Após a eleição do Parlamento Europeu, social-democratas e liberais buscam atrair verdes e a esquerda para uma frente que impeça mais um presidente da Comissão Europeia do partido de Merkel, como ocorre desde 2005
A decisão sobre o presidente da Comissão Europeia vai ficar para a cúpula no final de junho, assinalou o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, no primeiro desdobramento das eleições ao Parlamento Europeu do final de semana passada.
Pela primeira vez desde 2005 abriu-se a possibilidade de que o presidente da Comissão Europeia – principal órgão executivo da UE – não seja indicado pelos democrata-cristãos alemães, isto é, por Berlim. No caso, o candidato da predileção de Frau Merkel é o eurodeputado alemão Manfred Weber, contra o qual já há forte oposição.
A mídia europeia registra que social-democratas e liberais estão discutindo uma “geringonça europeia”, do tipo do acerto entre socialistas e progressistas em Portugal, que permitiu minorar o arrocho imposto pela Troika. A proposta é ampliar até os verdes e a esquerda.
Parece que ninguém aguenta mais a atual situação, em que a democracia cristã e congêneres preside as três principais instâncias da UE – a Comissão Europeia, o Conselho [de chefes de governo] e o Parlamento (este, antes presidido por um social-democrata alemão).
Com uma abstenção de 49%, as eleições para o único órgão da UE que é escolhido pelo voto direto foram as mais concorridas dos últimos 25 anos, definindo 751 deputados. A Grã-Bretanha acabou tendo de participar, por não ter completado o acordo do Brexit. No Parlamento europeu, os partidos nacionais se juntam conforme as afinidades em oito blocos: direita, social-democracia, esquerda, verdes, liberais e três facções de eurocéticos, opositores em algum grau à UE.
Quanto às decisões de fato, ficam para a Troika, como qualquer grego sabe: a Comissão Europeia, isto é, Berlim, o Banco Central Europeu (BCE) e o FMI. Afinal, a UE tem que fazer jus à sua fama de prisão dos povos europeus.
QUAL FOI A ONDA?
Entre acalorados debates sobre se a onda foi “verde ou eurocética”, se Nigel Farage e Matteo Salvini eram os vilões do dia ou os heróis dos deploráveis, ou se o pior para a França é Emmanuel Macron ou Madame Le Pen, uma coisa é certa: a dupla Cosme e Damião do Tratado de Maastricht, os “populares” (direita neoliberal ‘civilizada’) e os “social-democratas”,
que reproduzia em âmbito europeu a aliança no poder na Alemanha, perdeu a maioria em Estrasburgo e outro arranjo terá de ser encontrado.
Ainda não foi nessa eleição que houve um debate substantivo sobre o futuro da Europa: uma “Europa dos Povos”, da cooperação entre estados soberanos com direitos iguais, de progresso social e paz? Ou a Europa de Maastrich e da Otan, dos monopólios, bancos e máfia de Bruxelas, do neoliberalismo e de Schengen, funcionando como um puxadinho dos interesses estratégicos de Washington?
Os três presidentes da Comissão Europeia nesses últimos 15 anos foram o português José Manuel Durão Barroso (dois mandatos) – um neoliberal de quatro costados, desde 2016 na presidência da Goldman Sachs International, com sede na city londrina -, e Jean-Claude Juncker, cuja principal qualificação, fora os laços com Merkel, era ter sido o chefe da evasão fiscal na UE via Luxemburgo.
CENÁRIO CONTURBADO
A eleição ocorreu num quadro complexo, com manifestações de peso por direitos e pelo meio ambiente, greves, o imenso desgaste vai-não-vai do Brexit, protestos consecutivos dos ‘coletes amarelos’ e xenofobia em alta depois da maré de refugiados sírios e africanos. Ainda, diante da iminência da guerra comercial de Trump se estender à Europa, com a saída dos EUA do Tratado INF ameaçando com a volta do risco de guerra nuclear com a Rússia, a Nova Rota da Seda batendo às portas, a quase implosão do acordo nuclear com o Irã, trincas na vassalagem a Washington em relação à Huawei e ao gasoduto Nord Stream 2 e até discussões sobre ‘exército europeu’ no velho continente – ainda hoje sob a ocupação nem tão disfarçada da ‘Otan’.
Tudo isso depois de dez anos de austericídio sob auspícios de Berlim – e do marco travestido de euro – para salvar bancos minados por derivativos tóxicos, de que a Grécia se tornou o cordeiro sacrifical, com uma depressão que contraiu o PIB em 25%. Dez anos de crescimento anêmico na Europa, achaque à previdência, subtração de direitos, precarização, desemprego recorde entre os jovens, exasperação da desigualdade e BCE nomeado pelo Goldman Sachs.
A crise europeia de 2010-2013, que foi o repique, na Europa, do colapso financeiro de epicentro nos EUA de 2008/2009, deixou um rastro de destruição que o arrocho capitaneado por Berlim só fez exacerbar. Cenário propício ao ressentimento e que funcionou como o abre-te Sésamo para os demagogos e xenófobos usarem os imigrantes e refugiados de bodes expiatórios da crise desencadeada pelo rentismo alucinado. Esgotos que os europeus pensavam lacrados há mais de 70 anos voltaram a vazar fetidamente.
EUROCÉTICOS
O grande temor pré-eleições, refletindo situações em muitos dos 28 países membros, era sobre até onde iria o fôlego dos eurocéticos, cuja composição diversificada vai de soberanistas inconformados com as chagas da globalização e a máfia de Bruxelas, até extremistas xenófobos, fanáticos anti-islâmicos e franquistas babosos. Embora três quartos dos deputados eleitos sejam a favor da União Europeia, os chamados eurocéticos, divididos entre três facções, ampliaram sua presença.
Ainda assim, pesar do alarido na mídia, é importante sublinhar que a extrema-direita da Alternativa para a Alemanha (AfD) perdeu 1,7 milhão de votos em relação à eleição federal de 2017, e os franquistas do Vox perderam 1,2 milhão de votos em um mês, da eleição geral na Espanha de abril para a eleição europeia de maio.
Por blocos de afinidade partidária, ficou assim o Parlamento Europeu: direita com 179 eurodeputados (24%), social-democracia com 146 (19,4%), esquerda com 39 (5,2%), verdes com 69 (9,1%), liberais com 107 (14,2%) e os eurocéticos Conservadores com 59 (7,7%), Europa das Nações e Liberdade com 58 (7,7%) e Europa da Liberdade e Democracia Direta com 54 (7,1%). Outros/independentes são 33 (4,4%).
O bloco de direita (PPE) perdeu 34 votos. A social-democracia (S&D) acompanhou a queda, com menos 38. Já a esquerda encolheu em 14 deputados. Os verdes cresceram 17 parlamentares e os liberais (ALDE), mais 40.
Entre os eurocéticos, os conservadores (ECR, que tem como principal integrante o partido de Teresa May) recuaram 18 cadeiras. O Europa das Nações e da Liberdade (ENF), de Le Pen e Salvini, e o Europa da Liberdade e Democracia Direta (EFDD), onde se situa o Partido do Brexit inglês, aumentaram, respectivamente, 22 e 12 mandatos. O PiS (Lei e Justiça), de Jaroslaw Kaczynski, no poder na Polônia, faz parte do ECR, enquanto o Fidesz, de Viktor Orbán, da Hungria, apesar de integrar o PPE, está suspenso por causa dos choques com a UE.
Com 29 eurodeputados eleitos, o Partido do Brexit de Farange, que não existia há dois meses, equiparou-se à democracia cristã de Merkel como partido nacional com maior número de deputados – só para atazanar Bruxelas.
O DIA SEGUINTE
O day after – que começara na véspera, com o anúncio de fim de linha para Teresa May -, foi bastante agitado, de acordo com o princípio de ‘aos vencedores, as batatas’. O 5 Estrelas, na Itália, acordou na posição de baixo da gangorra com o parceiro de governo Liga Norte. Alexis Tsipras convocou eleições antecipadas, após o fiasco do Syriza diante dos conservadores da Nova Democracia na Grécia. Madame Le Pen pediu a antecipação das eleições parlamentares na França, após esticar o pescoço e vencer Macron por cerca de um ponto percentual. Diferença estreita, como notou um analista, em se tratando de um presidente tão impopular quanto Macron.
Consternação entre os social-democratas alemães, que perderam para os verdes a condição de segundo partido alemão mais votado. Na Inglaterra, o Partido Conservador, no poder, quase foi varrido, com os adeptos do Brexit sufragando em massa Farage, enquanto os ‘remainers’ [a turma do fica na UE] despejaram votos nos liberal-democratas, fazendo o trabalhismo cair para terceiro e dificultando a vida para Jeremy Corbyn. Na Áustria, o primeiro-ministro Sebastian Kurz (conservador) sofreu um voto de desconfiança e haverá nova eleição, no respaldo do ‘escândalo Ibiza’ – o caso do ministro de extrema-direita que caiu no golpe da falsa ‘sobrinha do oligarca russo’, encheu a cara e se ofereceu para uma corrupçãozinha na melhor das intenções, tudo devidamente filmado e guardado para a véspera de uma eleição.
O aumento da votação dos verdes não foi um relâmpago em céu azul: antes das eleições, milhares de jovens foram às ruas em vários países colocando no centro a questão ambiental e pedindo uma Europa de paz. Na Alemanha, 33% dos eleitores até 30 anos votou nos verdes. O Partido Verde de Yanick Jadot surpreendentemente ficou em terceiro lugar na França, com 13%. O incremento da votação dos liberais reflete principalmente a adesão ao bloco do partido de Macron, o Republicanos em Marcha, que teve menos votos que Le Pen, mas chegou bem perto, e do Ciudadanos espanhol.
A esquerda europeia inclui comunistas portugueses, espanhóis, franceses e cipriotas, irlandeses do Sinn Fein, Podemos, Die Linke alemã, o Syriza grego, ecologistas nórdicos e outras forças progressistas.
Algumas derrocadas foram dolorosas: um dos três únicos deputados Tory eleitos, Daniel Hannan, chamou o resultado de “o pior desde sempre” dos conservadores ingleses (despencando para a quinta posição, com 9%). “Votamos para sair (da UE) e não saímos – é simples assim”, disse à BBC.
O Movimento 5 Estrelas perdeu seis milhões de votos e em grande medida ficou à mercê de Salvini. A Força Itália caiu para apenas 10%. Os socialistas franceses, do ex-presidente Hollande, mal chegaram ao sexto lugar, com 6,2% dos votos. O desempenho tacanho do Podemos – que perdeu metade dos seus eurodeputados – facilitou ao primeiro-ministro Pedro Sánchez desconvidar o partido para o futuro governo espanhol. Os separatistas catalães Carlos Puigdemont (no exílio) e Oriol Junqueras (na prisão) conquistaram mandatos.
“OTIMISMO”, PEDE O MERKEL-BOY
O Weber não se fez de rogado para, já no domingo, clamar por seu direito ao posto de preposto de Merkel na Comissão Europeia. ‘Spitzenkandidat’, no jargão da UE. “Os europeus decidiram e enviaram uma mensagem clara”, afirmou, após a direita ‘civilizada’ (PPE) ter perdido 34 assentos mas se mantido como o bloco partidário de mais deputados. “Deixemos de falar de crise e comecemos uma nova fase com otimismo”, convocou. E justo agora que chegou a vez de Berlim encabeçar a Comissão Europeia sem ser através de um intermediário, aí os parceiros europeus querem puxar o tapete…
Com o novo quadro no parlamento europeu, os social-democratas estão apostando no holandês Frans Timmermans para a presidência da Comissão Europeia, com apoio dos verdes e dos liberais, numa articulação em que se envolveram pessoalmente o presidente francês Macron, o primeiro-ministro espanhol Sánchez e outros líderes europeus.
Para Timmermans, é preciso “humildade” para tornar possível uma coligação “com outros partidos progressistas” – que poderia ir de “Macron a Tsipras” – para desenvolver um programa que “represente as aspirações, sonhos e medos dos europeus”.
O partido de Timmermans foi a grata surpresa na Holanda, ao chegar em primeiro com 18%, depois do susto da ascensão do Fórum pela Democracia (FvD), de extrema direita, na eleição nacional de março. Conforme o FvD, a participação na UE impede que se barre “a imigração e a infiltração islâmica” e não permite que os países apliquem um projeto econômico “verdadeiramente neoliberal”.
BANNON, O EX-GURU
O ex-guru de Trump, Steve Bannon, tem andado pela Europa propondo que os eurocéticos se unam num único bloco no Parlamento Europeu, possivelmente visando a parte do vislumbre de Timmermans referente aos “medos dos europeus”.
Difícil é ver como isso vai funcionar, por exemplo, com Salvini: se contra a imigração, eles concordam em tudo ou quase tudo, o mesmo não pode ser dito, por exemplo, sobre a China, a encarnação do mal para Bannon, e parceira recebida de braços abertos pela Itália, o primeiro integrante do G7 a desembarcar na Nova Rota da Seda de mala e cuia. Não deixa de ser tentador: os eurocéticos juntos seriam a terceira força na Eurocâmara, outro nome pelo qual é conhecido o legislativo europeu.
A queda de braço pela cabeça da Comissão Europeia continua, enquanto a turma do deixa-disso tenta jogar panos quentes. “Encontraremos a melhor maneira de negociar (…) entre os líderes e também com a Eurocâmara”, afirmou o presidente do Conselho Europeu, o polonês Donald Tusk, aliás, detestado pelo atual governo de Varsóvia – do Partido Lei e Justiça. Tusk acrescentou que “não interessa a ninguém um conflito entre instituições”. Já se fala até num prêmio de consolação para Weber – a presidência do Parlatório Europeu.
Os merkel-boys insistem em que é preciso seguir a regra de que a indicação tem que ser de alguém que participou da eleição, que tenha o apoio de 376 deputados (metade mais 1) e maioria qualificada de suporte dos chefes de governo, de 21 dos 28. O que implica em que, com oito chefes de governo vetando, o nome está rejeitado. Os que rejeitam Weber sublinham sua falta de experiência no poder executivo, já que sempre foi parlamentar.
O mandato do atual presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, vai até 31 de outubro. Mesma data em que outro, e quem sabe mais decisivo, mandato se encerra, a presidência de Mario Draghi no Banco Central Europeu, segundo dizem, escolhido a dedo na época pelo Goldman Sachs, do qual foi diretor na Itália entre 2002 e 2005. Se a eleição para a presidência da Comissão Europeia desperta tantas emoções fortes, o que não se dirá de um cargo em que a Goldman Sachs bota tanta fé?
ANTONIO PIMENTA