A Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, recebeu, há duas semanas, cerca de R$ 10,840 milhões de recursos emergenciais para usar na proteção de indígenas contra o avanço do novo coronavírus. No entanto, nenhum centavo desse recurso foi utilizado até hoje, quando o País já soma ao menos nove casos e três mortes de indígenas pela Covid-19.
No dia 2 de abril, a Funai passou a dispor de R$ 10,840 milhões a partir da publicação da Medida Provisória 942, que tratou de uma série de medidas federais de enfrentamento à pandemia. A MP tem efeito imediato. Por isso, o recurso, de caráter emergencial e extraordinário, ficou à disposição da Funai.
A informação foi apurada pelo jornal “O Estado de S. Paulo” por meio do Sistema Integrado de Administração Financeira (Siaf) do governo federal, com apoio da empresa Rubrica, agência especializada em monitoramento de gastos públicos.
Os dados do sistema federal mostram, porém, que até ontem apenas um gasto de R$ 11,4 mil foi empenhado pela Funai, ou seja, o valor foi bloqueado dos recursos, mas sequer foi efetivamente pago pela fundação.
O orçamento total da Funai previsto para o ano de 2020 é de R$ 506 milhões, dos quais mais de R$ 151 milhões serão usados para pagamento de pensões e aposentadorias de servidores. O valor destinado à proteção dos índios contra a Covid-19 corresponde a um quinto das despesas administrativas do órgão, que consomem mais de R$ 50 milhões por ano.
A situação dos cerca de 800 mil índios do país é alarmante, principalmente dos que vivem na região amazônica, onde o coronavírus tem avançado rapidamente, em contraposição à chegada de suprimentos de saúde, alimentação, higiene e infraestrutura médica.
SEM CONTROLE
O ingresso de missionários em terra indígena com a presença de povos isolados em meio à pandemia do coronavírus mostra inércia da Funai no controle dessas áreas e revela que o órgão está entregue a um “proselitismo religioso agressivo” e a um setor do agronegócio “troglodita”.
A opinião é compartilhada por dois ex-presidentes da instituição, Sydney Possuelo e Márcio Meira.
Na última segunda-feira (14), uma reportagem mostrou que religiosos da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) fizeram voos de helicóptero para o Vale do Javari sem autorização da fundação,mesmo depois da edição de uma portaria do órgão e de recomendações do Ministério Público Federal (MPF) de combate ao novo coronavírus para proteção aos indígenas. Regras da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) também foram infringidas.
Com mais tempo de gestão entre os presidentes da Funai, o antropólogo Márcio Meira (2007-2012) diz que o órgão deveria ir além do procedimento protocolar de proibir autorizações de ingresso a terra indígenas na crise do coronavírus e defende ações mais enérgicas do Poder Público e da fundação.
“Aquela região tem forte presença de índios isolados. Do procedimento protocolar está completamente errado uma vez que vivemos uma pandemia. A prioridade da Funai hoje é retirar todo mundo de lá. Entrar com a Polícia Federal e o IBAMA e arrancar todos os garimpeiros, madeireiros e missionários, todos aqueles não indígenas”.
Para ele, a crise do coronavírus esconde e ao mesmo tempo escancara a letargia com que a Funai tem se apresentado diante de questões urgentes nos conflitos de terra indígena.
“A pandemia do coronavírus está, de certa forma, sendo um biombo para esconder a ação violenta desenfreada na Amazônia como um todo, não só contra os povos indígenas, mas também de ambientalistas e lideranças. A mistura disso tudo com coronavírus é simplesmente terrível”, disse.
Ex-presidente da Funai entre 1991 e 1993, o indigenista Sydney Possuelo é considerado uma das maiores autoridades quando se trata de povos indígenas isolados. Ele foi responsável por suspender as autorizações para que missões religiosas entrassem em terras indígenas durante sua gestão e expulsou os missionários da Missão Novas Tribos no episódio dos zoés.
“O episódio do Zoé foi emblemático. Eu botei todo mundo para fora. Eu cheguei e falei: sai todo mundo daí já, peguem suas coisas e vão embora. Daqui a dois, três dias eu vou chegar com uma equipe e quero todos fora daí. Não está previsto em lei, é tudo irregular, tira e bota para rua. É isso que a Funai tem que fazer”, defende.
Possuelo diz que a Funai não tem controle nenhum de quem entra e sai de terras indígenas quando o ingresso é pelos ares.
“A Funai nega a autorização de ingresso e daí? diz que ele estão lá há tanto anos. E daí? A Funai é o órgão de lei que deve zelar pelos índios. Não ter autorizado não significa que não tenha que ir atrás, saber o que está acontecendo lá no Javari, por que que não houve vigilância? Então, ela que vá à Anac e às autoridades que controlam o espaço aéreo para investigar quem autorizou esses voos. Quem é o piloto? Esse piloto está com a carteira em dia? A manutenção dessa aeronave como estava?”, questiona.