
Ana Lúcia Niemeyer denuncia “ações oportunistas” de apropriação da obra de seu avô atribuindo ao arquiteto a autoria de projetos de terceiros
A Fundação Oscar Niemeyer, instituição que gerencia a obra do mais renomado arquiteto brasileiro e que faleceu em 2012, negou a autoria do projeto do “Museu da Bíblia”, uma espécie de memorial que a bancada evangélica pretende construir no Eixo Monumental de Brasília.
Em carta encaminhada ao Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) do Distrito Federal, a presidente da fundação, Ana Lúcia Niemeyer, aponta que após a morte do avô, “ações oportunistas de apropriação de sua obra e imagem têm sido questionadas e combatidas, incluindo iniciativas de atribuir a Niemeyer a autoria de projetos de terceiros”.
Segundo Ana Lúcia, “infelizmente essas práticas são frequentes, com objetivos de burlar a necessidade de licitações em obras públicas, realização de concursos e, em casos de propriedades particulares, obter a valorização de imóveis”.
A construção do Museu da Bíblia é uma reivindicação da Frente Parlamentar Evangélica da Câmara dos Deputados, que diz ter garantido R$ 35 milhões em emendas parlamentares de 2020 para a concretização do prédio que teria capacidade para recepcionar 53 mil pessoas e com um custo total estimado em R$ 63 milhões.
Contou também com a concordância do Governo do Distrito Federal (GDF), que cedeu a área de 15 mil metros quadrados para a construção e contratou, sem licitação, o Instituto Niemeyer, presidido por Paulo Sérgio Niemeyer, que é bisneto do arquiteto, para a execução do projeto.
No dia 18 de dezembro, foi lançada a pedra fundamental da obra.

AUTORIA
A Fundação Niemeyer destacou que “o desenvolvimento e realização do projeto sem a anuência da Fundação Oscar Niemeyer se configura numa clara violação dos direitos autorais de Oscar Niemeyer, mas principalmente aos objetivos de preservação de sua imagem e de sua obra”.
O Conselho de Arquitetura e Urbanismo do DF disse que “não reconhece a autoria do projeto apresentado nos meios de comunicação para o Museu da Bíblia como sendo de Oscar Niemeyer”.
“O projeto não pode ser divulgado por ninguém, muito menos por outro profissional arquiteto, como sendo de autoria ou coautoria de Oscar Niemeyer”, diz trecho da nota.
O conselho considera que “baseado em um rabisco que foi feito por Niemeyer, um arquiteto foi contratado para desenvolver um estudo baseado nas poucas linhas deixadas por ele, sete anos após sua morte”.
“O rascunho não conta com maiores informações sobre dimensões, proporções, cores, materiais, estruturas e soluções técnicas”, destaca o CAU.
E afirma ainda que não foi feito o registro de responsabilidade técnica sobre o projeto – um tipo de certificado de garantia da obra.
“Os desenhos apresentados suscitam uma série de questionamentos: Quem será o autor legal da obra? É possível emitir um Registro de Responsabilidade Técnica de um projeto cujo autor é falecido? A resposta é não”.
“Esperamos que a autoria do Museu da Bíblia, atribuída a Oscar Niemeyer, possa ser comprovada legalmente, caso contrário o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Distrito Federal deverá salvaguardar a produção de tão importante arquiteto e, com isso, resguardar a sociedade brasileira de informações incorretas e que prejudicam enormemente a nossa cultura e o acervo do mais importante arquiteto que este país já teve”, pontua o Conselho.
INTERPRETAÇÃO
Ao defender o projeto que pretende construir Paulo Sérgio Niemeyer diz que, apesar de tratar-se de “uma interpretação”, o projeto é original.
“Foi feita uma interpretação da arquitetura como se fosse na antropologia. Pesquisamos o estudo até chegar à conclusão do que ele queria dizer com o projeto. O projeto é original”, disse em entrevista à TV Globo.
Leia a íntegra da nota do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do DF:
Há quem diga que em 100 anos a humanidade só se lembrará de dois brasileiros do século XX: Pelé e Oscar Niemeyer. A comparação não é por acaso. Com 1.000 gols e uma trajetória genial, o rei do futebol foi celebrado como o maior atleta do século no mundo todo. Já o nosso maior arquiteto e urbanista construiu mais de 400 obras em quatro continentes. Apenas em Brasília são mais de 60 obras construídas, muitas delas consideradas obras-primas por arquitetos e artistas mundo afora.
Agora, imaginemos que Pelé tivesse deixado uma bola parada anos atrás em algum campo de futebol no Brasil. Alguém que pegue a mesma bola anos depois durante um jogo, drible os adversários, chegue a grande área e marque um gol pode atribuir a autoria desse gol a Pelé?
Imaginemos que Portinari tenha deixado um rabisco de um quadro e outro artista pegue esse rabisco e faça um quadro, escolha as cores, realmente execute a pintura do quadro. Quem é o autor deste quadro: aquele que fez um rabisco inicial ou este novo pintor que executou a pintura? Neste novo quadro, Portinari foi quem escolheu a cor, a textura e foi ele quem pintou o quadro? Claro que não. É mais ou menos isso que estão tentando fazer hoje com o nome de Oscar Niemeyer e seu rascunho para o Museu da Bíblia.
A notícia sobre a construção do novo museu já vinha circulando, mas a imagem revela o descalabro da proposta: baseado em um rabisco que foi feito por Niemeyer, um arquiteto foi contratado para desenvolver um estudo baseado nas poucas linhas deixadas por ele, sete anos após sua morte. O rascunho não conta com maiores informações sobre dimensões, proporções, cores, materiais, estruturas e soluções técnicas. Em suma: trata-se de um rabisco e não de um projeto!
Os desenhos apresentados suscitam uma série de questionamentos: Quem será o autor legal da obra? É possível emitir um Registro de Responsabilidade Técnica de um projeto cujo autor é falecido? A resposta é NÃO.
Até quando alguns riscos atribuídos a Oscar Niemeyer serão usados como salvaguarda para desenvolver grandes projetos em seu nome para obras públicas, sem maiores discussões democráticas ou concorrências públicas de projeto?
O plano de se construir uma obra pública para a cidade com a alegação de que se trata de mais um projeto de autoria de Oscar Niemeyer sem que ele próprio esteja aqui para adaptar seu projeto junto às demandas da comunidade para desenvolver as informações mínimas de um estudo inicial ou mesmo para recuar da ideia (como aconteceu com o Memorial proposto para a lateral da rodoviária em 2010) acabará por abrir um precedente perigoso de projetos feitos por terceiros em nome de outros arquitetos já falecidos. Nenhum arquiteto falecido desenvolve projeto de arquitetura, portanto é absurda a ideia de que o projeto que está sendo divulgado na mídia como sendo de autoria do Oscar Niemeyer possa ser atribuído ao próprio Oscar. Isso tem que parar definitivamente.
O Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Distrito Federal não reconhece a autoria do projeto apresentado nos meios de comunicação para o Museu da Bíblia como sendo de Oscar Niemeyer. Não se trata aqui de debatermos sobre a pertinência de se construir ou não um Museu da Bíblia. Se a demanda existe, este Conselho entende que a sociedade tem o direito de requerer tal edificação, mas o projeto não pode ser divulgado por ninguém, muito menos por outro profissional arquiteto, como sendo de autoria ou coautoria de Oscar Niemeyer. O que cabe ao CAU/DF nesta questão tem relação com a atribuição de autoria. Não há Registro de Responsabilidade Técnica (RRT) registrado pelo Oscar Niemeyer para este projeto, portanto, não se pode estender de maneira alguma a autoria de qualquer projeto a um profissional que não o registrou devidamente. Genialidade não é hereditária e autoria é determinada pelo CAU com o Registro de Responsabilidade Técnica. Esperamos que a autoria do Museu da Bíblia, atribuída ao Oscar Niemeyer, possa ser comprovada legalmente, caso contrário o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Distrito Federal deverá salvaguardar a produção de tão importante arquiteto e, com isso, resguardar a sociedade brasileira de informações incorretas e que prejudicam enormemente a nossa cultura e o acervo do mais importante arquiteto que este país já teve.
Tem que acabar de uma vez por todas com a ideia de que um rabisco possa ser considerado projeto de arquitetura, pois não o é. Além disso, o desenvolvimento de um rabisco não atribui ao autor deste risco inicial a autoria do projeto, a não ser que assim o registre oficialmente. Rabisco não é projeto de arquitetura.
Pelé se aposentou nos anos 80. Depois disso, não marcou nenhum outro gol em competições oficiais. Se o seu filho Edinho quisesse marcar um gol (era goleiro), ninguém diria que o gol era do Pelé.
Chegou a hora da comunidade se unir novamente em torno de uma ideia: a de que a excepcional obra de Oscar Niemeyer, assim como a legendária carreira de Pelé dentro dos campos possa ter enfim, um fim. Oscar Niemeyer não projeta mais!