Il Contesto”, de Leonardo Sciascia, que retrata os “anos de chumbo” italianos, a relação entre o poder e o crime e a inércia do Partido Comunista Italiano, em um dos momentos mais violentos da história do país.
Foi também um amante do teatro, da ópera, musicais e literatura. Demonstrou isso em “Carmem” (1984) e “Felizes Para Sempre” (1967), com Sophia Loren e Omar Sharif. Na entrevista à Folha, ao ser perguntado como este último filme se encaixa no conjunto da sua obra, respondeu: “É uma fábula napolitana, mas seu autor, dos anos 1600, Giovanni Battista Basile, escreveu fábulas realistas. Enquanto as fábulas nórdicas levam a uma evasão da realidade, cheias de gnomos, elfos, nas fábulas meridionais, o máximo com que se sonha é um belo prato de comida, um almoço: são sonhos terrenos.”
Declarou também ser muito interessado na cultura latino-americana, trazendo ao cinema sua montagem do romance “Crônica de Uma Morte Anunciada” (1987), de Gabriel Garcia Marquez. Também tinha intenção de fazer um filme sobre a revolução cubana, chegando a ir até Cuba e conversar com Fidel Castro. Mas o filme nunca sairia do papel.
Francesco Rosi morreu aos 92 anos. Acompanhou quase um século da história mundial e relatou parte disso em suas obras, algumas das quais poderão ser vistas durante o ano de 2023, na 8ª Mostra de Permanente de Cinema Italiano no Cine-Teatro Denoy de Oliveira, localizado no bairro do Bixiga. Sempre às segundas-feiras e com entrada gratuita, a Mostra é iniciativa da UMES (União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo).
Veja a programação da 8ª Edição da Mostra Permanente de Cinema Italiano