Durante o julgamento de Lula no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), o relator do processo, desembargador João Pedro Gebran Neto, pronunciou um importante – e exaustivo, no melhor sentido da palavra – voto, examinando, literalmente, todos os aspectos do caso. Abaixo, oferecemos aos nossos leitores um pequeno extrato deste voto. (C.L.)
DESEMBARGADOR JOÃO PEDRO GEBRAN NETO
Embora já tenha sido analisada a questão em forma de preliminar, importa consignar que nenhum magistrado se compraz com a condenação de um ser humano. Este é um mister inerente à carreira da magistratura, como expressa exteriorização de um dos Poderes do Estado e do império da lei. Do ponto de vista humanístico, sempre há que se compadecer com as pessoas que figuram no polo passivo da relação jurídica processual penal, sejam elas inocentes ou culpadas. Paralelamente, é dever do julgador tentar compreender os fatos e as circunstâncias em que estes ocorreram.
Este feito, de um modo especial, traz uma reflexão ainda mais ampla. No ‘banco dos réus’ está um ex-Presidente da República que, por dois mandatos, comandou o país, e isso torna a tarefa do julgador mais sensível e dramática.
Mais perturbador do que isso é constatar a fragilidade do processo eleitoral. Recursos foram desviados em favor de partidos políticos e de pessoas, comprometendo o equilíbrio do processo sucessório e fazendo-nos questionar qual o real sentido da democracia representativa que temos.
Muito tem sido propalado a respeito de uma suposta conotação política do processo e que a “Operação Lava Jato” tem por objeto atingir ao ex-Presidente e ao Partido dos Trabalhadores.
Imperioso que a afirmação seja desacreditada com redobrada ênfase.
Nestas mais de duas dezenas de processos de mérito julgados por esta Corte (sem falar nos mais de 800 incidentes processuais aqui apreciados), foram condenados membros de diferentes partidos políticos, não tendo sido o Partido dos Trabalhadores e seus representantes sequer os primeiros investigados. Também não houve apenas propositura de ação e julgamento de ocupantes de cargos eletivos. Há servidores públicos, empreiteiros, empresários, publicitários, engenheiros, empregados públicos e privados e, vale lembrar, até mesmo traficantes e lavadores de dinheiro.
Enfim, pessoas de várias classes sociais foram objeto de imputações.
Não há nestes autos, porém, aqueles menos favorecidos, inclusive invocados perante o Supremo Tribunal Federal para fundamentar a injustiça da execução provisória das penas. Não estamos tratando de pobres, miseráveis ou dos descamisados, que usualmente são os destinatários das ações penais no Brasil.
A par das críticas, a “Operação Lava Jato” trouxe eficácia à jurisdição penal e deu contornos claros ao primado constitucional da razoável duração do processo, de modo a minimizar a sensação de impunidade daqueles que se utilizavam do tempo como meio de se esquivarem dos riscos da condenação, apesar de desenvolverem ampla, reiterada e conhecida atividade criminosa.
Apesar de muito se falar das consequências políticas do julgamento, não deve o Poder Judiciário guiar-se por elas, porque decorrem do comportamento das pessoas e da legislação eleitoral.
Mas, como demonstrado nos autos, o que atinge a democracia não é o processo penal e nem o julgamento daqueles que tiveram ou pretendem ter atuação política. É o uso de recursos ilícitos que a atinge, como ferramenta de subversão do processo democrático e de fragilização da participação igualitária no pleito eleitoral, pois contaminado por candidatos e agremiações financiados pelo dinheiro da corrupção.
Fala-se de paridade de armas. Verifica-se, porém, que a corrupção sistêmica ocorrida por mais de uma década no seio da Petrobrás acabou por fulminar completamente a paridade de armas no processo eleitoral.
Não há como pretender-se a igualdade entre o cidadão comum, honesto e bem intencionado, que pretende concorrer, com outrem que recebe vultosas quantias de dinheiro, em forma de caixa 1 ou caixa 2, de modo a interferir da forma mais danosa possível na liberdade do eleitor.
Aliás, com muita propriedade, recentemente o Ministro Luiz Roberto Barroso, em julgamento de processo conexo à “Operação Lava Jato”, ocorrido no Plenário da Excelsa Corte, em 19 de dezembro de 2017, assinalou que:
‘Vivemos uma tragédia brasileira, a tragédia da corrupção que se espalhou de alto a baixo sem cerimônia. Um país em que o modo de fazer política e negócios funciona assim: o agente político relevante escolhe o diretor da estatal ou ministro com cotas de arrecadação. E o diretor da estatal contrata em licitação fraudada a empresa que vai superfaturar a obra ou o contrato público para depois distribuir dinheiros. Aí não faz diferença se foi para o bolso ou se foi para a campanha, porque o problema não é para onde vai [o dinheiro], mas de onde vem (…), a cultura de desonestidade que se cria de alto a baixo com maus exemplos em que todo mundo quer levar vantagem, todo mundo quer passar os outros para trás, todo mundo quer conseguir o seu, sem mencionar as propinas para financiamento, tudo documentado”.
Pouco adiante, arrematou Sua Excelência:
“Há um país que se perdeu pelo caminho, naturalizou as coisas erradas, e temos o dever de enfrentar isso e de fazer um novo país, de ensinar às novas gerações de que vale a pena fazer honesto, sem punitivismo, sem vingadores mascarados, mas também sem achar que ricos criminosos têm imunidade. Porque não têm. Tem que tratar o menino pego com cem gramas de maconha da mesma forma que se trata quem desvia milhões de reais”.
Não há, portanto, qualquer objetivo político ou perseguição, muito menos desejo de influenciar em processo político eleitoral que se avizinha. Há, sim, a indevida utilização do ambiente por alguns agentes para a prática de crimes. Contudo, registre-se que tal premissa não se aplica a todos os personagens do cenário nacional, pelo que é inadequado se falar em criminalização generalizada da política. Os casos são pontuais e como tal devem e são tratados.
É certo que a investigação, a persecução penal e a condenação podem, por via oblíqua, impactar o processo eleitoral, pois do julgamento podem surgir efeitos políticos. Contudo, isto não está no espectro de atuação do juiz criminal, que aplica a lei no caso concreto, porque as consequências extrapenais refogem ao controle desta jurisdição. Eventuais reflexos políticos devem e certamente serão solvidos perante a Justiça Eleitoral, não sendo, portanto, invocáveis nesta esfera penal.